Como os influencers estão mudando o terror no cinema — Gama Revista
Quem tem medo de filme de terror?
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Reportagem

Influencers de terror: tem coragem de segui-los?

Assim como os diretores do filme “Fale Comigo”, influencers de terror veem seu trabalho ser absorvido pela indústria do cinema e da TV

Leonardo Neiva 27 de Agosto de 2023
Divulgação/Skinamarink

Influencers de terror: tem coragem de segui-los?

Assim como os diretores do filme “Fale Comigo”, influencers de terror veem seu trabalho ser absorvido pela indústria do cinema e da TV

Leonardo Neiva 27 de Agosto de 2023

“A loucura não é loucura quando compartilhada”. Nesta frase do sociólogo Zygmunt Bauman (1925-2017) é que parecem se inspirar os protagonistas do filme “Fale Comigo” (2023), mais recente sensação do terror nos cinemas. Distribuída pela A24, produtora queridinha dos cults mundo afora, a trama gira em torno de um grupo de jovens que passam suas noites às voltas com uma mão embalsamada. Pertencente a um vidente, o objeto permite a quem o segura conversar com os mortos e até ser possuído por eles durante um tempo limitado.

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Se a ideia de apertar a mão de um cadáver ou deixar espíritos tomarem conta de seu corpo é capaz de provocar arrepios em qualquer um, no filme a prática se torna uma brincadeira quase inocente para esses jovens da geração Z, conforme a compartilham entre si e, mais tarde, com milhares de usuários nas redes sociais.

Não é nenhuma surpresa, portanto, que uma história como essa tenha saído da mente de dois jovens que, há uma década, vêm dividindo suas próprias loucuras com mais de 6,7 milhões de seguidores. Capitaneado pelos gêmeos australianos Danny e Michael Philippou, “Fale Comigo” pode até ter sido a estreia oficial da dupla no cinema, mas passa longe de ser a primeira experiência deles no audiovisual.

De um Ronald McDonald macabro promovendo um massacre numa loja de frango frito a um cenário que imagina o encontro entre os apocalipses zumbis de “The Walking Dead” e “The Last of Us”, os irmãos Philippou fizeram fama na internet com o canal de YouTube RackaRacka. Por lá, conquistaram uma legião de fãs ao levar o terror a sério, mas sempre com pitadas generosas de humor.

Mas, se a trajetória da dupla parece única à primeira vista, a verdade é que exemplos semelhantes, em que a produção de conteúdo de terror na internet e no cinema se confundem, têm pipocado aos montes nos últimos anos.

Categoria: direção

A própria A24 fechou no início de 2023 negócio com Kane Parsons, jovem de então 17 anos responsável por uma das maiores sensações do terror on-line. Em breve, ele deve adaptar para a tela grande sua série de curtas baseada numa lenda urbana da internet: “The Backrooms”. Formato câmera na mão e estilo nostálgico, os vídeos com milhões de visualizações no YouTube percorrem um labirinto de salas de escritório amareladas e vazias, iluminadas por lâmpadas fluorescentes piscantes, em que entidades robóticas surgem nas sombras ou em cantos distantes da tela.

Outros cineastas hoje estabelecidos em Hollywood, como o Ari Aster de “Hereditário” (2018), David F. Sandberg (“Quando as Luzes se Apagam”) e Dan Trachtenberg (“O Predador: a caçada”) também atraíram primeiro a atenção do público na internet com curtas igualmente assustadores. Muitos deles comprovando que levar para a tela uma história aterrorizante tem mais a ver com criatividade do que com gastar rios de dinheiro.

