Como os quadrinhos se adaptam aos tempos atuais — Gama Revista
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Divulgação/ Evan “Doc” Shaner/DC Comics

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Reportagem

As configurações dos personagens foram atualizadas

Da Liga da Justiça à Turma da Mônica, os quadrinhos se adaptam aos tempos para seguir com relevância e leitores

Daniel Vila Nova 27 de Março de 2022

As configurações dos personagens foram atualizadas

Daniel Vila Nova 27 de Março de 2022
Divulgação/ Evan “Doc” Shaner/DC Comics

Da Liga da Justiça à Turma da Mônica, os quadrinhos se adaptam aos tempos para seguir com relevância e leitores

Durante décadas, o Superman foi o símbolo definitivo do American Way of Life. Trajando as cores da bandeira estadunidense, o alien de Krypton era a representação perfeita dos valores americanos. Seu lema “Verdade, Justiça e American way” norteou a existência da personagem durante décadas, mas as coisas mudaram no ano passado. No evento DC FanDome 2021, convenção virtual criada para os fãs da editora DC Comics, o diretor criativo da DC Jim Lee anunciou a mudança do mote do Homem de Aço.

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Desde o anúncio, o mantra do Superman passou a ser “Verdade, Justiça e Um Amanhã Melhor”. De acordo com Lee, a alteração quer honrar o legado do Superman, de mais de 80 anos de construção de um mundo melhor. Para o editor, o herói sempre foi um símbolo de esperança e a evolução do lema quer deixar claro que essa esperança é para todos.

Mudanças em personagens de quadrinhos não são novidades. Muitas das características que hoje consideramos essenciais para certa personagem, na realidade foram adicionadas anos ou décadas depois de suas criações. A novidade agora é uma preocupação com diversidade e questões sociais importantes para o discurso atual.

Seja com a adição de novas personagens de diferentes etnias e sexualidades ou com a alteração de personagens já existentes, o mercado de quadrinhos almeja se tornar mais diverso e apelar para um público maior e cada vez mais engajado politicamente. Até mesmo no Brasil, personagens da clássica Turma da Mônica estão sendo “atualizados”.

Gama conversou com o mercado editorial de gibis para entender como essas releituras surgiram nas HQs e qual o impacto delas em personagens nacionais.

Crise nas Infinitas Releituras

Em 1985, uma das mais importantes histórias no mundo dos quadrinhos foi publicada. “Crise nas Infinitas Terras” foi uma saga que reuniu toda a extensa galeria de super-heróis da renomada editora de quadrinhos DC Comics. O objetivo, além de vender gibis, era simples – arrumar a confusa galeria de heróis da editora. Com décadas de histórias escritas por diferentes roteiristas, a coesão interna e a continuidade das narrativas da DC eram caóticas. Para novos fãs, acompanhar tudo o que estava acontecendo com os heróis da editora era uma tarefa cada vez mais difícil.

A solução foi o quadrinho “Crise nas Infinitas Terras”, que em 12 edições retificou origens e informações conflitantes e estabeleceu que só havia uma única continuidade coesa no universo ficcional da DC. A editora ainda publicou novas origens para seus principais personagens, modernizando os heróis e estabelecendo um novo cânone para figuras como Batman, Mulher Maravilha e Superman.

São oito décadas de narrativa, boa parte das possibilidades já foram esgotadas. Como você faz o Bruce Wayne enfrentar um novo desafio?

“Quando falamos de super-heróis, temos que entender que estamos falando de um gênero que existe há mais de 80 anos.” Quem afirma isso é Waldomiro Vergueiro, bibliotecário, professor da ECA-USP e fundador e coordenador do grupo de pesquisa Observatório de Histórias em Quadrinhos. “São oito décadas de narrativa, boa parte das possibilidades já foram esgotadas. Como você faz o Bruce Wayne enfrentar um novo desafio?”, questiona Vergueiro.

