O professor e a educação no ambiente digital — Gama Revista
Quem te ensinou?
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Reprodução Youtube SouthCarolinaETV / Google Arts & Culture / Athos (Minecraft Education Edition) / Google for Education

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Educação

O professor tá on

Em tempos de aulas virtuais com um universo de dados e distrações ao alcance de um swipe, qual o lugar de smartphones, games e apps como ferramentas de ensino na era digital?

Juliana Sayuri 10 de Outubro de 2021
Reprodução Youtube SouthCarolinaETV / Google Arts & Culture / Athos (Minecraft Education Edition) / Google for Education

O professor tá on

Em tempos de aulas virtuais com um universo de dados e distrações ao alcance de um swipe, qual o lugar de smartphones, games e apps como ferramentas de ensino na era digital?

Juliana Sayuri 10 de Outubro de 2021

“Aula síncrona. Aula assíncrona. Aula por WhatsApp. Aula gravada. Aula ao vivo. Aula na plataforma virtual. Prepara o roteiro. Prepara o Power Point. Procura um vídeo adequado para encaixar na aula, nem longo demais nem curto demais. E jogos educativos relacionados ao tema. ‘Liga a câmera, por favor.’ ‘Desligue o microfone, por favor.’ ‘Parem de conversar no chat, por favor.’ Confere quem tá na aula. Manda mensagem pra quem faltou. Compra ring light. Compra tripé. Compra quadro. Formata o notebook. Aumenta a velocidade da internet. ‘Todo mundo faz silêncio, vou começar minha aula!’ Última aula do dia. Ufa! Vou desligar tudo agora! Não, pera, tem reunião pedagógica. Assista a live. Faça o curso de formação online. Tem que se capacitar. ‘Novos desafios, novas possibilidades.’ Menina, meia-noite já! Vou dormir em paz. Sonho que o celular caiu e quebrou. Acordo desesperada. Penso no que tem pra fazer amanhã. Perco o sono. O dia amanheceu. Começa tudo de novo.”

O texto, de autoria desconhecida, viralizou no Facebook como retrato da rotina de professores na pandemia. Navegar nessa nova realidade, catalisada pelas ondas de covid-19 mundo afora, não é um mar de rosas, afinal: foi e ainda é um desafio para muitos docentes ouvidos por Gama.

Era segunda-feira 23 de março de 2020, 12 dias após a declaração de pandemia do novo coronavírus pela OMS (Organização Mundial da Saúde), quando a historiadora Scheyla Tizatto, 38, se viu pela primeira vez sentada diante da tela do computador com seu rosto e sua voz transmitidos à casa de estudantes catarinenses e um novo rol de competências exigidas ao exercício da profissão. “Costumo dizer que as atividades pedagógicas não foram suspensas; pelo contrário, iniciou-se um looping de tela sem fim”, relata a professora de história do Colégio do Campeche, em Florianópolis, e do Colégio Dom Jaime, em São José (SC).

O professor só consegue ensinar se estiver disposto e disponível a aprender

Além de ensinar história, conta ela, as demandas passaram a incorporar discussões sobre a saúde mental dos estudantes e suas famílias e até um bê-á-bá digital a seus alunos de instituições particulares, por exemplo,
como escrever um e-mail ou como anexar um arquivo. “Ensinar é verbo de ação, mas, sobretudo, de interação. O professor só consegue ensinar se estiver disposto e disponível a aprender”, diz Scheyla.

Apesar das circunstâncias adversas, a historiadora, doutora pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) considera que as possibilidades de aprendizagem foram ampliadas na disciplina ministrada por ela na educação básica.

Não que tenha sido fácil: foi preciso investir em equipamentos, repensar a abordagem e replanejar as aulas, explorando a possibilidade de levar estudantes a visitar arquivos e museus com tecnologia de realidade virtual ou sítios arqueológicos com o Google Earth, experimentar galerias com o Google Art and Culture e elaborar mundos novos a partir de jogos com o Minecraft: Education Edition – todas as ferramentas foram utilizadas nas versões gratuitas. “A aula deixou de ser uma responsabilidade só minha, como professora, e passou a ser uma elaboração coletiva”, diz.

Se não pode vencê-los, junte-se a eles?

Desde 8 de fevereiro de 2021, com a retomada de atividades presenciais, Tizatto voltou a dar aulas nos colégios, mas a janela digital continuou aberta. “O caminho trilhado em 2020 não poderia ser arquivado. Enquanto professora, eu já não era mais a mesma, tampouco os estudantes. Com o sistema de revezamento, as aulas acontecem com um grupo de alunos em modelo presencial e o outro em modelo remoto de maneira síncrona. Isto é, o espaço virtual está hoje para sala de aula de maneira tão significativa como a lousa. A integralidade desses espaços foi a grande mudança em 2021”, define.

De volta às salas de aula, muitas vezes podemos questionar qual o lugar então de smartphones, games e apps, que foram coringas nas aulas virtuais e agora podem ser considerados distrações aos mais vidrados nas telas.

