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Wikimedia Commons/ "O Jardim das Delícias Terrenas" Hieronymus Bosch

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Reportagem

Hora de redescobrir o sexo

Com a pandemia em curso e o isolamento em baixa, brasileiros começam a retomar hábitos sexuais públicos, do swing aos encontros sem compromisso

Leonardo Neiva 26 de Junho de 2022
Wikimedia Commons/ "O Jardim das Delícias Terrenas" Hieronymus Bosch

Hora de redescobrir o sexo

Com a pandemia em curso e o isolamento em baixa, brasileiros começam a retomar hábitos sexuais públicos, do swing aos encontros sem compromisso

Leonardo Neiva 26 de Junho de 2022

O eletricista Róger, 43, e a estudante de radiologia Paty, 42, se conhecem desde a adolescência. Foram o primeiro namorado mais sério um do outro. Casaram cedo, ela com 19, ele com 20, e logo tiveram o primeiro filho. Vinte e um anos depois, quando a pandemia estourou, o casal vivia uma relação exclusivamente monogâmica, embora já tivesse flertado com o swing — envolvimento sexual que pode acontecer entre dois casais ou um casal e uma pessoa solteira.

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“Eu sempre tive vontade e curiosidade sobre o meio do swing. A Paty, por ter uma criação mais rígida, relutava bastante”, conta Róger. As poucas tentativas que tiveram até aquele momento, porém, não agradaram. “A gente já tinha ido a algumas casas de swing, mas não era nossa vibe. Você chega e ninguém conhece ninguém, aquela bagunça. Tem que pintar um clima, a gente não gosta daquela coisa muito rápida.”

Os dois estiveram na primeira leva de infectados com a covid-19 lá em 2020 e, embora não tenham chegado a ser internados, passaram muito mal com a doença. O temor pela saúde, aliado ao fato de que Róger já tinha sofrido um infarto cerca de uma década antes, gerou uma mudança de pensamento no casal, que já tinha passado a maior parte da vida junto. “Quando pegamos covid, foi muito ruim. Não conseguíamos nem levantar da cama para ir até o banheiro. Foi aí que falei: a gente é novo ainda, tem muita coisa para curtir”, afirma Róger.

Passamos por tanta coisa difícil que não dava para perder mais tempo. A gente queria viver mais

Em pouco tempo, encontraram na internet a Voluptas, agência que se apresenta como a “maior sociedade liberal privativa do Brasil”, especializada em organizar encontros secretos entre seus membros. O casal decidiu entrar na comunidade, que tinha uma proposta parecida com o que eles buscavam, o que os ajudou a se soltar mais. “A gente gosta de fazer amigos, ficar mais íntimo das pessoas antes de ir para os finalmentes.”

Na primeira vez, que aconteceu com um outro casal, Paty confessa que bateu uma insegurança. Mas, segundo ela, acabou dando tudo certo. Hoje, assim como nesta reportagem, eles são conhecidos como Róger e Paty no grupo de WhatsApp que dividem com outras 25 pessoas, entre casados e solteiros, todos membros da Voluptas. E a comunidade de amigos e swingers vai crescendo a cada nova festa organizada mensalmente pela sociedade. “Passamos por tanta coisa difícil, infarto, covid e outras perdas nossas, que não dava para perder mais tempo. A gente queria viver mais, aproveitar, fazer coisas diferentes”, diz Paty.

Essa sensação de finitude liberou pessoas que já tinham antes da pandemia algum desejo a se permitirem mais

O relato do casal chega num momento em que, embora a pandemia não tenha acabado — as médias de casos e mortes, aliás, estão em alta –, as saídas são cada vez mais frequentes e o isolamento virou coisa do passado para muita gente. É um período que a psicóloga, sexóloga e terapeuta de casais Cristina Werner define como de resgate de um tempo anterior à pandemia. “As pessoas estão enlouquecidas para ir a eventos, onde também se costuma ficar com outras pessoas em encontros amorosos.”

Essa euforia se reflete numa busca por viver a sexualidade de forma mais aberta e até mesmo pública. Há indícios, por exemplo, de que as pessoas tiveram mais tempo para explorar e descobrir sua identidade sexual na pandemia. Segundo Werner, esse desejo pode se alinhar também, como no caso de Paty e Róger, com o aspecto mais fatal da pandemia. “Todos nós flertamos um pouco com a morte. Ela passou muito perto, é difícil ter alguém que não perdeu ninguém.”

