Ronaldo Lemos fala das mudanças na forma de usar as redes — Gama Revista
Qual o futuro das redes?
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Reprodução Instagram/ @lemos_ronaldo

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Conversas

Ronaldo Lemos: "Existe hoje uma falta de inovação nas mídias sociais"

Apresentador do programa Expresso Futuro e colunista da Folha de S.Paulo, advogado fala sobre as mudanças na maneira como a gente usa as redes e as transformações de país que poderiam nascer daí

Luara Calvi Anic 04 de Dezembro de 2022

Ronaldo Lemos: “Existe hoje uma falta de inovação nas mídias sociais”

Luara Calvi Anic 04 de Dezembro de 2022
Reprodução Instagram/ @lemos_ronaldo

Apresentador do programa Expresso Futuro e colunista da Folha de S.Paulo, advogado fala sobre as mudanças na maneira como a gente usa as redes e as transformações de país que poderiam nascer daí

Ronaldo Lemos gosta mesmo é de pensar maneiras que a internet possa servir para desenvolver e melhorar uma sociedade. Para entender sua especialidade e seus interesses, basta ler suas colunas na Folha de S. Paulo, as inúmeras entrevistas que ele já concedeu e assistir ao seu programa, Expresso Futuro, que acaba de estrear uma sexta temporada no Canal Futura e na Globoplay.

Os seis novos episódios mostram como o continente africano “está sendo totalmente transformado pela conectividade”, como ele diz. Seu intuito foi mostrar como inovação tecnológica e economia do conhecimento podem gerar recursos e transformar um país, servindo de inspiração inclusive para o Brasil. Um exemplo é a onipresente conexão de internet encontrada no Quênia, rápida e disponível para toda a população, inclusive nas regiões mais pobres. “Conectividade é pilar para o desenvolvimento”, diz em um dos episódio.

Lemos é advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro e professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no Schwarzman College da Universidade de Tsinghua, em Pequim, e na Universidade de Columbia, em Nova York. É também idealizador do Marco Civil da Internet, lei sancionada em 2014 que se tornou histórica, e um exemplo para o mundo, ao estabelecer princípios, garantias, direitos e deveres para quem faz uso da rede, além de trazer diretrizes para a atuação do Estado.

Para ele, o Marco Civil, que em breve completa uma década, ainda cumpre o seu papel e serve de símbolo para um tempo em que o Brasil era respeitado no tema da governança da internet. “Foi um processo de construção coletiva, uma lei que foi desenhada por meio de uma consulta pública na internet. Esse processo foi muito bem sucedido, tanto que é referência até hoje”, diz a Gama.

Grande observador das redes, o mineiro de 46 anos fala sobre o futuro do Twitter, das redes sociais e de como deve ser a ascensão do metaverso. Diz ainda que é tempo de pensarmos caminhos para usarmos as ferramentas tecnológicas criadas até aqui para transformar o Brasil em um país competitivo em diferentes frentes, não apenas a partir do que é produzido pelos recursos naturais.

Dados são tão importantes quanto capital para promover processos de inovação

  • G |As transformações do Twitter a partir da compra da plataforma pelo Elon Musk tem a ver com um movimento de fim das redes sociais como nós conhecemos?

    Ronaldo Lemos |

    Sim. O primeiro ponto é que as empresas de tecnologia cresceram muito durante a pandemia. A gente viu o Tik Tok ganhar muito terreno, viu o e-commerce explodir também, e agora o que estamos vendo é um ajuste. O mundo está voltando à normalidade, então claro que haveria um ajuste. Mas tem algo que vai além dessa questão. Existe hoje, por incrível que pareça, uma falta de inovação nesse setor das plataformas e das mídias sociais. O modelo atual foi a última grande inovação que aconteceu no final dos anos 2000, início de 2010. Foi você passar a utilizar volumes gigantescos de dados como principal modelo de negócio e vender publicidade totalmente direcionada. E a outra inovação que houve é a criação do feed. O modelo de feed que hoje é utilizado basicamente por todo mundo: Facebook, Instagram, TikTok, YouTube. Hoje, o usuário não escolhe mais o que ele quer ver. O feed que escolhe por ele. Você tem muito pouco controle sobre o que vai aparecer ali, é a empresa que está escolhendo e colocando na sua frente. Então essa inovação do feed junto com o uso de dados em escala massiva levou ao último ciclo de inovação, que gerou muito dinheiro e continua gerando. Depois disso, do iPhone, não houve mais nada de tão relevante.

  • G |Tivemos uma mudança na usabilidade. Consumimos conteúdo de pessoas que a gente nem segue ou conhece. As redes sociais estão mudando?