“‘Distrações’ fazem parte da dinâmica de uma sala de aula viva e pulsante”, pondera a historiadora. “Manter a atenção de estudantes do ensino básico durante 50 minutos, o período de uma aula, é utópico, sobretudo, se o modelo for expositivo. Um estudante pode se distrair com uma folha de papel e um lápis, um livro, um bilhetinho ou até com o próprio conteúdo abordado em aula.”

Caverna Chauvet, localizada próxima a Ardèche, na França, onde foram encontradas as primeiras pinturas da humanidade, feitas há 36mil anos

Google Arts & Culture/Reprodução

Se não dá para negar as distrações digitais, a saída é incorporá-las, acrescenta Eliana Loureiro, 43, professora de pós-graduação da FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado) e do Centro Universitário Belas Artes, em São Paulo.

Pré-pandemia, Loureiro se incomodava com os alunos olhando para o smartphone durante suas aulas de técnicas digitais, user experience ou web analytics. Com a necessidade do ensino remoto, notou que precisava dinamizar os cursos de duas a três horas de duração para capturar a atenção dos estudantes, pedindo, por exemplo, para eles já pegarem o celular e abrirem links sobre determinado assunto ou para conferir se um texto x é fake news. “Ou seja, aproveitamos a oportunidade de estarmos todos em frente a um computador.”

Assim como Tizatto, Loureiro precisou aprender a manejar ferramentas e investir em equipamentos. Adquiriu um computador melhor, câmera, luzes, microfone, monitor novo. O saldo foi positivo: instalada no Guarujá, no litoral paulista, por preferir a vista do mar ao trânsito paulistano, ela conseguiu cursar disciplinas de seu doutorado na UFABC (Universidade Federal do ABC) e de quebra participar de um curso na USP (Universidade de São Paulo), um projeto na Ufscar (Universidade Federal de São Carlos) e um congresso na Finlândia – afinal, diz ela, “estava no famoso ‘a um clique de distância’”. Ela conta que aprendeu isto na pandemia: “É possível fazer muita coisa online. Suponho que, depois disso, o modelo híbrido terá cada vez mais adesão.”

Ensinar é aprender, aprender é ensinar

Gabriela Ramunno, 28, professora de física do Colégio Renovação, com unidades em São Paulo e Indaiatuba (SP), também notou que os estudantes precisavam de um “plus”. Os do 3º ano do ensino médio, lembra ela, estavam desmotivados e nem queriam abrir a câmera na aula. A docente decidiu então dedicar os cinco minutos finais da aula para conversar mais livremente, sobre séries ou filmes, ela tocou piano, um aluno tocou violão. “Foi importante para que eles voltassem a interagir e se sentissem mais próximos uns dos outros.”

Depois, vieram os experimentos: para ensinar hidrostática e hidrodinâmica aos alunos do 2º ano do ensino médio, filmou horas e editou em timelapse o derretimento de gelo, propôs atividades maker (o bom e velho “faça você mesmo”) e vídeos de storytelling com os estudantes do ensino fundamental.

“No final, sugeri um editor para eles e um aluno trouxe uma outra opção de editor de vídeos, explicou os motivos pelos quais ele gostava mais da ferramenta, me ensinou a usá-la e descobri que era realmente muito mais legal do que a que eu estava usando. Agora, só utilizo o editor que o aluno me indicou”, conta.

Para George Bento Catunda, 44, diretor da Abed (Associação Brasileira de Educação a Distância) e gerente-geral de educação profissional no governo de Pernambuco, mais do que possível, é recomendável incorporar tecnologias que foram utilizadas na quarentena ao ensino na volta às aulas presenciais. “Mais que ministrar aula e registrá-la, a pandemia trouxe à tona a necessidade do compromisso com o engajamento dos estudantes. Aí está o centro da aprendizagem.”

Desafio Paz com a Natureza, organizado pelo Minecraft: Education Edition e UNESCO, que convida estudantes do ensino fundamental e médio em todo o mundo a projetar maneiras sustentáveis de viver em harmonia com a natureza

Minecraft: Education Edition/Reprodução

Em tempos de pandemia…

Se recursos digitais podem ser ferramentas úteis na educação, inclusive na presencial, resta saber para quem eles estão disponíveis. “A forma de acesso ao conhecimento produzido hoje depende fundamentalmente da internet. Há recursos que conectam alunos, professores e o conhecimento que são formidáveis”, assinala Hélder Lima Gusso, 39, professor do departamento de psicologia da UFSC e coordenador da plataforma de MOOCs (Massive Open Online Course, cursos massivos on-line e gratuitos ofertados por universidades) Operanda-UFSC.

“Mas acho difícil que, em um país que pouco investe na formação pedagógica de seus professores, o desenvolvimento de habilidades pedagógicas digitais ocorra de maneira crítica e responsável. Mesmo questões estruturais ainda são barreiras: o acesso às tecnologias não está garantido”, critica. “Não há possibilidade de exercício da cidadania, nem de aprendizagem plena sem acesso a recursos básicos para a vida em sociedade. E a sociedade contemporânea é digital. Não há sentido em uma escola desconectada da realidade.”