O gênero tem a capacidade de despertar emoções poderosas, a sensação de se assustar, de se apavorar

O diretor canadense Kyle Edward Ball que o diga. Apesar do sucesso limitado de seu canal no YouTube, o nome do cineasta ficou realmente conhecido após cenas de “Skinamarink: canção de ninar” (2022) — longa de estreia que produziu com um orçamento de míseros 15 mil dólares — viralizarem no TikTok. Assim como os curtas que Ball posta no YouTube, o filme inteiro se passa no interior de uma casa mal iluminada pela TV, com a câmera focando cantos, tetos, paredes e objetos cotidianos para ilustrar o diálogo entre duas crianças insones, numa atmosfera intimidadora. Se, para alguns, chegar ao fim da projeção foi um suplício, milhares de usuários relataram que as cenas trouxeram à tona lembranças de pesadelos e noites mal dormidas da infância.

Recentemente, inclusive, o TikTok tem se tornado fonte relevante para o sucesso de longas do gênero, seja dando visibilidade a produções pouco conhecidas, resgatando filmes esquecidos ou mesmo criando alucinações sobre clássicos que na verdade nunca existiram.

“Alguns filmes viralizam muito rapidamente devido a cenas específicas”, afirma o estudioso do terror na ficção Mathias Clasen. “Tem a ver com a capacidade do gênero de despertar emoções poderosas, a sensação de se assustar, de se apavorar.” Até por isso, de acordo com o pesquisador dinamarquês, reações nas mídias sociais vêm tendo maior influência no terror do que em outros gêneros. “Se eu contar uma história sobre uma pessoa que acordou com uma aranha enorme rastejando no ouvido, é mais provável que você lembre disso do que se falar de alguém que despertou com o sol brilhando na cara.”

Cena do curta
Cena do curta “The Backrooms”, dirigido pelo jovem YouTuber Kane Parsons
Divulgação/The Backrooms

Design de produção

Embora fosse algo impensável alguns anos atrás, é provável que você já tenha assistido ao menos a um filme que se passa inteiramente na tela de um computador. Em “Amizade Desfeita” (2014), por exemplo, um grupo de amigos conversa por vídeo até que um usuário anônimo começa a assombrá-los e eliminá-los um por um. Já o independente “We’re All Going to the World’s Fair” (2021) usa o recurso para acompanhar a derrocada de uma adolescente envolvida num jogo online de terror em direção à loucura.

A historiadora e pesquisadora do cinema de terror Gabriela Larocca compara esse estilo de filmar ao boom dos found footage — que usam um formato documental em tramas ficcionais — a partir da estreia de “A Bruxa de Blair” (1999). Se a tendência surgiu na esteira da popularização das câmeras de vídeo caseiras na década de 1990, é natural que a moda hoje seja capturar nossa existência cada vez mais pelas tecnologias e redes sociais.

Durante muito tempo, filmes de terror vêm utilizando várias estratégias para reduzir a distância psicológica do espectador

“Desde que a internet se tornou mais presente na nossa vida, ela também passou a aparecer com maior frequência no cinema de horror. As duas coisas sempre caminham lado a lado”, afirma Larocca. “Então tem filme gravado só pelo Zoom, longa que se passa nas redes sociais e até filmado no formato do TikTok.”

Se nos found footage a maior dificuldade sempre foi justificar um personagem permanecer com a câmera na mão até nos momentos mais tensos da história, o principal desafio de exibir mais de uma hora de uma tela estática de computador é manter o dinamismo enquanto se introduzem todos os elementos essenciais de um longa de ficção. Para isso, os cineastas têm recorrido ao uso das redes sociais, plataformas de troca de mensagens, e-mails e, é claro, inúmeras videochamadas.

“Durante muito tempo, filmes de terror vêm utilizando várias estratégias para reduzir a distância psicológica do espectador”, explica Clasen. “Por isso ‘O Massacre da Serra Elétrica’ começava com a frase ‘baseado em fatos reais’ e ‘A Bruxa de Blair’ foi filmado com uma câmera trêmula. Hoje, outros filmes tentam passar uma sensação de realismo imitando o uso que já fazemos das redes sociais.”

