Pesquisadora do Ipea fala sobre influência da maternidade na carreira
Quando uma mãe para de trabalhar?
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"O que explica a desigualdade de gênero hoje é a maternização do cuidado"

Para Ana Luiza de Holanda Barbosa, economista do Ipea que pesquisa gênero e mercado de trabalho, tornar-se mãe é um dos eventos mais significativos que se observa na trajetória profissional de uma mulher

Isabelle Moreira Lima 05 de Maio de 2024

“O que explica a desigualdade de gênero hoje é a maternização do cuidado”

Isabelle Moreira Lima 05 de Maio de 2024
Isabela Durão

Para Ana Luiza de Holanda Barbosa, economista do Ipea que pesquisa gênero e mercado de trabalho, tornar-se mãe é um dos eventos mais significativos que se observa na trajetória profissional de uma mulher

Nada é mais impactante para uma mulher que a maternidade. Se a frase parece remeter à experiência transformadora que é gerar um novo ser humano e ser responsável por seus cuidados e educação por pelo menos 18 anos, ela é aqui aplicada ao que acontece a uma mulher trabalhadora quando tem o primeiro filho. Esse evento é o principal marcador de gênero que as pesquisas em economia identificam hoje e o que mais promove a desigualdade entre homens e mulheres.

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Essa realidade, crucial para entender as desigualdades de gênero hoje, é o principal tema de Claudia Goldin, prêmio Nobel de Economia do ano passado. Sua pesquisa engloba diferentes enfoques da mulher no mercado de trabalho, e mostra que aquelas que são mães têm chances de crescimento profissional reduzidas e a renda penalizada a partir do nascimento do bebê. No Brasil, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) identifica uma imensa heterogeneidade entre as mulheres ativas economicamente, com distinções não apenas decorrentes pela maternidade, mas por raça e classe social.

A economista Ana Luiza de Holanda Barbosa há dez anos se dedica a pesquisar gênero pelo Ipea e pela Sociedade da Economia da Família e do Gênero (GeFam) e diz que os gráficos mostram alterações tão díspares que é quase como “arte abstrata”. “Após o nascimento do filho, é bizarro o que acontece”, afirma em entrevista a Gama a doutora em Economia pela Fundação Getúlio Vargas do Rio.

 Divulgação

Barbosa relata que há perdas em todas as classes sociais, mas que são as mulheres que estão na informalidade e as trabalhadoras domésticas, já vulneráveis, quem mais sofrem com a chegada do primeiro filho. E, ainda assim, muitas vezes são elas quem sustentam toda a família.

Dentro de todos os recortes, há uma diferença grande no número de horas dedicado ao trabalho doméstico, seja o de cuidados com os filhos, seja das tarefas que manutenção da casa. Segundo Barbosa, os dados ainda são poucos claros nesta diferenciação e são vistos como “privados”. Ela fala sobre normas sociais enraizadas, sobre como o homem ainda é visto como provedor e a mulher, cuidadora, mas diz que economistas já estão de olho nesses pontos. As pesquisas, Barbosa defende, são importantes para dar subsídios para a mudança e conscientizar a sociedade.

Se a estrutura de quem contrata for flexível, amigável e menos gananciosa, o cenário fica menos desigual

  • G |Segundo estudo do Ipea, enquanto a probabilidade de trabalhar dos futuros pais não se altera, a das mães cai fortemente conforme o nascimento se aproxima. Virar mãe é o principal marcador de gênero que nós temos hoje no mercado de trabalho?