A sociedade contemporânea é digital. Não há sentido em uma escola desconectada da realidade

A pandemia tornou ainda mais explícita a desigualdade de acesso e a falta de formação de professores. Segundo a pesquisa “Trabalho Docente em Tempos de Pandemia”, realizada em junho de 2020, por exemplo, 89% dos mais de 15 mil entrevistados (entre docentes da educação infantil à de jovens e adultos no Brasil todo) não tinham experiência anterior em aulas remotas e 42% relataram que precisaram aprender tudo por conta própria; 80% afirmaram que a principal dificuldade dos estudantes era a falta de acesso a computadores e à internet.

Talvez hoje mais do que nunca, não ter acesso a tecnologias digitais muitas vezes significa não participar – ou participar de forma insatisfatória – de diversas dinâmicas sociais, como atividades culturais, econômicas e educacionais, diz Daniela Costa, 43, coordenadora da pesquisa “TIC Educação 2020”, realizada pelo Cetic.br (Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação).

O estudo constatou que, entre setembro de 2020 e junho de 2021, 79% de mais de 13 mil escolas urbanas e rurais brasileiras utilizaram aulas gravadas em vídeo (que foram acessadas por professores e estudantes de outras instituições e inclusive outras regiões do país) e 91% utilizaram grupos em apps como o messenger do Facebook e o WhatsApp para se comunicar com pais ou responsáveis. Neste semestre deve ser realizado um novo levantamento, considerando a diversidade de contextos vivenciados pelas escolas atualmente, como a realização de aulas híbridas, apenas remotas ou em rodízio.

O professor da era digital não é o do futuro, mas o que atua hoje junto a estudantes para fazerem sua voz ser ouvida

“Contar com um professor preparado para lidar com tais temas na sala de aula, para estimular os estudantes a refletir sobre eles, é uma das variáveis que compõem a oferta de educação de qualidade. Ainda que professores e estudantes não possuam acesso pleno às tecnologias digitais, eles fazem parte da cultura digital, ela permeia as práticas sociais nas quais estão inseridos”, afirma.

Segundo Costa, ao planejar o uso dos recursos digitais, o mais importante é que o enfoque não seja a tecnologia em si, mas o papel que ela deve cumprir no processo de ensino-aprendizagem, de preferência no qual os estudantes tenham um papel ativo. “O professor da era digital não é o professor do futuro, é o docente que atua hoje junto a estudantes que precisam lidar com as habilidades necessárias para fazerem sua voz ser ouvida, suas ideias serem consideradas, seus conhecimentos serem efetivos”, afirma.

Pandemônio da educação à distância

Roberto della Santa, 40, pesquisador da Universidade Nova de Lisboa, em Portugal, e coordenador do livro “Do Entusiasmo ao Burnout” junto a Roberto Leher, Coimbra de Matos, Duarte Rolo e Raquel Varela, já não é tão otimista. “A crise deu lugar a uma espécie de pandemônio […] em um simultâneo ‘aqui-e-agora’ global, em quase todo o planeta Terra, com cobaias humanas para aquilo que em língua portuguesa chama-se ‘ensino à distância’. […] Este arremedo de ensino não produz um conhecimento autêntico. São doses homeopáticas de informação fragmentada”, ele escreveu, ao lado de sua companheira, Raquel Varela, no artigo “Pandemônio educacional? Para um manifesto docente contra a distância social”, publicado na revista acadêmica Em Pauta. Ou, como definiu à Gama, tratou-se de “reduzir a experiência da educação a bytes”.

Vejo a aula como um convite a outro tempo-espaço, que não é o tempo das mensagens instantâneas e das preocupações cotidianas

Nas suas aulas entre Brasil e Portugal, Della Santa não é fã de gagdets apitando na sala. “Pode ser uma contratendência em relação ao resto do mundo, mas vejo a aula como um convite a outro tempo-espaço, que não é o tempo das mensagens instantâneas e das preocupações cotidianas”, argumenta. Diz, como professor, pai de adolescentes e também pós-doutorando em história moderna e contemporânea, que é preciso valorizar os momentos longes das telas. “Converso muito com os jovens, às vezes a partir de um artigo científico sobre o impacto das telas e estímulos visuais antes de dormir ou sobre como usar as redes sociais de modo sociável. É uma regra da casa, por exemplo: não se usa o celular a partir de determinada hora”, conta.

No entanto, o acadêmico considera úteis as tecnologias de informação como ferramentas de ensino – a questão é o quanto se deve utilizá-las. “Posso parecer um velho do restelo, mas uso muito a tecnologia todos os dias e, na verdade, o que questiono é mais de fundo: qual é o espaço desejável desses aparelhos nas nossas vidas?”, finaliza com uma questão que atormenta muita gente ao redor do globo.