No longa
No longa “Amizade Desfeita”, o espectador acompanha uma trama que se desenvolve na tela de um computador
Divulgação/Amizade Desfeita

Roteiro adaptado

Certa noite, Adam sonhou com um garoto que tinha metade da cabeça deformada. Conforme o menino, que se chamava David, passou a povoar seus sonhos — ou melhor, pesadelos —, Adam também começou a fazer algumas perguntas ao jovem. A partir daí, no entanto, o garoto fez um inferno não só em suas noites de sono, mas também nos dias despertos.

Essa foi a história que o cartunista e ex-colaborador do Buzzfeed Adam Ellis contou numa longuíssima thread do Twitter, em 2017, que chegou a ter meses de duração. A narrativa terminou com David surgindo no quarto de Adam, que simplesmente parou de mencionar o assunto, deixando no ar se algo do que contou era real ou se se tratava de uma ficção bastante elaborada. De uma forma ou de outra, a narrativa deve chegar às telas de cinema ainda em 2023, com o nome de “Querido David”.

Outras muitas histórias de terror que fizeram sucesso primeiro no ambiente digital também já encontraram o caminho para as telas de cinema e da televisão. Personagens tais como o Slenderman — um homem alto, magro, de cabeça branca e trajando um terno preto —, que apareceu pela primeira vez num fórum on-line, teve sua história construída de forma coletiva e chegou a ser adaptado também para o cinema.

A internet possibilita que existam mais trocas e muita experimentação em formatos. Isso estimula muito a criatividade

Já as creepypastas, lendas urbanas que surgem e se proliferam em redes e fóruns, também ganharam diversas adaptações diferentes. A mais notável talvez seja a série de TV “Channel Zero” (2016-2018), que adaptou uma narrativa macabra diferente a cada temporada.

“Antes a gente contava histórias como essas ao redor da fogueira. Então sempre existiu esse fascínio da humanidade com o assustador, o inexplicável”, diz Larocca, para quem o principal atrativo das tramas é serem narradas por usuários que existem, sem distinção clara entre o que é ficção e realidade. “Alguém começa, aí outra pessoa continua e assim vai. Tem um quê de colaboração, de uma rede que vai se ampliando.”

Embora em muitos casos seus criadores sejam conhecidos, personagens como o Slenderman parecem desafiar até a ideia de autoria, aproximando-se do terreno do mito. As redes, portanto, teriam apenas potencializado um fenômeno que sempre esteve por aí à espreita. “A internet possibilita que existam mais trocas e muita experimentação em formatos, sejam threads no Twitter, discussões em fóruns, vídeos curtos para TikTok ou longos para o YouTube. Isso estimula muito a criatividade”, declara a historiadora.

Cena da segunda temporada da série
Cena da segunda temporada da série “Channel Zero”, baseada na creepypasta “Search and Rescue”
Divulgação/Channel Zero

Produção (inter)nacional

Mas não é só lá fora que essas histórias ganham corpo e até ultrapassam os vastos limites da internet. Autor do livro “Dois Mortos e a Morte” (Rocco, 2023), o paraense Fernando Sampaio, mais conhecido como Tanto Tupiassu, começou a fazer sucesso mesmo no Twitter, onde publica até hoje threads com causos de terror e assombração.

“As histórias foram ganhando um contorno especial muito pela forma como eu conto”, revela o escritor. Em vez de anotar o conto todo de uma vez para ir postando aos pouquinhos, ele prefere deixar o desenvolvimento em aberto, para medir as reações e também atender os anseios de seus leitores mais ávidos. “Essa construção, um tweet depois do outro, acaba gerando uma expectativa em quem está lendo, como se estivesse ouvindo na casa da avó uma história que vai se desenrolando aos poucos. As pessoas me relatam isso, que parece que a gente está ao vivo”, diz Tupiassu, que trabalha como advogado, mas sonha ser escritor em tempo integral.

Foi com o objetivo de se tornar cineasta de terror que o YouTuber Daniel Pires criou há dez anos o canal Lenda Urbana. Formado em rádio e TV, ele e mais dois amigos começaram produzindo curtas do gênero feitos com baixo orçamento. Com o passar dos anos, porém, os demais participantes foram largando o projeto, que na época não rendia o retorno financeiro necessário. Em 2016, para conseguir manter o canal de pé, Pires precisou mudar a proposta e investir em lives.

