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Rodolpho Amoedo

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Semana

Como ter conversas difíceis e importantes

Estar disposto a ouvir é o primeiro passo para que o diálogo aconteça. Seja para romper parcerias de trabalho, comunicar notícias tristes, compartilhar aprendizados com os filhos

Laura Capelhuchnik 20 de Setembro de 2020
Rodolpho Almeida

Como ter conversas difíceis e importantes

Estar disposto a ouvir é o primeiro passo para que o diálogo aconteça. Seja para romper parcerias de trabalho, comunicar notícias tristes, compartilhar aprendizados com os filhos

Laura Capelhuchnik 20 de Setembro de 2020

Em algum ponto da vida você terá de conduzir uma conversa difícil, para a qual talvez não esteja preparado — essa é uma das poucas certezas que temos entre o nascimento e a morte. Porque erramos e precisamos pedir desculpas, trabalhamos gerindo e compondo grupos com opiniões diversas, nos deparamos com situações desafiadoras na educação de crianças, nos ambientes familiar e profissional.

Dar a partida em conversas sobre temas sensíveis costuma ser difícil porque nos vemos diante de uma espécie de dilema moral, segundo a psicóloga americana Emma Levine, pesquisadora da Universidade de Chicago: ao mesmo tempo em que sentimos que é necessário ser honesto com o interlocutor, pesa também a obrigação de ser gentil e ter cuidado para não ferir os sentimentos de quem nos ouve. Por isso corremos o risco de exagerar na franqueza ou, tão prejudicial quanto, na benevolência.

Não há receita pronta para conduzir diálogos equilibrados — nem mesmo seria produtivo seguir um script, já que aí não seria um diálogo — mas há meios de fortalecer a musculatura nas relações para lidar com temas desafiadores. Atenção ao contexto, a aspectos do universo pessoal do interlocutor e suas reações são alguns dos elementos que ajudam na hora de falar sobre assuntos sensíveis.

Também vale recorrer a alguém de fora da situação com quem você possa falar e também possa se escutar. Ajuda a organizar as ideias e diminuir a aflição do momento. “Quanto mais preocupado estou com a história na minha cabeça, menos espaço eu tenho para ouvir o outro”, diz Dominic Barter, especialista em Comunicação Não-Violenta, para quem a capacidade de escuta e a sinceridade nas palavras são elementos essenciais para uma conversa transformadora.

A seguir, especialistas ouvidos por Gama indicam caminhos para iniciar alguns dos diálogos difíceis que são comuns a diferentes trajetórias: rupturas, feedbacks profissionais, luto, preconceito e erros assumidos.

Falar de racismo com crianças

Cada faixa etária requer uma abordagem diferente. Para crianças muito pequenas, introduzir a diversidade e celebrá-la é o primeiro passo. “Na educação infantil, começamos apresentando as diferenças raciais, para, mais adiante, observar como cada criança se relaciona com a diversidade”, explica Marleide Soares, psicóloga que trabalha com orientação de famílias no contexto do racismo na infância. Essa conversa pode começar a partir de um filme ou desenho animado com personagens negros, da brincadeira com bonecos e também por meio de livros. Marleide recomenda “O Black Power de Akin”, de Kiusam Oliveira (Editora de Cultura, 2020), e “Ada Batista, Cientista”, de Andrea Beaty (Intrínseca, 2019).

Desde muito novas, na educação infantil, crianças têm práticas racistas no ambiente escolar. É o que conta Luciano Ramos, consultor em masculinidades e paternidades negras, que prepara um livro sobre as relações entre pais e filhos vivenciando a experiência de racismo, com lançamento previsto para novembro de 2020. “Às vezes você não tem tempo de fazer a criança entender que ela vai sofrer preconceito, porque a violência se antecipa. Nesse caminho, acho que o que vale é criar processos de empoderamento e educação diários para as crianças desde muito novas”, explica.

Ele recomenda também valorizar a diversidade por meio de atividades que falem da potencialidade, beleza e história de pessoas negras. “Hoje temos a possibilidade de mostrar que esses homens e mulheres vindos da África eram reis e rainhas, príncipes e princesas. Que têm um histórico anterior à escravidão que é muito bonito, uma história que precisa ser contada”, explica. Para uma educação antirracista, Marleide Soares também recomenda propor às crianças exercícios de observação de pessoas negras na escola e em outros ambientes de socialização. “No caso de crianças brancas que convivam num contexto majoritariamente branco, é preciso apresentar um outro universo de convivência social e questionar estereótipos raciais”, explica.

À medida que as crianças amadurecem, esse exercício de observação pode se estender a outros campos, como a mídia e as redes sociais. Um manual da UNICEF recomenda que os pais sejam curiosos, façam perguntas a suas crianças sobre o que elas têm ouvido sobre o tema, criando oportunidades para pautar preconceitos.Ter conversas honestas e abertas com os filhos também aumenta a sua confiança e as incentiva a trazer perguntas e incômodos sobre o tema aos adultos.

Comunicar uma morte

A morte pode ter significados radicalmente diferentes para cada pessoa e a depender do momento em que acontece. “A notícia é a mesma para todo mundo, mas a forma como que ela é entregue é uma tentativa de cuidar do significado que a pessoa que morreu teve para cada um”, explica Dominic Barter. A transmissão precisa ser feita de maneira clara, branda e objetiva, mas tão importante quanto falar é amparar o receptor.

