A história de Diego Salgado que entrega as tortas do pai de bicicleta — Gama Revista
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Foto Arquivo Pessoal/Ilustração Mariana Simonetti

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Depoimento

A torta do pai, a bike do filho

A história de um ciclista que passou a entregar as tortas produzidas pelo pai durante a pandemia viralizou na internet. Passados 18 meses e 23 mil  quilômetros rodados, o filho relata essa experiência a Gama

Diego Salgado 28 de Novembro de 2021

A torta do pai, a bike do filho

Diego Salgado 28 de Novembro de 2021
Foto Arquivo Pessoal/Ilustração Mariana Simonetti

A história de um ciclista que passou a entregar as tortas produzidas pelo pai durante a pandemia viralizou na internet. Passados 18 meses e 23 mil  quilômetros rodados, o filho relata essa experiência a Gama

Eu sempre tive a bicicleta como companheira de vida. Grandes lembranças da minha infância, por exemplo, têm a bike no enredo, como no dia em que, aos seis anos, cogitei virar a esquina da rua onde eu morava e abandonar a mesmice de uma faixa de 50 metros de asfalto. Meus pais, atentos, impediram tal loucura.

Essa vontade de conhecer novos lugares em cima de uma bicicleta, no entanto, acompanhou-me ao longo dos anos. Aos 19, enfim, consegui “virar” aquela velha esquina da rua da minha infância. A bike, então, tornou-se o meu meio de transporte. Àquela altura, pedalar representava mais do que a curiosidade de encontrar novos asfaltos. Eu recorri a ela para salvar o dinheiro do vale-transporte pago pelo meu empregador. A ideia amadureceu: sim, era possível fazer tudo de bicicleta.

Tudo o que aconteceu nos últimos 18 meses reforçam essa ideia. Com o planeta mergulhado na pandemia, a bike novamente serviu como solução. Explico: meu pai, um motorista de aplicativo, teve de parar de sair às ruas para trabalhar, a fim de se proteger do vírus. Ele acatou um pedido dos filhos, em um primeiro momento. Diante da situação financeira desfavorável, porém, decidiu que voltaria a dirigir pela cidade, mesmo diante do perigo de infecção.

Eu pedi que ele abandonasse aquela ideia e acatasse um pedido que fazia há dias. Meu pai sempre foi um exímio cozinheiro, com especialidade em tortas salgadas, uma receita de família que era obrigatória nos nossos almoços. Após um processo de convencimento, ganhei autorização para fazer uma postagem em uma rede social. Fiz, na verdade, um apelo. E com um elemento que seria fundamental para o sucesso: eu mesmo entregaria as tortas de bicicleta, com entrega grátis para as zonas sul e oeste de São Paulo.

Convivi de perto com outros entregadores. Recebi ajuda, ofereci auxílio e percebi que a bike é mesmo uma solução para muita gente

A postagem viralizou com força. Na primeira noite, recebi mais de 800 mensagens, de muitas regiões do país. O desafio estava posto. Era preciso organizar todos os pedidos numa planilha e começar a separar as entregas por bairro. Simultaneamente, meu pai começou a fazer, sozinho, 12 tortas por dia, na cozinha da casa dele. A fila de espera chegou a quatro semanas, mesmo com produção quase diária e entregas de segunda a segunda.

O jornalista e ciclista Diego Salgado  Foto Arquivo Pessoal/Ilustração Mariana Simonetti

Diante desse imenso desafio, de pedalar por todo o centro expandido de São Paulo, uma experiência se mostrou valiosa. Em 2018 e 2019, fiz duas cicloviagens pelo mundo. A primeira, de Porto Alegre a Santiago, num percurso de 1.939 km, feito em 27 dias. A segunda, de Barcelona a Amsterdã, em 2.028 km em 29 dias. A média, nos dois casos, girou em torno de 70 km, uma meta traçada por mim no novo ofício. Seria tranquilo, se não fosse um porém: eu tinha outro trabalho para tocar – sou jornalista e mantive as atividades, de oito horas diárias, normalmente.

Com muitos flashes das viagens na cabeça, consegui me adaptar às condições impostas por uma cidade como São Paulo, repleta de ladeiras, asfalto irregular e ainda muita desinformação em relação aos direitos dos ciclistas.

Semana a semana, fui alcançando novos bairros, novas regiões. Meu pai, por sua vez, aumentou a produção, com a ajuda de uma cozinheira e de equipamentos. Assim, zeramos a fila.

Vi a cidade fechada em meio à pandemia, as ruas vazias, a esperança na efêmera melhora, o agravamento da situação e, enfim, uma reabertura que parece mais sensata

Nas ruas, bati algumas marcas que eram inimagináveis para mim. Pedalar mais de 100 km, por exemplo. Ou levar as tortas até outras cidades, como Guarulhos, São Bernardo do Campo, Santo André, São Caetano, Diadema, Osasco, Barueri, Taboão da Serra. A quilometragem acumulada se multiplicou rapidamente. E, logo, comecei a superar a distância das viagens pelo mundo. As entregas ainda supriram toda a expectativa que eu tinha sobre a minha terceira cicloviagem, na Nova Zelândia, marcada para abril de 2020, desmarcada devido ao avanço da pandemia. As ruas de São Paulo, então, tornaram-se estradas neozelandesas.

Depois de 18 meses de trabalho, quase 8 mil tortas foram produzidas e entregues. Eu percorri 16.525 km (ou oito “cicloviagens”) em 270 dias de trabalho. Por um tempo, de janeiro a agosto, tive a inestimável ajuda de um ciclista. Portanto, a quilometragem acumulada chegou a 23.000 km. Estivemos em mais de 80 bairros de São Paulo, vi a cidade fechada em meio à pandemia, as ruas vazias, a esperança na efêmera melhora, o agravamento da situação e, enfim, uma reabertura que parece mais sensata. Eu convivi de perto com outros entregadores. Recebi ajuda, ofereci auxílio e percebi que a bike é mesmo uma solução para muita gente.

LEGENDA  Foto Arquivo Pessoal/Ilustração Mariana Simonetti

Foi preciso, também, superar as dificuldades do dia a dia. A chuva sempre atrapalhou muito. Os piores momentos de toda essa jornada foram com céu nublado. Curiosamente, o dia mais longo nas entregas foi assim. Mesmo com muita água na primeira metade do percurso, marquei 168 km, em três grandes rotas pela cidade. A primeira, até Guarulhos. A segunda, na zona leste da capital. E a terceira, até Osasco. Nesse dia, entreguei 38 tortas, algumas levadas nas costas, na mochila térmica, e outras no alforge preso à bike. Atendi 22 clientes.

Viver toda essa experiência, decerto, vai me ajudar nas próximas viagens pelo mundo, assim como elas fizeram em meio às entregas. As ladeiras, o asfalto e as dificuldades de São Paulo vão migrar para qualquer parte do planeta. E isso é valioso. Vamos, agora, alçar voos maiores, com a abertura de uma loja física (@tortadopai). As entregas serão mescladas, mas a bicicleta estará presente, pois também foi por meio dela que conseguimos resolver uma situação que parecia incontornável. A bike, como eu já sabia desde os seis anos, pode mesmo levar à frente, como aconteceu comigo.

Diego Salgado é jornalista desde 2008 e editor-assistente do UOL Esporte desde 2015. Ciclista há 21 anos, pedalou por 10 países, em travessias por América do Sul e Europa. Desde maio de 2020, entrega de bike tortas feitas pelo seu pai