    Ana Luiza de Holanda Barbosa |

    Sem dúvida. É até uma linha sobre a qual muitos economistas têm se debruçado, incluindo a [economista vencedora do prêmio Nobel de Economia em 2023] Claudia Goldin, a partir de 2010, e super especialistas como o dinamarquês Henrik Kleven. Ele pegou essa linha chamada tecnicamente de “estudos de evento”, que busca compreender como eventos específicos impactam as pessoas de forma diferente. Claudia Goldin, junto a seu companheiro Lawrence Katz e a Marianne Bertrand, analisou o evento “nascimento do filho” para investigar consequências no mercado de trabalho para homens e mulheres. Os resultados das pesquisas são incríveis, tem um gráfico que ficou muito famoso do Henrik Kleven que mostra o período zero e aí abre uma boca do jacaré para mostrar a trajetória dos pais, em cima, e a das mães, embaixo. Após o nascimento do filho é bizarro o que acontece. No Ipea, Eu, Marcos Hecksher e Joana Costa temos um gráfico que mostra uma variabilidade e uma heterogeneidade para as mulheres que é quase um quadro abstrato, tudo colorido. Enquanto, nos homens, é uma linha reta. Antigamente, o que explicava a desigualdade de gênero era menos educação, mas hoje, não só no Brasil, é basicamente essa maternização do cuidado. É papel da mulher tomar conta de filho. E aí as políticas públicas olham só a mãe como cuidadora. Prova disso é a licença-maternidade que pode durar até seis meses, enquanto a licença-paternidade tem 20 dias no máximo.

 Fonte: PNAD Contínua/IBGE. Disponível em https://bit.ly/2RiG38Z

  • G |Os números também ressaltam uma grande desigualdade de gênero na divisão do trabalho doméstico. Vocês têm uma comparação ano a ano, é possível dizer se isso melhora ou piora no Brasil?

    Ana Luiza Neves de Holanda Barbosa |

    A divisão é extremamente desigual no trabalho não remunerado, com afazeres e com cuidado de filhos, e isso ocorre exatamente por causa de normas sociais, o homem tem que ser o provedor e a mulher é a cuidadora. É isso que faz a mulher trabalhar 20, 22 horas semanais em casa e o homem trabalhar 11. E olha que acho até superestimada essa jornada dos homens em casa. É muito difícil você interferir no privado, na família.

    O trabalho reprodutivo e o cuidado não só de crianças, como também de idosos, e outros dependentes é a base para o bem-estar da sociedade de hoje e do futuro. Com relação às crianças, por exemplo. O economista americano James Heckman, também um prêmio Nobel, mostra que os primeiros anos de vida de uma pessoa são decisivos para o seu sucesso na vida adulta. Segundo Heckman, os primeiros contatos, impressões e experiências na vida estabelecem as bases para o desenvolvimento futuro do conhecimento e das emoções de uma pessoa. Uma base frágil pode reduzir as chances de sucesso, enquanto uma base sólida pode aumentá-las significativamente. Em países que investem pouco na educação na primeira infância e que apresenta um sistema de cuidado não integrado e consistente tendem a ter piores indicadores sociais e econômicos. Sem investimentos no sistema e na economia reprodutiva, não há como ter uma economia produtiva eficiente.

    Esse é um problema não só da família, mas também social, em termos de dar assistência, principalmente para as mulheres mais vulneráveis, ter políticas de oferta de creche e de conciliação de trabalho em família. Antes achava-se que isso era uma coisa privada, da família, “eles que decidem”. Mas está cada vez mais claro, até para os economistas mais ortodoxos, que isso afeta todo mundo. Principalmente as mulheres, que ficam sobrecarregadas.

  • G |Como melhorar o mercado de trabalho para mulheres tão sobrecarregadas e, especialmente, para as mulheres que são mães?

    ALHB |

    É difícil, mudar norma social leva tempo. Temos que aumentar a conscientização da população. Atualmente já está melhor, mas ainda tem muita coisa para reformular. A Claudia Goldin resolveu investigar quais os motivos dessa desigualdade de gênero, como está ligada aos cuidados dos filhos. Ela é brilhante porque mostra que os demandantes, as empresas e o setor público, também têm que prover para os trabalhadores. Se a estrutura de quem está demandando for flexível, amigável e menos gananciosa, o cenário pode mudar, ficando menos desigual. Em áreas de direito e financeira, a disparidade é absurda porque os homens estão mais disponíveis para trabalhar mais tempo e a forma de remuneração para as horas extras é não linear, ou seja, tem um aumento muito maior para quem trabalha mais — e quem mostra que está trabalhando. É um ambiente mais agressivo. Então transformar a empresa em um ambiente “family friendly” (amigável para a família) e, mais que isso, “life friendly” (amigável para a vida) é importantíssimo.

