Como a bicicleta pode causar uma transformação social — Gama Revista
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Semana

Minha bike, minha vida

A bicicleta é um mecanismo poderoso de união e transformação social. Conheça histórias de pessoas que mudaram suas vidas em cima de duas rodas

Manuela Stelzer 28 de Novembro de 2021

Minha bike, minha vida

Manuela Stelzer 28 de Novembro de 2021
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A bicicleta é um mecanismo poderoso de união e transformação social. Conheça histórias de pessoas que mudaram suas vidas em cima de duas rodas

Ao jogar “grupos de bicicleta” no Google, prepare-se para se deparar com algumas centenas de opções de comunidades unidas por duas rodas e um guidão. Bike Anjo, Pedal das Gurias, Warm Showers, Club Gràcia, Femibici e La Frida Bike são apenas alguns exemplos dos milhares que existem no Brasil e no mundo. Cada um com sua finalidade específica, eles se ligam por um único elo: formam comunidades e geram encontros entre pessoas de diferentes universos por meio da bicicleta.

Para além dos benefícios individuais de saúde, maior economia e menor estresse, a bike surtiu um certo efeito de transformação em quem quer que tenha subido em uma. Gama ouviu histórias de quem tem a bike como aliada no busca por uma cidade melhor; de quem a tem como melhor amiga de viagem; de quem a estuda, pesquisa e acredita no seu potencial de mudança social; de quem a usa como forma de se deslocar, mas também como um esporte. Em todos os relatos, é unanimidade que a bicicleta é mais do que lazer, atividade física ou ativismo — é o meio de transporte mais social de todos, que une amigos, amores e até desconhecidos.

Juliana Hirata  Foto Arquivo Pessoal/Ilustração Mariana Simonetti

Se não fosse pela bicicleta, não conheceria nem um terço das pessoas que conheço”

Desde 2016, a bióloga Juliana Hirata, de 41 anos, vive na estrada. Em cima da bike, só leva o essencial: sua câmera, o corpo e a própria história. A bicicleta sempre foi sua parceira, meio de transporte e uma espécie de meditação, como ela define. Mas na viagem, ganhou proporções ainda maiores. “É uma extensão do meu corpo. Tem dias que eu passo de três a quatro horas sem colocar o pé no chão. É o mais próximo que tenho de voar, porque a bicicleta é o meu único elo de ligação com o planeta todo. Pra mim, isso é gigante”, conta.

Além de caminho para o autoconhecimento, viver sobre duas rodas permite que a Juliana conheça uma infinidade de pessoas. “Sou muito introvertida. Se não fosse pela bicicleta, não conheceria nem um terço das pessoas que conheço.” Segundo ela, seu meio de transporte é sua casa, o que a torna vulnerável. “Carrego tudo que tenho comigo. Quando as pessoas me olham, elas veem toda a minha casa, minha forma de vida. A bicicleta me expõe totalmente.”

Por mais que passe boa parte do seu trajeto pedalando e acampando sozinha para dormir, em algumas situações recorre a casas que alojam ciclistas. O grupo tem nome: Warm Showers, ou banho quente, em português. A organização, sem fins lucrativos, une um ciclista que busca um lugar para ficar a uma pessoa que possa dar esse abrigo. Durante seus cinco anos de estrada, são muitas as casas e famílias que Juliana já conheceu.

Em 2016, sua bicicleta estreou o poder de unir — e ajudar. Em passagem pelo sul do Canadá, ela ficou sabendo de uma canadense que sobreviveu a um estupro, cujas consequências a colocaram em coma por dias. Em depressão e sem conseguir sair de casa, ela acompanhava a viagem da Juliana pelo blog e perfil no Instagram, o que a ajudava no seu processo de terapia. “Ela estava dentro de casa há um ano e meio. Abandonou a vida, o trabalho e a faculdade, tudo por conta do trauma. E a primeira vez que ela saiu de casa foi junto comigo e o irmão, todos de bicicleta para dar uma volta no quarteirão”, conta. “No final, choramos muito. A bicicleta é isso: permite que você se supere de várias maneiras.”