A resposta das editoras é simples – você muda a personagem ou certas características delas. Em alguns casos, as personagens clássicas se ausentam e novas figuras assumem mantos icônicos. Dick Grayson, o primeiro Robin, já foi o Batman por um tempo. Já Ben Riley, o clone de Peter Parker, assumiu o posto de Homem-Aranha durante a década de 90. “Uma editora não vai mudar as características do seu principal herói de um dia para o outro”, afirma Vergueiro. “Quando outra personagem assume um manto clássico, é uma forma de rejuvenescer aquela personagem.”

Em outros casos, as mudanças ocorrem com as próprias personagens. Nas primeiras histórias do Batman, o Homem-Morcego não só usava armas de fogo como também matava os bandidos. Com o tempo, a proibição de armas de fogo – objeto que matou os pais de Bruce Wayne – se tornou uma das principais características do Batman. Já a regra de não matar ninguém virou o limite moral estabelecido pelo Homem-Morcego.

“O quadrinho é um meio vivo”, afirma Fabiano Denardin. Ele é editor da Mythos Editora e já trabalhou com títulos como Batman e Liga da Justiça. “Os personagens clássicos se modificam e incorporam elementos do mundo ao longo do tempo. O Batman tinha de se diferenciar dos bandidos, por isso ele parou de usar armas e começou a não matar.”

De acordo com Denardin, é impossível uma personagem viver por mais de 80 anos e continuar da mesma forma com que foi criada. “No começo, o Batman vivia em uma lógica preto no branco de bandido contra mocinho.” Para o editor, isso se perdeu nos dias de hoje. “Enquanto sociedade, nós não aceitamos mais essas soluções simplistas.”

Roteirizada por Marv Wolfman e ilustrada por George Pérez, “Crise nas Infinitas Terras” foi a primeira grande saga dos quadrinhos  Divulgação

Crise Infinita

O sucesso da “Crise nas Infinitas Terras” modificou a lógica da indústria de quadrinhos. Essas grandes sagas que reestruturavam a continuidade das histórias facilitavam a entrada de novos leitores e atraiam a atenção do público. Com o tempo, elas começaram a ficar cada vez mais frequentes – “Zero Hora”, em 1994; “Crise Infinita”, em 2006; “Ponto de Ignição”, em 2011; e “Renascimento”, em 2016.

“Décadas se passaram até que as primeiras releituras fossem feitas”, diz Denardin. “Nos dias de hoje, isso é cada vez mais comum.” De acordo com o editor, se uma ideia deu certo no passado, a indústria a repete até a exaustão. “Quadrinhos são rápidos e baratos de serem produzidos quando comparados a um filme ou uma série. Logo, é bem fácil de experimentar com eles.” Para o editor, o problema é quando a mudança é feita pela mudança, sem um direcionamento. “Reformular uma personagem costuma ser uma solução fácil quando os índices de venda não estão bons.”

Quando um novo tópico social é explorado nos quadrinhos de super-herói, é porque essa já é uma discussão madura na sociedade

Apesar das constantes releituras, existem limites para o que pode ser feito. Quanto mais icônico a personagem, maiores são os limites. Em uma entrevista à Variety, os criadores da série animada da Arlequina comentaram que a DC vetou uma cena onde o Batman fazia sexo oral na Mulher-Gato. “Diversos autores produzem novas abordagens, mas muitas vezes é um processo realizado pela tangente. Ao invés de você trabalhar a sexualidade do Superman, você trabalha a sexualidade do filho dele”, afirma Denardin.

