Como o Whatsapp está transformando a maneira como conversamos — Gama Revista
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Sariana Fernández / Nexo Jornal

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Semana

Vem de zap: a transformação do diálogo

Aplicativo mais usado no Brasil durante a pandemia, o Whatsapp está transformando a maneira como conversamos uns com os outros e criando novas formas de diálogo

Mariana Payno 20 de Setembro de 2020
Sariana Fernández / Nexo Jornal

Vem de zap: a transformação do diálogo

Aplicativo mais usado no Brasil durante a pandemia, o Whatsapp está transformando a maneira como conversamos uns com os outros e criando novas formas de diálogo

Mariana Payno 20 de Setembro de 2020

Quando, há seis meses, boa parte do mundo se viu obrigada a adaptar a rotina para trabalhar em home office, eu já estava, digamos assim, em casa. Para alguém que foi freelancer por muito tempo e tinha se acostumado a lidar com os contatos profissionais pelo Whatsapp, foi curioso observar como meu companheiro se irritava porque certas situações “seriam mais fáceis de resolver indo até a mesa da pessoa do que enviando uma mensagem”. Me vi, porém, recorrendo ao aplicativo para diálogos até então inéditos: uma ligação de vídeo com a avó, que antes só sabia mandar áudio; um papo rápido com a veterinária sobre os resultados dos exames da cachorra; os pedidos de alguns itens de mercado pelo delivery; o agendamento de uma consulta médica online.

Assim como eu, a imensa maioria dos brasileiros passou a usar mais frequentemente o Whatsapp para diversos tipos de conversa durante a pandemia: um estudo realizado pelo Núcleo de Marketing e Consumer Insights da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing) constatou que o aplicativo foi o mais utilizado nesse período por 97% dos entrevistados. Mas esse cenário não é exatamente novo — antes da crise do coronavírus, 99% dos smartphones do país já tinham o app instalado. O Brasil é, inclusive, um dos lugares do mundo em que o zap (olha só, até apelidos nós criamos) é mais popular +.

É claro que nossas práticas de interação do dia a dia não passariam incólumes a uma atividade tão expressiva. Características que os especialistas em linguagem e comunicação geralmente observam nas nossas conversas cara a cara, desenvolvidas pela espécie humana milênios atrás, parecem estar se transformando e se adaptando à realidade das mensagens instantâneas. Um processo que pode ter se iniciado com outras ferramentas — os saudosos ICQ e MSN e o Messenger do Facebook já existiam quando o Whatsapp foi criado em 2009 — foi se acentuando à medida que passamos a dialogar com mais frequência por esses meios.

“Esse tipo de plataforma tem potencialidades muito além do face a face para nos comunicarmos, mas também traz dificuldades. Acabamos encontrando outras formas de suprir as pistas fundamentais que perdemos”, diz Paulo Segundo, professor e pesquisador do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP e coordenador do Núcleo de Estudos em Análise Crítica do Discurso da universidade. Nesse sentido, um aspecto básico é aquilo que os linguistas chamam de “turno”, ou seja, a vez de cada um falar na conversa — coisa que pode acabar ficando bem atrapalhada pelo Whatsapp. Quem nunca apagou tudo que já tinha escrito quando uma nova mensagem chega enquanto estamos digitando?

Se nas conversas presenciais, ou mesmo em ligações telefônicas, estamos acostumados a identificar vestígios no outro para saber nossa hora de começar ou parar de falar, por mensagem a dinâmica é diferente. “Não dá para dizer que um turno de fala corresponde a um de escrita. No Whatsapp, muitas pessoas têm a tendência de fragmentar o turno em várias mensagens. Às vezes estamos digitando sincronamente com a outra pessoa e não conseguimos visualizar o que ela respondeu nesse processo. Estamos desenvolvendo a ideia, a pessoa responde, interrompe o fluxo, fazemos outra coisa”, explica Segundo.

Tudo junto e misturado

A questão dos turnos de fala expõe outra dimensão fundamental a toda conversa: a sincronicidade. Pelo Whatsapp, sabemos bem, a temporalidade das interações presenciais é muitas vezes reproduzida, pero no mucho. Afinal, todo mundo já ficou irritado quando alguém não respondeu na velocidade em que se estava esperando. “Aqui estamos diante de outro fenômeno atual, que chamo de uma certa ‘ansiedade textual’: precisamos ter respostas imediatas, sempre mandar coisas para os outros, estamos o tempo inteiro lendo e consumindo textos, partilhando, distribuindo, recebendo, comentando”, observa o professor da USP.