Fuga CC  Foto Divulgação/Ilustração Mariana Simonetti

“Claro que tem essa parte de pedalar rápido, treinar, mas o foco é o social”

Antes de fundar um grupo de ciclistas que fosse a sua cara, o designer gráfico Paulo Zapella, de 38 anos, trabalhou em alguns outros, mas não se viu entre aquelas pessoas. O esporte, ainda que fosse um fator importante na conta, não era tudo, e Zapella sentia falta do convívio, da parte social que extrapola a atividade física. “Nos encontrávamos, pedalávamos e logo íamos embora. Fundei o Fuga para unir pessoas com quem me identificasse, e para que pudéssemos promover encontros.”

De acordo com ele, 90% do seu ciclo social vem da bike. “As pessoas convivem bastante fora do horário do pedal, se encontram, casais e amizades se formam, também relações de trabalho”, conta. Além da afinidade e gosto pelo ciclismo, forma-se uma comunidade leal e dedicada. Zapella relembra a história de um amigo que, em um momento financeiro e pessoal difícil, quase largou o guidão — mas uma vaquinha feita pelos colegas ciclistas para que ele arrumasse a bicicleta o fez voltar a pedalar e o ajudou no combate à depressão.

Zapella, entretanto, faz sua crítica a esses grupos de ciclistas — em sua maioria bastante elitizados. Roupas, capacetes e bicicletas próprios para competições restringem o acesso pelo preço salgado. “Tem essa parte de unir a comunidade, mas é uma bolha.” Mas, diferentemente de outro grupos que focam prioritariamente no esporte e na performance, o Fuga CC foi pensado para ser meio de agregar pessoas — pela bicicleta. Ao conhecer um grupo de ciclistas na Espanha que tinha essa premissa, o clube Gràcia, se inspirou para tentar algo parecido no Brasil. “Gostamos do esporte e não negamos, claro que tem essa parte de pedalar rápido, treinar, mas o foco é o social. A questão é estar entre pessoas que querem pedalar, se divertir e quem sabe tomar uma cerveja depois. É o que o esporte e a bike proporcionam além da endorfina, da saúde, etc.”

Fabio Nazareth  Foto Arquivo Pessoal/Ilustração Mariana Simonetti

Voltei a sentir tudo que sentia quando era criança, a sensação de liberdade, endorfina circulando”

Depois de anos longe dos pedais, o artista plástico Fabio Nazareth, de 43 anos, recuperou o hábito de pedalar, perto dos 30. “Voltei a sentir tudo que sentia quando era criança, a sensação de liberdade, endorfina circulando. Voltei a nadar, me matriculei numa academia, repensei minha alimentação. A bicicleta me levou pra esse lugar, de reconexão com o meu corpo.”

A nostalgia e o entusiasmo com a bike o fez buscar alguns grupos, entre os muitos que existem, para pedalar por mais tempo e maiores distâncias. Chegou a viajar de bicicleta, em um dos primeiros circuitos de cicloturismo no Brasil, em Santa Catarina, e abriu mão do carro como meio de transporte. “Sempre fui muito acelerado, mas comecei a perceber que queria ser mais contemplativo, menos agitado. Quando comecei a participar de grupos de bicicleta, todos muito competitivos, percebi que não me identificava”, explica ao mencionar que, em 2009, depois de uma viagem sobre duas rodas, percebeu que o que mais lhe agradava não era a chegada, mas o trajeto.

Três anos depois, mais um grupo apaixonado pelo ciclismo nasceu — mas dessa vez, mais lento. “O Pedalentos virou quase uma filosofia, comecei a levar essa mensagem da contemplatividade, de pedalar devagar, não ter pressa pra chegar, e perceber que a viagem em si é o que precisamos vivenciar.” Outras pessoas se interessaram por esse tipo de pensamento, se uniram ao trabalho de Nazareth, e formaram uma comunidade coesa.

