Por que o abuso do Zolpidem preocupa? — Gama Revista
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Isabela Durão

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Reportagem

Por que o abuso do Zolpidem preocupa?

O remédio, um hipnótico indicado para o tratamento de curto prazo da insônia, deve ser prescrito e usado com cautela e acompanhamento para evitar a dependência, além de efeitos colaterais graves, como sonambulismo e alucinações

Ana Elisa Faria 17 de Dezembro de 2023

Por que o abuso do Zolpidem preocupa?

Ana Elisa Faria 17 de Dezembro de 2023
Isabela Durão

O remédio, um hipnótico indicado para o tratamento de curto prazo da insônia, deve ser prescrito e usado com cautela e acompanhamento para evitar a dependência, além de efeitos colaterais graves, como sonambulismo e alucinações

Mudar os móveis de lugar em plena madrugada. Fazer um book de selfies com a geladeira. Investir muito dinheiro. Comprar pacotes de viagem, bolsas de grife e uma moto, mas não se lembrar. Dirigir sem destino certo, voltar para casa e achar que nem saiu. “Enxergar” as letras do celular “caindo” da tela ou as cadeiras da sala dançando. Sentir vontade de ter uma lhama como pet. Tentar adotar um panda na ONG WWF. Marcar dates e se arrepender depois. Enviar mensagens nonsense. Relatos de atividades insólitas como essas são compartilhados diariamente aos montes nas redes sociais por pessoas que fizeram uso do Zolpidem e sofreram com os efeitos colaterais do medicamento.

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O remédio, um hipnótico indicado exclusivamente para o tratamento de curto prazo da insônia, foi lançado há pouco mais de três décadas, mas se popularizou no Brasil a partir de 2019 — tanto que, desde então, as vendas aumentaram exponencialmente, ocasionando também uma explosão de casos de alucinações e dependência química.

De acordo com informações da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), em 2018, foram vendidas 13,6 milhões de caixas do fármaco. Já em 2020, o número saltou para 23,3 milhões. Em 2022, as vendas chegaram a 20 milhões.

Num mundo cada vez mais frenético e hiperconectado, o descanso e a qualidade do sono viraram sonhos de consumo difíceis de alcançar por inúmeros fatores, como poucas horas disponíveis para dormir e, consequentemente, a apreensão pela necessidade de ter que adormecer logo, jornadas duplas ou triplas, não ver a luz do sol, preocupações financeiras, aumento das cobranças por ótimas performances profissionais e pessoais, excesso de informações e entretenimento fácil pelo smartphone. Tudo isso pode promover um estado de hiperalerta precipitador da insônia. E, entre as diversas abordagens terapêuticas para combater o problema, o Zolpidem desponta na quantidade de prescrições.

No entanto, o aumento do consumo indiscriminado dessa e de outras medicações controladas causa alerta — segundo dados do Conselho Regional de Farmácia de São Paulo (CRF-SP), a venda sem receita de remédios de uso restrito, como o Zolpidem, cresceu 32% em 2023.

Todos esses indicadores têm suscitado discussões sobre indicações inadequadas, e o consequente uso do Zolpidem sem controle, segurança e riscos associados ao abuso do medicamento. Para entender esse cenário complexo, Gama ouviu especialistas no tema.

Z de Zolpidem

O hemitartarato de zolpidem é a substância mais famosa de uma classe medicamentosa conhecida como drogas Z, que inclui a zaleplona, a zopiclona, e a eszopiclona — todas têm a função de induzir o sono.

Alexandre Pinto de Azevedo, psiquiatra do Programa de Transtornos do Sono do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP e membro da Associação Brasileira do Sono, explica que o Zolpidem atua no organismo potencializando o funcionamento do neurotransmissor GABA, considerado o mais importante depressor do sistema nervoso central, envolvido, entre outras funções, na indução e na manutenção do sono.

Ou seja, ele age apenas para iniciar o sono e tem um efeito veloz e abrupto: tomou, adormeceu, é quase como apertar um botãozinho de liga-desliga, motivo pelo qual o paciente deve ingerir a cápsula já na cama, pronto para dormir, com o celular longe dos dedos — mais adiante, os profissionais detalham o porquê.