É o que acontece com alguns clientes da veterinária Lia Nasi, 42, cujos atendimentos quase sempre começam via conversas no app. “As pessoas ficam cobrando: ‘você está online e não me responde, esqueceu de mim? Muitas não sabem que em um dia eu tenho seis casas para ir, 75 mensagens para responder. Demanda tempo e elas querem tudo para ontem”, diz. Ela conta que nos dias em que não está atendendo a domicílio, passa cerca de oito a nove horas respondendo mensagens. Ainda assim, prefere fazer tudo pelo aplicativo porque acredita que ele otimiza as tarefas.

Nasi não está sozinha nessa. Outra característica dos nossos diálogos pelo Whatsapp é que eles são simultâneos: sim, administramos muitas conversas, todas ao mesmo tempo. Isso pode parecer um movimento banal, mas significa que estamos a todo momento nos revezando entre diversos tipos de linguagem e diferentes temas — o que não é nada comum em outras maneiras de interação. “Em geral, a gente se comunica com o outro por um tópico de cada vez, com trocas de turno, ainda que o assunto mude e volte, com digressões. No Whatsapp são várias coisas: assuntos diferentes, pessoas com relações mais horizontais ou mais verticais”, avalia Paulo Segundo.

Fomos entendendo, então, que não dá para mandar para o chefe a mensagem de bom dia que agrada a vovó e que às vezes o ponto final em uma frase cai bem com o professor, mas não com o colega de classe. Parece intuitivo, é verdade, mas essa grande dança discursiva é um baita (e constante) exercício de adequação. “Nas atividades do Whatsapp estamos ligados a múltiplos registros de linguagem e temos que nos adequar o tempo todo para não sermos mal entendidos ou gerarmos efeitos inesperados no outro”, explica o pesquisador.

Sem limites

Com tantas notificações pipocando, não raro deixamos alguma ideia passar — e tudo bem, se for naquele grupo de amigos que discutem o jogo de futebol pelo qual você não se interessa. Mas quando o trabalho invadiu seu Whatsapp, perder informações importantes pode ser um problema. “Tem que ter cuidado e se organizar. Sempre tento pegar tudo que está sendo falado no grupo e trazer isso para alguma outra plataforma, algo um pouco mais tradicional, para que a coisa não fique tão solta. É quase formalizar aquilo”, conta Daniel Batista, 34, que é produtor executivo de publicidade e muitas vezes coordena campanhas e projetos pelo app.

A educadora Iara Haasz, 41, tem enfrentado o mesmo tipo de dificuldade com os alunos durante a pandemia. Com a escola fechada, eles criaram um grupo para se comunicar, porém nem todo tipo de conversa cabe ali. “O Whatsapp dá conta de recados e coisas que vão acontecer imediatamente, mas se perde muita coisa. Para informações mais duradouras preciso usar outros meios”, diz ela. Por outro lado, é justamente por essa dinamicidade dos diálogos que tanto Haasz quanto Batista consideram o aplicativo útil para fazer pequenas reuniões por texto e tomar decisões mais agilizadas no dia a dia.

Em outras situações, administrar tantas mensagens não é fácil, principalmente quando isso envolve pessoas que ignoram limites e conveniências de horário. “Em vários momentos, faço o esforço de não ler as mensagens”, diz Haasz. “A quantidade de coisas que recebo de sexta à noite é uma loucura, e eu respondo na segunda de manhã. Mas aí tenho que lembrar na segunda-feira que preciso voltar às mensagens não lidas e responder. Olhar email e olhar Whatsapp é a mesma coisa em termos de trabalho.”

Ou não, na opinião de Carlos D’Andréa, professor do Departamento de Comunicação da UFMG e coordenador do grupo de pesquisa Estudos Redes Sociotécnicas — porque nem todo mundo consegue ignorar as notificações. “A arquitetura do Whatsapp nos induz às trocas em tempo real: a conversa está acontecendo agora e se você não participar, já era”, diz. “Uma coisa é responder um email, outra é ser pego com uma mensagem de trabalho na hora do almoço e ser induzido a responder, ainda que mais ou menos.” Mesmo com a opção de desativar os risquinhos azuis — aqueles que indicam que de fato estamos online e vimos a mensagem —, podemos ser tomados pela ansiedade de ler e responder tudo na hora.