Para o pesquisador Waldomiro Vergueiro, a produção em escala industrial de HQs faz com um número alto de vendas seja essencial para pagar o investimento feito. “As histórias de super-heróis seguem determinadas normas. Tudo o que possa alienar parte da audiência ou que seja polêmico demais costuma ser vetado.” Vergueiro entende que o mundo dos super-heróis costuma ser mais lento na adequação à mudança do tempo. Enquanto HQs alternativas e independentes se adaptam a novas questões sociais com maior velocidade, a lógica industrial dos quadrinhos de super-herói faz com que esses tópicos só apareçam nas páginas quando eles começam a trazer resultados para a indústria. “Quando um novo tópico social é explorado nos quadrinhos de super-herói, é porque essa já é uma discussão madura na sociedade.”

Quem lacra, lucra?

Em um mundo onde a concentração de riqueza é cada vez mais problematizada e a existência de bilionários é constantemente contestada, há como o Batman – e sua ostensiva riqueza – ser o herói? “Nos últimos anos, diversas críticas surgiram à personagem do Batman”, afirma Isabelle Felix, editora da DC Comics no Brasil. “E existem releituras que abordam essa temática.” Como exemplo, ela cita o quadrinho “O Cavaleiro Branco”, onde o Coringa é curado de sua loucura e passa a questionar quais são os verdadeiros culpados pelo crime e pela violência em Gotham. A conclusão dele? Os políticos, a corrupção e, em boa parte, o próprio Batman.

De acordo com Felix, os quadrinhos foram abordando temas políticos que eram discutidos pela sociedade ao longo do tempo. Na década de 40, o Capitão América estava chutando a bunda de Hitler nas páginas do seu gibi. Na década de 60, os X-Men foram inspirados no movimento dos direitos civis dos negros nos EUA. Já na década de 70, uma história do Arqueiro Verde e do Lanterna Verde abordou o vício em drogas de forma bem sombria. Nos últimos dez anos, as discussões sobre machismo, racismo e LGBTQIA+fobia capturaram a atenção das HQs. As releituras, então, servem como ferramenta para atualizar os super-heróis e possibilitar que eles abordem novos temas.

E até mesmo o Homem-Aranha, uma das personagens mais relacionáveis das HQs, precisa de uma atualização. Se balançar pelos prédios de Nova York pode ser bem atraente, mas a figura por trás da máscara também é igualmente responsável pelo sucesso do cabeça de teia. Peter Parker não é como Clark Kent ou Bruce Wayne. Enquanto os protagonistas da DC são adultos responsáveis e com finanças estáveis, boa parte do apelo de Parker é que ele é uma bagunça. Sempre endividado, o rapaz tem que se virar para equilibrar sua vida pessoal e emocional com seus deveres de super-herói. Ele, assim como o leitor, é uma pessoa comum.

Com o novo Homem-Aranha negro e latino, pela primeira vez, meninos e meninas de pele escura puderam se enxergar como o mais popular dos super-heróis

Em 2011, um novo Homem-Aranha surgiu. Miles Morales, um adolescente negro e latino, assumiu o manto do amigo da vizinhança e conquistou uma legião de fãs em pouco tempo. O novo perfil do herói, e os consequentes novos problemas que ele tem de enfrentar, abriram novas possibilidades de histórias e consagram Morales como um das mais empolgantes adições ao cânone da Marvel. Pela primeira vez, meninos e meninas de pele escura puderam se enxergar como o mais popular dos super-heróis.

“Durante muito tempo, os super-heróis que nós consumimos seguiam um mesmo padrão: brancos, héteros e cis. Mas há muita gente que ama quadrinhos e quer ser inserida nessa história.” A fala é de Rafael Calça, roteirista e ilustrador de HQs. “Nós precisamos pensar em como construir histórias que não excluam mais as pessoas.” Como exemplo, o autor cita a revelação de que Jonathan Kent, o filho do Superman, é bissexual. “Ele é um ser de outro planeta, alguém que se sente à margem da sociedade. Quando você fala sobre o filho dele ser bissexual, você não está alterando a essência da personagem, você só está atualizando a temática.”