O professor Thiago M. Fidalgo, que leciona no departamento de psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), diz que o Zolpidem é indicado sobretudo para insones cuja maior dificuldade é cair no sono — são pessoas que, quando conseguem adormecer, seguem repousando sem interrupções durante a noite toda. “A ação do Zolpidem dura, mais ou menos, quatro horas, agindo no cérebro de forma a facilitar o começo do sono em um processo muito rápido e específico. Esse é o grande diferencial do medicamento.”

Além disso, o sucesso estrondoso do Zolpidem, conforme lembra Fidalgo, deu-se porque existia um pensamento de que a medicação seria extremamente segura do ponto de vista da dependência, diferentemente de outras drogas populares e mais antigas usadas para a mesma finalidade, como o clonazepam (Rivotril).

Começamos a assistir um aumento importante dos casos de dependência. Então, aquela ideia de que o Zolpidem era inofensivo, não causava dependência, caiu por terra

“Acreditando nesse potencial de segurança, houve um grande crescimento da prescrição por parte dos médicos, porém, com o passar do tempo e com mais gente fazendo uso do Zolpidem, começamos a assistir, nos últimos dois ou três anos, um aumento importante dos casos de dependência. Então, aquela ideia de que o Zolpidem era inofensivo, não causava dependência, caiu por terra”, conta.

A dependência, o abuso

Há dois fatores principais que explicam o ciclo de dependência e abuso do Zolpidem. O primeiro deles é a tolerância. O psiquiatra Thiago M. Fidalgo fala que a tolerância ocorre quando a pessoa precisa de doses maiores para que a medicação tenha o mesmo efeito que tinha lá no começo do tratamento. “É quando o corpo acostuma com o efeito da substância.”

A neurologista Dalva Poyares, professora da Unifesp e pesquisadora do Instituto do Sono, faz um alerta a respeito dos sinais de que o organismo ficou refratário ao fármaco. “Vamos supor que o indivíduo começou a tomar um comprimido no início da noite, dormia bem, mas, após um tempo, passou a despertar precocemente na madrugada. Aí, ao acordar, ia lá e tomava mais um para adormecer de novo. Já é uma bandeira vermelha. Depois, até para começar a dormir, a pessoa passa a necessitar de mais de um ou mais do que foi prescrito. Então, a tolerância é essa diminuição do efeito, seja no meio ou no início da noite”, ressalta.

Com essa prática, o consumo vai sendo elevado paulatinamente. O outro mecanismo citado por Fidalgo para a compulsão é o próprio efeito direto do Zolpidem, “que causa uma alteração do nível de consciência”. Para alguns, dá uma espécie de “barato”, como se a pessoa estivesse bêbada. “A sensação, para a pessoa, é a de que ela está ótima, acordada, mas quem vê de fora percebe que há uma alteração, que a pessoa está meio grogue”, exemplifica.

Enquanto isso, o cérebro fica “confuso”, uma vez que ali há um medicamento que o puxa para baixo, mas a pessoa continua fazendo coisas que o puxam para cima. “Então, o cérebro ativa ferramentas compensatórias para se manter acordado, aumentando a produção de algumas substâncias [como a adrenalina] e alguns neurotransmissores para conseguir se manter acordado e equilibrar tudo isso”, resume Fidalgo.

Portanto, como o usuário sente um bem-estar e tem a percepção enganosa de que está em plenas condições de realizar qualquer atividade, ele vai ingerindo pílulas e mais pílulas diariamente, fazendo um uso recreativo e sem o devido acompanhamento médico, o que o leva a experimentar efeitos colaterais perigosos, como sonambulismo, alucinações, confusão mental, inquietação, distúrbio motor e euforia — fazendo coisas que não vai se lembrar depois.

As redes sociais e os sites de notícias estão repletos de histórias de pessoas que chegaram a tomar 20, 30 ou até 300 comprimidos em um único dia, fizeram compras, investimentos, saíram de carro cidade afora, transaram com desconhecidos, ficaram totalmente dopadas, abusaram da droga para “amenizar as angústias”, como fazia o cantor sertanejo Fernando Zor, que chegou a ingerir 15 doses diárias em uma época depressiva da vida. Fatos esses que transformaram o abuso do Zolpidem em problema de saúde pública no Brasil.