“Sempre começo uma live com um jogo de terror que vai dar errado. A coisa sai do meu controle, tem aparição, sustos ao vivo e termino mandando as entidades embora”, conta Pires, da sala de uma casa decorada com crucifixos e móveis antigos, semelhante a um cenário da franquia “Invocação do Mal”. É nesse ambiente que grava boa parte de seu conteúdo de terror, incluindo vídeos com o personagem Homem Torto, o favorito de seus seguidores. “Logo mais vou colocar um papel de parede antigo ali, vai ficar pior ainda”, brinca.

Foi com lives e entrevistas sobre terror que o influenciador fez crescer seus perfis em diferentes redes. Hoje no YouTube — onde passou a se chamar “Daniel Pires, o Lenda” — conta quase 850 mil inscritos. Já no TikTok, ele ultrapassa os cinco milhões de seguidores. Apesar do sucesso na internet, para Pires, ainda falta por aqui um olhar com mais carinho para o terror feito on-line, que poderia ganhar adaptações e incentivos. “Enquanto a gente não entender que tem muito público de terror no Brasil, vai continuar uma colônia, recebendo tudo dos EUA.”

Segundo a pesquisadora Gabriela Larocca, é só uma questão de tempo até que a visão do YouTuber se torne realidade. “É natural que as narrativas e formatos que surgem on-line sejam incorporados pelo cinema. Até de um ponto de vista técnico, gravar de uma webcam ou celular é muito mais tranquilo financeiramente. Não precisa de um orçamento milionário para fazer um filme muito bom.”

Apesar de ter dado uma pausa nos curtas, Pires pretende retomá-los em breve. Em comum com o cinema de terror nacional recente, as produções possuem uma abordagem psicológica e de crítica social. Em um dos vídeos de maior sucesso do canal, por exemplo, a protagonista é assombrada pelo espírito da avó, que ela costumava agredir com frequência.

“Esse é o caminho que eu vejo para mim”, declara o influenciador. “Quem sabe a gente se encontra daqui a dez anos, e eu virei diretor de filme de terror. O momento no Brasil ainda vai chegar. Só peço uma coisa aos deuses que nos ouvem: quero ver isso acontecer, não posso morrer na praia.”

Filmes de terror que quebram a barreira entre cinema e redes sociais

-Fale Comigo (2023): Dirigido pelos irmãos YouTubers Danny e Michael Philippou, o filme vem fazendo sucesso nos cinemas;

-Skinamarink: canção de ninar (2022): Criado por Kyle Edward Ball, que ficou famoso com seus curtas experimentais no YouTube, o filme já saiu do cinema e em breve deve chegar ao streaming mais perto de você;

-Amizade Desfeita (2014): O longa, que reproduz uma reunião de Skype em que tudo acaba dando errado, atualmente está disponível no Globoplay;

-We’re All Going to the World’s Fair (2022): O filme independente que foi sensação nos EUA, mostrando uma jovem que sofre alterações assustadoras após aceitar um desafio on-line, infelizmente ainda não tem data de lançamento no Brasil;

-Channel Zero (2016-2018): A série que adapta a cada temporada uma história assustadora que surgiu na internet atualmente está disponível no Prime Video;

-Hereditário (2018): O diretor de um dos filmes de terror mais impactantes dos últimos anos, hoje na Netflix, aterrorizou o público pela primeira vez na internet com o polêmico curta “The Strange Thing About the Johnsons”;

-Quando as Luzes se Apagam (2016): Se o longa disponível na HBO Max te fez saltar de susto na poltrona, é porque não viu o rápido, mas aterrorizante curta que lhe deu origem

-O Predador: a caçada (2022): A continuação da franquia, hoje no Star+, rendeu uma série de elogios ao diretor Dan Trachtenberg, que primeiro chamou a atenção do mundo com seu curta on-line baseado na série de games “Portal”.