Marcelo D'Salete: histórias em quadrinhos, rap e mais — Gama Revista
©Rafael Roncato

História em quadrinhos

Como o premiado quadrinista Marcelo D’Salete conta a trajetória dos negros brasileiros

Willian Vieira 15 de Abril de 2020

Pantera Negra e Luke Cage foram marcos da diversidade étnico-racial nas artes visuais, os primeiros heróis negros a alcançar o mainstream dos quadrinhos nos Estados Unidos. Por aqui, Marcelo D’Salete, 41, é o brasileiro que ganhou o “Oscar” dos HQs ao recontar a história dos escravizados sob uma perspectiva da própria população negra.

Só não espere a simplicidade de vilões e mocinhos. “Sempre achei o gênero de super-herói distante dos meus interesses”, diz D’Salete, com a voz calma de quem sabe exatamente o que quer dizer. Por isso não perdeu tempo com eles quando começou, ainda moleque, a traduzir as histórias da periferia paulistana em tirinhas embebidas em rap e grafite. Tampouco quando, já premiado, produziu seu épico sobre Palmares.

Hoje símbolo de resistência negra, Zumbi é protagonista de sua mais recente graphic novel, “Angola Janga” (2018), mas não “herói”. Ele o retrata como homem, que luta pela liberdade do quilombo, histórico e ficcional ao mesmo tempo – com “defeitos, complexidades, desejos e medos”, diz. “Tudo faz parte dos personagens. E o sucesso dessas obras tem a ver com isso.”

Não bastava fazer do colonizador um vilão e dos quilombolas, mocinhos: era preciso recriar os habitantes de Palmares de forma relacionável, humana. “Quis instigar as pessoas a ver a história de outro modo, o que me afastou dos personagens idealizados.” Tanto que ele usa os conflitos entre lideranças na linha narrativa. O que o fez ser criticado por leitores mais engajados. Mas é preciso ter cuidado, diz: “se não a gente idealiza como um personagem pode ser mostrado e criado, perdendo um tanto de complexidade”.

D’Salete ficou conhecido por “Cumbe” (Veneta, 2014) – que levou o maior prêmio de quadrinhos do mundo, o Eisner. Do quimbundo, “cumbe” significa força, fogo, luz, o que traduz o esforço dos escravizados para lutar contra o sistema escravista. “Angola Janga” (Veneta, 2017), seu último, ganhou o Jabuti. Mas até aí houve um longo percurso, acompanhado pela presença de Zumbi.

Retrato do artista quando jovem

“Venho de uma família sem artistas: meu pai era eletricista, minha mãe, enfermeira”, conta o quadrinista. “Ninguém trabalhava com arte. Então isso sempre foi um sonho, algo inalcançável.” O mesmo se deu na escola. A primeira vez que ouviu falar de Palmares foi de uma colega, não do professor. “Poucos foram os momentos em que vi discussões sobre história e cultura negra”. E a perspectiva era sempre a da escravidão.

Marcelo cresceu fora “do sistema”, num mundo onde a abolição nunca foi propriamente completada, como costuma dizer. De um lado, a invisibilidade da cultura de matriz africana no mainstream da literatura e das artes visuais; de outro, a hipervisibilidade do negro como o suspeito preferido de uma sociedade racista.

É uma desconstrução que a gente tem que fazer, nossa geração tem essa tarefa: tensionar as questões e vislumbrar outro modo de ver nossa história

A música era o respiro. “Cresci ouvindo rap paulistano – Thaíde, RZO, ‘Um Homem na Estrada’ dos Racionais. A partir disso, comecei a elaborar histórias sobre o cotidiano, conflito, minha percepção como jovem numa cidade como São Paulo.” Tinha 15 anos quando começou a produzir tirinhas.

Logo passou a publicar em revistas como a Front, a conhecer outros quadrinistas. E a ler autores negros. Toni Morrison, Plínio Marcos, Luís Fulano de Tal instigaram seu interesse. O cursinho pré-vestibular voltado para a população negra na USP foi a pedra de toque. “Foi quando percebi a ausência disso em grande parte das histórias em quadrinhos.”