Quanto mais potente e rápida a ação do fármaco, maior o potencial de abuso e dependência, como vemos hoje, por exemplo, nos Estados Unidos com os opioides

A doutora Dalva chega a comparar a situação, consciente das devidas proporções, à crise de overdoses por opioides que assola os EUA atualmente. “Quanto mais potente e rápida a ação do fármaco, maior o potencial de abuso e dependência, como vemos hoje, por exemplo, nos Estados Unidos com os opioides. É um problema parecido”, preocupa-se.

Ela relata que, além da prescrição médica desenfreada, existe um mercado paralelo imenso do Zolpidem, o que tem ocasionado a elevação do número de internações hospitalares para a desintoxicação e o desmame do remédio. A retirada da medicação aos poucos e, principalmente, com a supervisão de especialistas é essencial porque a interrupção abrupta, dependendo do tempo e do grau de uso, pode ter consequências bastante graves, como um quadro convulsivo e sintomas severos de abstinência.

Zolpidem: vilão ou aliado, seguro ou inseguro?

Os profissionais consultados pela Gama enfatizam que qualquer medicamento, até mesmo a dipirona, tem contraindicações e possíveis efeitos colaterais graves para alguns pacientes. Por isso, eles são unânimes em dizer que, se bem administrado, com acompanhamento médico adequado, o Zolpidem pode ser um aliado no combate à insônia.

Para Dalva Poyares, o hipnótico deve ser utilizado apenas nas doses terapêuticas recomendadas e, o mais importante, num prazo máximo de quatro semanas, como dita a bula. A neurologista frisa que se a insônia for crônica, ela não será “curada” nesse um mês. “É insatisfatório. O ideal, nesses casos, é optar por medicamentos que sejam mais seguros no longo prazo, além de adicionar tratamentos não medicamentosos em conjunto, como a terapia cognitivo-comportamental para trabalhar diretamente com os fatores que fazem com que a insônia se perpetue.”

O psiquiatra Alexandre Pinto de Azevedo comenta que o perfil de segurança de uma medicação vai além da aprovação das agências reguladoras (no país, a Anvisa). Ele depende de como o médico conduz o tratamento, desde um diagnóstico correto, passando pela identificação da presença de outras doenças associadas até o acompanhamento de como o remédio está sendo utilizado pelo paciente, além de constantes avaliações da resposta terapêutica, com a atenção voltada aos possíveis efeitos adversos e ao momento certo de suspender o uso.

O Zolpidem é seguro, desde que o médico se responsabilize pela prescrição adequada

“Então, sim, o Zolpidem é seguro, desde que o médico se responsabilize pela prescrição adequada”, afirma. O risco de abuso e dependência, segundo Azevedo, ocorre “caso a prescrição seja inapropriada, considerando um diagnóstico impreciso — já que outros distúrbios do sono podem simular sintomas de insônia —, um subtipo errado de insônia, um perfil de personalidade em que a prescrição da medicação não seja recomendada e a presença de comorbidades psiquiátricas não adequadamente estabilizadas”.

O doutor Thiago M. Fidalgo concorda dizendo que o Zolpidem ainda é muito usado e tem a sua importância como medicação. “Eu, por exemplo, prescrevo para alguns pacientes”, menciona. Entretanto, o psiquiatra destaca que, apesar de se tratar de um fármaco útil e eficaz, ele tem de ser usado com cautela, prescrição médica e acompanhamento.

“É preciso cuidado porque esses remédios têm um fluxo informal muito, muito forte. Alguém vai viajar de avião, o amigo conta que no último voo que pegou tomou Zolpidem e dormiu a viagem toda, daí repassa uma cartela para o viajante da vez. As pessoas perdem um pouco a noção de que essa medicação vai agir no cérebro e que, portanto, há consequências. Não se trata de demonizar o Zolpidem, que tem suas indicações, mas elas não podem ser extrapoladas. A gente não pode perder de vista que existem riscos”, conclui Fidalgo.