O que acontece muitas vezes é que quem ficou encarregado de informar não lida bem com a situação — e acaba não se preparando para comunicar os demais. “Um passo fundamental é conseguir primeiro acolher a notícia para mim mesmo, para depois eu conseguir transmitir de uma forma que o outro possa suportar”, explica Marcelo Sodelli, professor de psicologia da PUC-SP. Ele também recomenda, se possível, atenção a um espaço tranquilo, em que a pessoa possa ficar à vontade para expressar o que sente e ser apoiada.

Compreender o universo do interlocutor — o grau de proximidade com quem morreu, a maneira como pode reagir à notícia, o momento de vida — também é uma das dicas dos especialistas para definir o modo como se coloca a questão na conversa. E, na medida do possível, é bom se manter disponível para o momento posterior: “São tantas as reações possíveis que o que realmente tende a fazer a diferença é como a pessoa mantém o contato depois de dar essa notícia”, diz Barter.

Dar feedbacks para a equipe

Um dos motivos pelos quais o feedback pode ser fonte de tensão é o fato de ser encarado como um evento esporádico, o que torna tudo mais cerimonioso. Um fluxo de retorno constante, com conversas que vêm logo na sequência das ações, pode ser muito mais produtivo e confortável do que se ocorrer somente em momentos eventuais.

Segundo Juliana Sardinha, especialista em Comunicação Não-Violenta e membro da ABRH (Associação Brasileira de Recursos Humanos), entender os feedbacks como uma prática rotineira amplia a confiança entre líder e liderado e torna mais familiar esse tipo de conversa. “Um processo de organização interna anterior à conversa também pode apoiar sua condução, para ter claras suas intenções e partir de fatos observáveis, não de julgamentos”.

É bom se planejar, mas sempre com espaço aberto à escuta. “Um modelo de liderança muito mais relevante no mundo moderno em que vivemos hoje é o que demonstra capacidade de ouvir, aprender, e mudar de ideia junto com os outros”, afirma Dominic Barter. Mas sem perder de vista a objetividade e a sinceridade na apresentação. Amaciar demais ou dar muitas voltas num feedback para parecer simpático pode ser confuso e até mesmo irritante para quem está ouvindo.

Segundo Barter, uma forma de ser gentil sem ser excessivamente benevolente é falar de maneira específica e sincera, mas centrar o feedback na conduta, e não na pessoa. “Eu não dou feedback sobre você, eu dou feedback sobre seu último trabalho, a maneira como você contribuiu para a última reunião. Sempre algo que é mutável, algo que você pode aprender e crescer”.

Por fim, além de criar um espaço aberto aos feedbacks críticos, é fundamental se lembrar de celebrar o que é positivo. “Muitas vezes a gente fica cobrando e esquece de reconhecer as conquistas e também as contribuições que não deram certo, mas envolveram um baita esforço. Também são importantes”, comenta Dominic Barter.

Sair de um projeto, romper uma parceria

Uma ruptura pode se dar com diferentes graus de surpresa e de tensão, explica Juliana Sardinha. O que faz com que esse tipo de conversa demande maior atenção à dimensão intrapessoal — o que ocorre no universo de cada um, e que não necessariamente está verbalmente explícito. “É importante lembrar que eu tenho acesso ao impacto do outro sobre mim, mas não ao impacto do que eu falo sobre o outro”, diz a psicóloga.

Por isso é sempre bom deixar claro o objetivo desde o início da conversa, mas, antes, organizar mentalmente sua intenção com a fala e o que você pretende construir a partir dali. Por exemplo, se é uma ruptura definitiva ou se você pretende manter aquela conexão para o futuro. Esses detalhes mudam o jeito como o diálogo deve ser conduzido. Segundo Juliana, pode ajudar expressar essa intenção para o interlocutor — o desejo de manter a porta aberta ou de que a conversa seja legal e construtiva para todos os envolvidos, por exemplo — junto com o anúncio da saída.

A atenção aos sinais conforme a conversa se desenrola também é valiosa nesse tipo de interação. “Um dos maiores problemas de um diálogo é quando temos a ilusão de que ele está acontecendo, mas não está. Dependendo de como o anúncio impacta a pessoa, ela pode ter sua habilidade de escuta reduzida e dificuldade em decodificar o que está acontecendo.”

Quanto mais simplicidade e objetividade, mais compreensível fica a troca. Desacelerar o ritmo para oxigenar as ideias e encontrar as palavras certas também é uma boa estratégia para que a conversa flua bem.

Assumir uma traição em uma amizade

A primeira conversa que você tem é com você mesmo, para refletir sobre o erro, reconhecer a responsabilidade, mas também compreender o sentimento de vergonha e a falibilidade humana, segundo Sodelli. “Ter uma conversa com alguém para falar sobre minhas falhas é mostrar que eu consigo compreender que errei, mas também que as todas as pessoas podem errar”, explica. Para o psicólogo, o perdão também surge da compreensão da imperfeição humana, mas para isso é necessário que o pedido de desculpas chegue da maneira mais autêntica possível, sem tentativa de manipulação de sentimentos.

Na visão de Dominic Barter, a chave está em aprender a lidar com a decepção dos outros e também cultivar parcerias onde haja espaço para a sinceridade, mudança e crescimento: “Quem vai falar a verdade para o rei, se ele pode cortar uma cabeça? Eu quero criar um ambiente em que seja seguro falar a verdade, o que é cada vez mais raro hoje em dia”, afirma. “E dentro disso, quando eu cometi um erro, quando eu traí meus próprios princípios ou quebrei um acordo, meu desejo de ser sincero é [visto como] uma contribuição para fortalecer os elos, não para fragilizá-los.”