Hoje, além do Pedalentos, ele ajuda e guia pessoas que têm deficiência visual para pedalarem, uma ação em parceria com o projeto carioca Pedala Junto. Também já ensinou diversas crianças e adultos a andarem de bicicleta. E muitos de seus alunos jamais o esqueceram. “Outro dia encontrei um jovem que olhou bem para mim e perguntou se eu me chamava Fabio. Também disse que eu costumava ter mais cabelo. Dei risada e disse que tinha mesmo, mas não entendi o que ele estava falando. Aí ele disse que tinha aprendido a pedalar comigo quando era criança, dez anos antes, e que ainda lembrava de mim”, conta.

Ana Nassar  Foto Arquivo Pessoal/Ilustração Mariana Simonetti

“Sempre que vemos uma outra pessoa pedalando, mesmo sem conhecê-la, nos sentimos mais seguros, amparados”

A bicicleta não só constrói relacionamentos íntimos e duradouros entre pessoas, como é um elo entre ciclistas desconhecidos — capaz de unir até mesmo aqueles que não sabem o nome um do outro. “Sempre que circulo de bike pelo meu bairro e vejo pessoas caminhando ou pedalando, naturalmente rola um aceno, um cumprimento. É uma forma de dizer: estamos juntos nessa”, conta a cientista política e diretora de programas do ITDP Brasil (Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento) Ana Nassar. “É um sentimento de união, porque sempre que vemos uma outra pessoa pedalando, mesmo sem conhecê-la, nos sentimos mais seguros, amparados.”

Desde criança, os temas socioambientais sempre chamaram a atenção da Ana, que queria se envolver ao máximo no debate. A bicicleta foi uma dessas tentativas, de lutar e agir de maneira individual. Seu interesse pessoal virou trabalho, e ela passou a atuar na área de mobilidade. De 2014 a 2017 foi voluntária no Bike Anjo, que ensina pessoas a pedalarem. “Ensinei uma professora uma vez, e foi muito interessante porque ela se emocionou demais quando aprendeu. Percebeu que, mesmo mais velha, não só sabia ensinar, como era capaz de aprender também.”

Ao pedalar, Ana sempre cruza com pedestres e outros ciclistas, a quem direciona um sentimento de cumplicidade. “Uma vez, enquanto andava de bicicleta com meu filho, um carro parou na ciclovia e me impediu de passar. Foram pedestres e ciclistas anônimos que viram a minha situação e meio que compraram a briga ali, para me ajudar”, conta. “Não estou dizendo que todo mundo que pedala é cicloativista, mas em última instância, a pessoa sabe, ao pedalar em São Paulo, que tem muita coisa para melhorar.”

Tássia Furtado  Foto Arquivo Pessoal/Ilustração Mariana Simonetti

Os grupos que se unem pela bicicleta parecem estar, realmente, sempre em sintonia. A estudante de arquitetura e urbanismo Tássia Furtado, de 37 anos, conta do dia em que recebeu uma mensagem de uma das integrantes do Pedal das Gurias, grupo que participa, que havia furado um pneu da bike a caminho do encontro. Sem pensar duas vezes, a Tássia foi até a amiga, e ao chegar, se deparou com 30 mulheres que desviaram o caminho original para amparar a colega. “Aquilo me trouxe uma alegria, me fez perceber que temos essa rede de apoio que não serviu só para trocar o pneu dela, como melhorou o meu humor, que estava triste e desanimada naquele dia”, explica. “Não interessa onde estou, como estou, sei que sempre tenho pessoas por perto para contar.”

Para Tássia, Ana e todos os outros, a bicicleta parece ser um vício contagiante. Como se, ao pedalar uma única vez, alguma chavinha virasse na cabeça, e fosse impossível se separar da bicicleta. “É fácil gostar, porque a bike é plural: é um meio de transporte, lazer, esporte, é muitas coisas. E justamente por ser múltipla, ela é o ponto de encontro entre as pessoas”, finaliza Tássia.