Por que é a trabalhadora doméstica e não o cônjuge, o pai, que vai dividir o trabalho de cuidar da casa e dos filhos?

  • G |Seus estudos mostram muita desigualdade de gênero, mas também disparidades entre as mulheres. Poderia comentar?

    ALNHB |

    A médias destas jornadas para as mulheres (21,3) é quase o dobro das dos homens. Mulheres mais pobres podem chegar a alocar em torno de 25, 26 horas por semana nas tarefas domésticas, enquanto as mais qualificadas, com mais renda, alocam 14 horas por semana nesse tipo de trabalho. A menor jornada desse tipo trabalho não remunerados destas últimas se justifica, pois, as chances são maiores para terceirização dos serviços em afazeres e de cuidados. E é importante observar que foram as trabalhadoras domésticas que ajudaram e permitiram que as mulheres mais qualificadas fossem para o mercado de trabalho. É uma solução privada, mas tem uma norma ali enraizada: por que não é o cônjuge, o pai, que assume essa função de dividir o trabalho? Essa solução está na maioria dos países em desenvolvimento. E o que se verificou na pandemia foi que a parte mais atingida economicamente foram as trabalhadoras domésticas. As diaristas, de repente, perderam a sua renda. Você tem dentro do grupo de mulheres uma grande fatia de pessoas muito mais vulneráveis. É um problema realmente que tem que ser atacado de frente.

  • G |Você vê exemplos de outros países que estão conseguindo fazer algo para resolver essa sobrecarga?

    ALNHB |

    Na Colômbia, há cooperação entre sociedade e governo, de parcerias. Estão fazendo políticas nesse sentido, de atender não só as mulheres que estão formalizadas no mercado de trabalho. Aqui tem casos especiais [no emprego formal], multinacionais e outras empresas que têm políticas mais amigáveis.

  • G |Sabemos que o afastamento do trabalho das mulheres que viram mães tem um impacto importante nas famílias. Como isso também afeta a economia do país?

    ALNHB |

    Estudos mostram que o aumento da participação feminina no mercado de trabalho gera crescimento econômico. Tem um estudo da Laísa Rachter, do BID, e do Tiago Cavalcanti, da Universidade de Cambridge, em coautoria com Letícia Fernandes e Cezar Santos, que mostra que 36% dos ganhos de produtividade entre 1970 e 2010 no Brasil podem ser atribuídos à maior inserção das mulheres no mercado de trabalho.

  • G |É possível mensurar o valor do cuidado?

    ALNHB |

    Tem duas linhas que respondem. A primeira é de uma pessoa que foi do Ipea e é referência em Economia feminista, que é a Hildete Pereira de Melo. Ela e Cláudio Considera, professores da UFF, em 2007 e 2008, imputaram nas horas de cuidado o salário das trabalhadoras domésticas e tentaram visualizar quanto vale o cuidado não remunerado em termos de PIB. Em 2007 e 2008 era 13% e agora está 8,5%. A outra forma está em um trabalho que fiz com a economista Joana Costa, minha colega do Ipea, e com a Maíra Albuquerque, que é assessora econômica da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, sobre o custo de oportunidade, o quanto que as mulheres, empregadas no mercado de trabalho ou não, estão deixando de ganhar ao realizarem o trabalho não remunerado em afazeres domésticos e de cuidados. Para as mulheres mais qualificadas, esse valor é mais alto, então o custo de oportunidade também é mais alto. E para as mulheres menos qualificadas o custo de oportunidade é menor. A Ana Amélia Camarano, demógrafa, pesquisadora e coordenadora de Estudos e Pesquisas de Igualdade de Gênero, Raça e Gerações do Ipea, sugeriu avaliar a parcela desse salário, desse custo de oportunidade, sobre a renda total familiar. O que a gente observou foi muito significativo: a renda da mulher mais pobre tem um peso que representa 129% da renda domiciliar. Ou seja, essas mulheres realmente são o suporte da família.