    RL |

    Essa mudança que você acabou de descrever é a inovação do TikTok. Essa é a sacada que o TikTok teve que outras redes não tiveram antes. A plataforma também não é uma mídia social a qual a inteligência artificial foi adicionada. É o contrário. Tem uma arquitetura diferente, mais sofisticada, e mais embarcada na ideia de inteligência artificial. A mudança principal que o TikTok propôs é que você não vai limitar o que aparece no seu feed às pessoas que você segue. Há alguns anos, só era mostrado conteúdo das pessoas que você seguia. Algumas empresas começaram a disparar outros assuntos ou posts que eram do seu interesse, mas o TikTok radicalizou nessa decisão. Ele ignora completamente quem você segue ou deixa de seguir, ele simplesmente olha para tentar entender os seus interesses, e com base neles coloca qualquer coisa que capture a sua atenção da maneira mais forte possível. Essa é a grande mudança, ele rompeu com o seu círculo de pessoas como forma de te entregar conteúdo de interesse. Ele ignora seu círculo, você pode até ir para uma outra aba e conseguir enxergar esse círculo, mas a aba principal do TikTok é a empresa decidindo. Olhando tudo que está acontecendo no mundo e falando “o Ronaldo vai querer ver isso aqui com base nas preferências que eu já detectei dele”.

  • G |O que a gente perde com isso?

    RL |

    Isso é problemático porque, bem ou mal, esse círculo social que a gente tem nas redes sociais é ainda um fenômeno de coletividade, um resultado do coletivo, de uma vida coletiva. E o que essa mudança do TikTok acaba promovendo é você não ter conexão com mais ninguém. É você sozinho ali e a empresa, o algoritmo te mandando conteúdo. Você se conectando só ao algoritmo, não necessariamente a uma pessoa ou um grupo. Isso provoca, na minha visão, um individualismo muito profundo. As pessoas que já estão hoje muito atomizadas, desagregadas, sozinhas, vão ter uma solidão ainda maior porque vão ser elas e o algoritmo. Isso eu acho bem complicado.

  • G |O Twitter é ainda um lugar de debate. Como fica essa conversa? Você acha que o fim do Twitter está próximo?

    RL |

    Não, acho que não. O Twitter está muito em discussão agora por causa da compra pelo Elon Musk. Ele tem toda uma visão do que o Twitter deve ser, mas é curioso porque é uma visão que está se provando de usuário, não de alguém que entende a gestão de uma plataforma de mídia social. Então algumas das propostas dele eram boas, por exemplo, ele falava que ia acabar com os robôs e ia colocar um sistema que era uma pessoa, uma voz. Isso seria interessante porque um dos problemas que a gente tem hoje é essa desinformação e esses perfis falsos. O Twitter está infestado de robôs. E o Elon Musk falou “vamos acabar com todo robô e cada um fala no seu próprio nome, se identifica, é autenticado e e responsável sobre o que disser”. Só que até agora não se chegou a isso, e é muito difícil provar a identidade de alguém online. Ele não vai conseguir também. Até espero que seja ele que crie a solução para o problema de se provar a identidade de alguém na internet, mas é muito difícil. Tem muita gente tentando há anos e ninguém conseguiu. Não acho que seja ele que vá resolver isso em alguns meses.

  • G |Você acha que o Twitter deve continuar relevante?

    RL |

    Tem muita gente dizendo que vão ter outras redes que vão crescer, como Mastodon e o Koo, mas não dá para subestimar o efeito de rede [que tem relação com a quantidade de usuários utilizando determinado serviço]. Uma vez que já tá todo mundo lá, você mudar de plataforma é muito frustrante. É difícil, dá trabalho, você posta no novo e não tem audiência…. A não ser que aconteça um desastre de gestão e que o Twitter fique impossível de ser usado, não acho que ele vá perder o lugar que tem para outra dessas plataformas. Acho que vai continuar ocupando esse espaço, mas dúvida que fica é: será que o Elon Musk vai ser capaz de inovar no Twitter? Trazer alguma coisa nova nesse lugar que ninguém traz novidade já há tanto tempo? Vamos ter que esperar para saber a resposta. Acho que o Koo, o Mastodon estão tentando fazer a mesma coisa que o Twitter faz. Mas já existe o Twitter, então é muito difícil. Pra dar certo, teriam que fazer algo como o TikTok fez, criar uma coisa nova, um espaço novo que vai atrair um outro tipo de gente capaz de fazer conteúdo que atraia todo mundo. Esse eu acho que é o desafio.

  • G |Isso mostra a importância dos usuários em uma rede?

    RL |

    Sim, mas é o usuário, o algoritmo e o efeito de rede. O TikTok se deu tão bem porque inventou uma linguagem nova. Você tentar fazer no Tik Tok o que faz no Instagram ou no Twitter não funciona, tem que jogar um jogo diferente. E ao fazer isso, o TikTok deu oportunidade para um outro grupo de pessoas. E esse grupo, que não necessariamente já funcionava em outras mídias, produz conteúdo que é muito interessante do ponto de vista de captura da atenção. É um conteúdo divertido, impactante. Em níveis subconscientes e profundos o TikTok tem relação com ansiedade e temas que são relacionados à saúde mental. Até já escrevi um artigo em que eu o chamo de “a rede social da ansiedade”. Esse é um dos elementos centrais da comunicação dentro do TikTok. Na superfície parece ser dancinha e outras coisas, mas é você assistir um vídeo e ficar ansioso, seja com você mesmo, com a sua vida, pelo próximo vídeo ou para fazer alguma coisa. O TikTok tem a capacidade de mexer não só com as nossas preferências conscientes mas também as inconscientes. Ele inventou uma outra parada, um outro jogo, que junto com o algoritmo conseguiu criar uma massa crítica, especialmente na pandemia, e se tornou uma rede que não dá para ignorar mais.