Se é verdade que o oposto da morte não é a vida, e sim o sexo, como prega a narradora do livro autobiográfico da espanhola Milena Busquets, “Isso Também Vai Passar” (Companhia das Letras, 2016), nada mais natural do que buscar abrigo desse risco numa bela transa. “Quando você vê a morte muito perto, tem a coisa de querer enfiar o pé na jaca porque o mundo pode acabar a qualquer momento”, explica a psicóloga. “Então essa sensação de finitude liberou pessoas que já tinham antes da pandemia algum desejo, consciente ou inconsciente, a se permitirem mais.”

Wikimedia Commons/ “O Jardim das Delícias Terrenas” Hieronymus Bosch

Igual mas diferente

A escritora Camila Voluptas, idealizadora da comunidade de swing que leva seu sobrenome — na verdade, um apelido –, corrobora esse pensamento e admite que o grupo tem recebido nos últimos tempos uma alta frequência de iniciantes na prática. Boa parte deles, que já guardava esse desejo antigo, teve os últimos dois anos para se informar e finalmente escolher o que queria. “Hoje sinto as pessoas muito mais corajosas na hora de dar o primeiro passo do que antes da pandemia. Elas já chegam decididas.”

Desde novembro de 2021, quando uma parte considerável da população tinha tomado as duas doses da vacina, ela voltou a organizar com frequência mensal os eventos da sociedade. No início, o cenário era um tanto desolador para quem conhecia o clube de tempos anteriores: todo mundo de máscara, pessoas afastadas umas das outras, as salas dedicadas a interações largadas às moscas e praticamente nenhuma troca mais quente. “Achamos que as pessoas iam chegar com sede, mas ninguém fazia nada”, lembra Voluptas.

Hoje, ela conta que as pessoas já se sentem mais seguras, mesmo com o atual aumento de casos. Ao mesmo tempo em que a frequência vem crescendo, no entanto, aquela empolgação meio frenética, geralmente associada aos adeptos de swing, está em queda, diz. “Acho que a mente mudou. A galera fica até com receio de beijar, uma coisa tão comum na balada liberal. Então o pessoal está muito mais restritivo do que antes.” Hoje, segundo Voluptas, quem frequenta o grupo não demonstra mais só interesse em transar, mas em conhecer e se conectar com pessoas.

É essa a toada do casal Róger e Paty, que, para além das festas da Voluptas, também encontra outros membros do grupo em eventos sociais como churrascos familiares — o filho do casal, hoje com 22 anos, sabe e apoia a rotina dos pais. Além da maior liberdade sexual, outra mudança implementada por eles na pandemia foi tirar um pouco do foco do trabalho e dos estudos para dedicar mais tempo à família. “Mudou nossa autoconfiança e autoestima também. A gente se diverte mais juntos, hoje a gente conversa sobre tudo”, conta Paty.

Impactos pandêmicos

Na opinião de Werner, porém, todos os passos no sentido de um relacionamento mais aberto devem ser tomados com cautela, de preferência imaginando antes todos os detalhes para saber se compartilhar o cônjuge é uma escolha suportável para ambas as partes — mesmo assim, pode ser que não funcione. “Temos que estar cientes de que qualquer coisa nova pode desembocar numa grande alegria ou numa grande decepção.” Se não estiverem preparados para o próximo passo, não há vergonha alguma em se admitir monogâmicos. “Se você está satisfeito em viver na monogamia, viva. É um modelo que dá certo para muita gente.”

Outras tendências, que bombaram na pandemia, parecem ter vindo para ficar, diz ainda a psicóloga. Seria o caso dos vibradores e brinquedinhos sexuais, que viveram um boom de vendas nos dois últimos anos. A diferença, afirma a especialista, é que, enquanto antes eles eram verdadeiras oferendas ao prazer solitário, hoje já é mais provável que se encaixem melhor nas brincadeiras entre duas ou mais pessoas. “Você pode apresentar ao parceiro esse que foi seu amigo durante a pandemia e incorporar na prática sexual compartilhada como mais um recurso.”

Desde o ano passado, uma tendência que vem crescendo é o uso de sites dedicados à traição. Uma prática que existe quase desde que o mundo é mundo, mas que, numa sociedade onde relações abertas começam a fincar raízes, acaba se mostrando até mais desonesta e injusta, aponta Werner. “Aquilo que antes era encoberto e trazia prazer extra só para um da relação agora pode ser compartilhado com os dois. Na traição, às vezes o outro até também tem muita vontade, mas acaba respeitando devido ao compromisso assumido.”