Oferecer poder de escolha para a mulher é fundamental

  • G |Um outro estudo, da FGV de 2018, ficou célebre ao mostrar que mais de 50% das mulheres são demitidas quando voltam da licença-maternidade, e ficam fora do mercado de trabalho 12 meses depois da licença…

    ALNHB |

    É um estudo da Cecilia Machado e do Valdemar Pinho Neto, colegas economistas. E agora a gente quer replicar com a licença-paternidade, até para conscientizar para a importância de uma licença parental, de ter políticas direcionadas e neutras em relação a gênero. Me parece que a gente se agarrou à ideia de lutar pela licença-paternidade, porque é mais fácil em termos de legislação. Está prevista na Constituição, só que nunca executaram. Mas o ideal seria a licença parental, sistema em que é o casal quem decide quem cuida. Chile é um caso em que a licença-paternidade não é mandatória e ninguém tira. O que explica isso? Algumas possibilidades são um medo do homem de se afastar do trabalho, uma certa descriminação, ou até não aderem por vontade mesmo.

  • G |Desde que iniciou sua pesquisa nessa área, viu melhoras em relação à desigualdade de gênero no mercado de trabalho?

    Um outro estudo, da FGV de 2018, ficou célebre ao mostrar que mais de 50% das mulheres são demitidas quando voltam da licença-maternidade, e ficam fora do mercado de trabalho 12 meses depois da licença-.. |

    No Brasil, enfim tivemos uma evolução nos últimos anos nesse sentido, de dar a dimensão do problema. Precisamos de políticas que atendam essas demandas da mulher: trabalhos mais flexíveis, promoção das questões conjunturais, mas que tenha um foco também em reduzir essa sobrecarga, o cuidado exacerbado que fica sob a responsabilidade das mulheres. Precisamos de políticas públicas, creche e políticas com viés de conscientização, como incentivos para empresas que olham para as trabalhadoras de uma forma mais amigável. Tem que colocar os incentivos na direção correta: licença parental, oferta de creche e novos formatos. A Claudia Goldin, em um artigo, escreveu: “Como é que você vai terminar com a desigualdade de gênero? Não é pedindo para os seus maridos fazerem mais o trabalho de casa, embora isso não fosse também de todo ruim”. É você colocar uma estrutura mais adequada, mas flexível. É ter um lugar em que seja normal ser mãe e trabalhar. Tem que conscientizar quem demanda as trabalhadoras. Um avanço interessante foi tornar crime perguntar na entrevista de emprego se uma candidata quer ter filho. Outro foi o trabalho remoto, que mostrou que é possível trabalhar com flexibilização. Oferecer poder de escolha para a mulher é fundamental.

 Fonte: PNAD Contínua/IBGE. Disponível em https://bit.ly/2RiG38Z

  • G |Você acha que o fato da Cláudia Goldin ter sido laureada com o Nobel por essa pesquisa mostra que estamos mais de olho para esse tipo de desigualdade?

    ALNHB |

    Esse prêmio foi fundamental. Fiquei muito feliz e, aliás, ficamos todas as economistas: fizemos cartas, podcasts. Ela foi a terceira mulher a ganhar o Nobel em economia. Mas a primeira a receber sozinha o prêmio. Para a economia é extremamente importante porque são pesquisas muito minuciosas em termos históricos. Tudo é aplicado, de forma muito específica, para mulheres dos Estados Unidos, mas em algum momento e de alguma maneira vai se aplicar em algum outro país que está menos desenvolvido. Para a economia, é legal por dar dimensão da importância do gênero e por usar ferramentas de oferta e de demanda do trabalho, ferramentas econômicas. Os economistas estão cada vez mais preocupados com o micro, com as famílias, com as mulheres, com a questão racial.