D’Salete se graduou em artes plásticas pela USP, trabalhou como ilustrador, mas queria expressar um ponto de vista. Sua primeira graphic novel, “Noite Luz”, veio em 2008; em 2011, foi a vez de “Encruzilhada”. Ambas trazem o olhar jovem da periferia brasileira. Racismo, violência policial, desigualdade, os temas para os quais o rap e o grafite lhe abriram os olhos, preenchem os quadros. Mas também uma nova sensibilidade.

Trazer Palmares para os quadrinhos

Quem vê um HQ talvez não imagine o trabalho por trás das linhas e quadros. Para “Cumbe” e “Angola Janga” nascerem, D’Salete trilhou um longo percurso, desde que estudou sobre o Brasil colonial para um curso em 2004 e pensou num projeto sobre a vida no quilombo. O rascunho do roteiro veio em 2006. “Mas percebi que precisava de muita pesquisa para fazer esse quadrinho.”

A maioria dos documentos sobre Palmares, o quilombo-nação formado por negros que haviam fugido da escravidão (e que chegou a ter mais de vinte mil pessoas em seu auge) foi produzida pelo colonizador. D’Salete foi então pesquisar sobre as culturas de Angola e do Congo, as línguas originais e foi ao memorial de Palmares entender a geografia – tudo para contar como era a vida no mocambo nas últimas décadas de sua existência.

A produção artística que questiona o poder e a estrutura desigual no Brasil hoje está sob ataque do governo e de grupos de extrema direita

Da ideia inicial ao livro publicado, foram 11 anos. “Pesquisei sobre como seriam a vila dos colonos e os macombos dos palmaristas: é um sistema que precisa funcionar em termos gráficos.” A experiência de leitura tem de ser visual, afinal. “E não só um desenho bonitinho. A Laerte, com os Palhaços Mudos, faz um trabalho excelente sem palavra nenhuma.”

Não era sua intenção reescrever a história, mas imaginar como aquelas pessoas, diante da liberdade, viveram e imaginaram a vida sem o peso da escravidão; contar a história sob outra ótica, não a da colonização. “É uma desconstrução que a gente tem que fazer, nossa geração tem essa tarefa: tensionar as questões e vislumbrar outro modo de ver nossa história.”

O traço premiado de “Cumbe”

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Quadrinhos em tempos obscuros

Hoje D’Salete se divide entre a Escola de Aplicação da Usp, onde leciona artes visuais, e o estúdio, onde imagina histórias que chacoalhem o senso comum. Quando os alunos souberam dos prêmios, foram parabenizá-lo. “É uma escola onde é possível ter um contato interessante com as novas gerações e discutir esses temas”, diz. Uma sorte para ambos os lados.

“Houve muito retrocesso, é um momento de crise. Mas é na crise que podemos rever o que significa Governo, Poder, Estado.” É nesse momento, diz, que a população pobre e marginalizada pode fazer com que as coisas mudem. “Por isso faço esses quadrinhos: por acreditar que podemos transformar a realidade com uma visão mais complexa e interessante da história, que vá além do modo hegemônico e discriminatório de hoje.”

Atualmente, ele debruça “simultaneamente, na medida do possível e do impossível,” sobre várias obras, uma das quais será uma graphic novel “sobre uma família periférica” e os embates que vivem numa metrópole. A história deve cobrir as últimas duas décadas do Brasil. Deve ser a próxima.

Mas é possível viver de quadrinhos, sobretudo engajados, em tempos de guerra cultural? “Pensando nos últimos anos, nos eventos de que participo, talvez sim. Mas meu caso não serve de parâmetro”, diz.

Agora, a produção artística, diz, “principalmente a que visa questionar o poder e a estrutura desigual no Brasil, está sob ataque do Governo e de grupos de extrema direita.” O apoio estatal desapereceu: no lugar, há negacionistas do racismo e o preconceito pouco velado do presidente. “Não é algo tranquilo trabalhar com esse tema no Brasil de hoje.”

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