Wikimedia Commons/ “O Jardim das Delícias Terrenas” Hieronymus Bosch

No escuro da noite

As pessoas atualmente estão mais ávidas por novas experiências, afirma a DJ e empresária da noite paulistana Lily Scott. “Para viver em um curto período todo um tempo perdido, uma vida que de certa forma nos foi tirada quando a pandemia assolou o mundo”, acrescenta. Segundo ela, o setor de casas noturnas, que esteve entre os mais afetados pela pandemia, hoje também já está se reerguendo, e com sede de trabalho. Uma visão que encontra respaldo no surgimento e ressurgimento de baladas num cenário noturno cada vez mais movimentado.

Scott é uma das sócias à frente da empreitada que vai transformar a boate Love Story, um dos maiores ícones da noite paulistana, na Love Cabaret. A versão atualizada da Casa de Todas as Casas deverá ser um “templo do desejo” e “parque de diversões para adultos”, nas palavras do sócio Facundo Guerra. O ambiente terá performances artísticas fetichistas e salas com aulas de BDSM, que envolve práticas como bondage, dominação e sadomasoquismo. A ideia é substituir a objetificação de corpos que marcava a versão anterior para uma ressignificação sem gêneros nem tabus, diz Scott. “Nossa proposta é que as pessoas se abram para conhecer rituais novos, ampliando seu repertório, desmistificando certos tabus e potencializando o desejo de descoberta.”

De acordo com a empresária, a pandemia evidenciou ainda mais o fato de que nossa felicidade está intimamente conectada à troca com outras pessoas. E, para entender mais sobre o assunto, ela passou os meses de setembro e outubro de 2021 viajando pelo México e Estados Unidos, numa jornada de pesquisa para a abertura da nova casa. Nos EUA, ela confessa que um dos primeiros desafios ao desembarcar foi se acostumar com a dispensa generalizada de máscaras pelos lugares onde passou, num misto de medo e vontade que ela acabou vencendo.

“Entendi mais sobre minha existência e papel como mulher, sobre as fantasias que carrego e também o porquê de até então não tê-las explorado tanto quanto gostaria.” Uma das descobertas que trouxe consigo na mala foi a técnica japonesa shibari, de imobilização sensual por cordas. “É comumente confundida com bondage, mas tem práticas com raízes, objetivos e funções bem diferentes.”

Vida que segue?

Numa pesquisa recente realizada entre os usuários do site Sexlog, rede social brasileira de sexo e swing, 45% dos entrevistados responderam que seu principal fetiche é transar em lugar público. Mais do que isso, 97,2% pretendem praticar esse fetiche assim que possível. “O exibicionismo começa a aparecer mais nas pesquisas de alguns anos para trás, não foi uma mudança brusca de 2020 para cá. Considero que isso está mais conectado com o crescimento das redes da que necessariamente com a pandemia”, explica a empresária Mayumi Sato, criadora do site.

O período de pandemia viu o Sexlog crescer de forma bem mais rápida, triplicando o ritmo de antes de 2020. Também ouve uma mudança no comportamento e perfil dos usuários, em geral predominantemente homens heterossexuais. Nos últimos dois anos, um número bem maior de mulheres e casais entrou na rede. “As mulheres, que antes eram apenas mais receptivas, estão mais ativas, indo atrás das pessoas com quem querem se relacionar”, diz a líder do site que recentemente bateu a marca de 17 milhões de cadastros.

Numa sondagem feita pelo site a pedido de Gama, 89,8% dos usuários disseram que o foco nos próximos meses é fazer sexo sem compromisso, em oposição a sexo com envolvimento ou relacionamentos mais profundos. Em outra questão, 63,6% afirmaram que pretendem tentar algo novo para apimentar a vida sexual. Por outro lado, isso não significa que a maioria das pessoas tenha voltado a um ritmo furioso no que diz respeito à vida pública. 70,6% dos usuários, por exemplo, responderam que ainda não estão saindo muito de casa, enquanto só 12,8% dizem estar saindo mais agora do que antes da pandemia.

O pernambucano Rafael, 34, que vive em Curitiba, tinha se separado da esposa algum tempo antes da pandemia. Ele acabou aderindo ao site na busca por sexo sem muitos vínculos. “Claro que não é para se apaixonar, só para viver o prazer da aventura.” Em 2020, preocupado com o vírus, porém, deu uma pausa nos encontros, voltando só depois das vacinas. Hoje, ele diz que os dates são menos intensos do que antes, mas já estão retomando um ritmo bom. “Agora estou saindo bastante, tanto que hoje vou encontrar um casal. É vida que segue, né? Claro que com todo o cuidado.”