Miles Morales surgiu no universo Ultimate, uma reimaginação dos heróis da Marvel. A personagem foi tão bem recebida que acabou migrando para a continuidade oficial da Casa das Ideias  Divulgação

Calça, em conjunto com o artista Jefferson Costa, foi responsável pelas HQs “Jeremias – Pele” e “Jeremias – Alma”. O quadrinho, lançado em 2018, é uma história de origem para o Jeremias da Turma da Mônica. O projeto faz parte do selo Graphic MSP, linha editorial da Mauricio de Sousa Produções que realiza releituras de personagens clássicos da Turma da Mônica. No gibi, que ganhou como melhor HQ no Prêmio Jabuti de 2019, Calça conta a história da primeira vez em que o menino sofreu preconceito por ser negro.

Havia uma ausência de protagonismo e de histórias sobre Jeremias. Nós trouxemos isso à tona e falamos sobre os meninos que fomos

“O Jeremias era o único personagem negro da Turma da Mônica, mas havia uma ausência de protagonismo e de histórias sobre ele”, fala o autor. “Nós trouxemos isso à tona e falamos sobre os meninos que nós fomos. Queríamos entender como nós poderíamos atingir as crianças e os adultos que cresceram sem essa representatividade nas páginas.” A releitura, no entanto, não foi fácil. Jeremias não tinha características bem definidas e tudo o que o autor conseguiu reunir foram a boina vermelha que usava e o fato de ser zoado por ser careca. “Ele sequer era uma personagem.”

A releitura de Jeremias transformou um coadjuvante que mal tinha falas em uma das mais interessantes figuras do universo criado por Mauricio de Sousa  Divulgação

Uma nova Turma da Mônica

Em 2009, Mauricio de Sousa completou 50 anos de carreira e, como homenagem, artistas nacionais fizeram pequenas releituras de personagens clássicos criados por ele. O projeto deu tão certo que a série foi expandida e se tornou uma linha editorial própria dentro da Mauricio de Sousa Produções – a Graphic MSP. Ao invés de histórias curtinhas, artistas receberam a missão de escrever uma graphic novel de personagens clássicos.

Além de “Jeremias – Pele” e “Jeremias – Alma”, outras 29 HQs foram produzidas e recontam a história de figuras como Mônica, Astronauta, Horácio e Penadinho. O responsável pelo selo é o jornalista Sidney Gusman. Terror, aventura, ficção científica e outros gêneros ganharam as páginas dos mais importantes personagens do quadrinho brasileiro.

Se a Turma da Mônica era referência quando falávamos de gibis para crianças, o projeto foi capaz de conquistar um novo público. “Um dos depoimentos que eu mais recebo é o de que as Graphics MSP fizeram a pessoa voltar a ler quadrinhos. Havia a possibilidade de conversar com um público mais velho”, diz Gusman.

Temas sociais que não costumavam habitar as páginas da Turma da Mônica também entraram na nova linha. Em “Mônica – Força”, os pais da garota estão se separando e ela tem de lidar com todos os sentimentos que essa mudança abrupta causa em uma criança. “É uma situação que acontece no mundo real, mas que nunca aconteceria na Turma da Mônica. Essa linha permite que nós exploremos esse lado mais humano.”

Com a boa recepção do quadrinho, Gusman passou a considerar novas possibilidades e temáticas para as futuras edições. “Eu sabia que em 2018 o filme do Pantera Negra ia ser lançado e era uma oportunidade perfeita para falar sobre racismo. O Jeremias era o personagem perfeito para isso.” Quando o editor relatou para Mauricio de Sousa que o Jeremias, em toda a história da Turma da Mônica, jamais havia protagonizado uma capa de gibi, o quadrinista ficou em choque e a HQ foi prontamente aprovada. “A ideia era mostrar, por meio da força dessas personagens, questões sociais importantes.” Para Gusman e Calça, a releitura de Jeremias trouxe algo que os quadrinhos brasileiros deviam à personagem – justiça histórica.