Posso mandar um áudio?

Eis outra esfera em que os limites são polêmicos. As reações, em geral, são polarizadas: há quem ame e quem odeie receber aquela mensagem de voz de 30 segundos ou sete minutos. Não à toa, desenvolvemos uma certa regra de etiqueta: “Posso te mandar um áudio?”, “Desculpa estar mandando áudio, mas…”. “O comentário metadiscursivo chama a atenção para o áudio que será enviado para que ele não seja negligenciado”, explica Paulo Segundo. Uma estratégia que já aplicávamos nas conversas fora do Whatsapp: “Presta atenção nisso”, “Escuta o que eu vou te dizer”.

O grande apelo dos áudios é que eles conseguem recriar algumas características das conversas presenciais: tom de voz, pausas, respirações, hesitações. Talvez por isso, remetam a um lugar de intimidade e exijam algumas vezes uma sondagem cheia de dedos para avaliar se é aceitável enviá-los. Ainda assim, diz Segundo, “o padrão de acesso aos áudios não é o típico da oralidade”. “É uma nova maneira de lidar com a realidade que não é aquela de sempre da espécie humana: o oral tem resposta imediata e a gente consegue medir a expressão facial, o gesto, a resposta”, explica. “O principal problema é que não acessamos as expressões faciais do outro.”

Um problema que ficou fácil de resolver, com as chamadas de vídeo. Instabilidades de conexão à parte, foi com elas que o Whatsapp (e outras plataformas, claro) quase conseguiu suprir a completude dos diálogos presenciais. “A gente passa um tempo sem ver a filha, o genro e o neto. É muito mais gostoso ver a imagem. Não é igual estar junto, mas melhora bem”, diz Maria Cecília Fava, 80 — que, ao contrário da minha avó, aprendeu a fazer ligações por vídeo pelo app muito antes da pandemia, para falar com a filha que mora nos EUA. Pela tela do celular, ela vê o neto abrindo os presentes que mandou pela internet, as flores no jardim da filha e mostra as reformas da casa e os móveis novos que comprou.

Conversas miúdas

Em momentos assim, como o de Fava com a família, o Whatsapp parece recuperar a função primeira a que sempre se prestou: “ser o espaço de lazer, da conversa gratuita em que vamos compartilhar nossas experiências de vida”, define Segundo. O próprio aplicativo se define como uma ferramenta para “manter o contato com amigos e familiares, a qualquer hora ou lugar”. Em meio a tantas mensagens de trabalho e saudações genéricas de bom dia encaminhadas para dez grupos diferentes, não perdemos de vista os papinhos miúdos que, afinal, fazem bem dentro e fora das telas.

“Essas conversas sem uma finalidade específica fazem muita falta, embora muitas vezes a gente não perceba”, observa D’Andréa, da UFMG. Talvez esteja aí a explicação para um movimento que tomou o grupo de pais da escola em que Iara Haasz trabalha: “Depois de um tempo de isolamento, começaram a acontecer umas conversas que parecem de portão, trocas corriqueiras”, conta ela. Ou para o fato de que eu e minhas amigas da faculdade, que antes marcávamos encontros mensais ou até menos frequentes do que isso, passamos a falar sobre a vida diariamente pelo Whatsapp.

Os afastamentos durante a pandemia só potencializaram os dois lados da moeda que já estavam ali: estar a uma mensagem de distância da avó ou do chefe traz novas formas conforto, mas também ansiedades inéditas. Escrevo isso depois de marcar todas as entrevistas que fiz para este texto pelo Whatsapp e, nesse processo, esquecer de responder por dias uma amiga do outro lado do oceano que foi jogada lá para baixo nas notificações e teve que entrar na minha longa listinha de coisas a fazer, como se uma relação pessoal se transformasse em mais uma tarefa a ser cumprida.

Não é preciso ser um grande especialista para sentir essas alterações que a possibilidade de enviar e receber um zap provocou nas nossas conversas. Enquanto os estudiosos ainda estão por entender o que tudo isso realmente significa, nós, zapeiros, seguimos tentando lidar com múltiplas janelinhas.

Colaborou Manuela Stelzer
Os diálogos das imagens são mera ilustração