  • G |Você diz que há muito tempo essas redes sociais não inovam. Como é que a gente pode inovar a partir do uso de dados?

    RL |

    Eu defendo que o Brasil tenha uma política nacional de dados. Somos um país em desenvolvimento, um país pobre, que não tem a abundância de capital que existe nos Estados Unidos, e para inovar você precisa de muito capital. E a gente não tem nem saneamento básico para todos… Mas na minha visão, dados são tão importantes quanto capital para promover processos de inovação. Se criarmos uma política nacional de dados em que a gente enxerga inclusive os dados públicos em parcerias com setor privado e com a comunidade científica e acadêmica, temos como desencadear processos de inovação importantes aqui no país. O desafio que a gente tem no Brasil é participar cada vez mais da economia do conhecimento. Nenhum país se desenvolve hoje se não viver das suas ideias, porque viver da natureza a gente sabe o custo que isso tem. Tem limites, gera aquecimento global, uma série de problemas. São recursos muitas vezes finitos ou que geram uma destruição ambiental muito grande, então você tem que migrar para uma vida econômica baseada nas ideias, tem que viver do que tem dentro da nossa cabeça. Nesse sentido, eu acho que os dados podem ser uma ponte para gente ir nesse caminho, para não viver como tem feito essencialmente nos últimos anos, da natureza.

  • G |Em quais frentes a gente poderia usar esses dados coletados?

    RL |

    O Brasil tem a nota fiscal eletrônica. É um negócio até inacreditável, quando você pensa que o mais difícil já foi feito, que é criar o sistema. Hoje você tem um sistema que tem as compras e vendas de basicamente todas as empresas do país em tempo real. Se você pegar os dados da nota fiscal eletrônica e analisá-los com inteligência você consegue fazer coisas extraordinárias. Detectar competitividades locais, por exemplo: um município que tá conseguindo vender um determinado produto muito mais barato do que o restante do país, o que tá acontecendo ali? E mais do que isso, consegue medir oferta e demanda de forma muito clara, variações de preços entre regiões. Uma determinada região produz tal produto mais barato que o outro. É uma integração regional justamente para fazer isso, um jeito totalmente novo de medir a inflação, planejar a economia do ponto de vista macro e microeconômico de forma muito precisa. Então isso é uma revolução, nenhum país tem. Esse é só um exemplo, tem inúmeros outros. Esse tipo de coisa colocaria o país num outro patamar, com outro tipo de visão e com capacidade de pensar inclusive no planejamento de políticas públicas com base na realidade em tempo real.

  • G |O Marco Civil da Internet, do qual você fez parte, completa 10 anos em 2024. Pensando nos tempos de hoje, tem algo que precisa ser alterado, adaptado, revisto?

    RL |

    O Marco Civil continua sendo um símbolo do momento em que o Brasil tinha protagonismo, inclusive do ponto de vista internacional, como um líder nesse processo de governança da internet. É fácil esquecer disso, mas entre 1995, quando surgiram os primeiros provedores de internet privados no Brasil, quando foi criado o Comitê Gestor da Internet, o Brasil era uma grande liderança na ideia de governança da internet do ponto de vista global. O mundo esperava o Brasil se manifestar, as nossas decisões aqui repercutiram em tudo quanto é lugar. A gente tem um Marco Civil como um símbolo disso tudo, foi um processo de construção coletiva, uma lei que foi desenhada por meio de uma consulta pública na internet, e é muito bem sucedido esse processo, tanto que ele é referência até hoje. Não acho que o Marco Civil precise ser mexido. Acho que envelheceu bem, é uma lei que ainda tem pontos que são chave. O que a gente tem que ponderar é o que é preciso ou não para além do Marco Civil, temos que pensar a partir dali o que mais tem que ser feito.

  • G |E o que tem que ser feito no futuro?

    RL |

    Essa é a grande questão. Tenho dito que estou cansado de ver o Brasil com uma agenda apenas reativa. A gente só reage, identificamos o problema das fake news, então vamos combater fake news. A Inteligência Artificial pode gerar discriminações, então vamos fazer uma lei para impedir. Mas a gente precisa pensar o que queremos de propositivo, o que a gente quer da tecnologia? A agenda só reativa não funciona, ainda que ela seja importante. Nenhum país vai se desenvolver regulando e só reagindo aos problemas. O que vai gerar desenvolvimento é permitir que o Brasil seja inovador, que a gente participe da economia do conhecimento, e para isso temos que estabelecer prioridades. Elas tem que ser poucas, mas tem que ser estabelecidas. A gente precisa de uma agenda positiva, não de uma agenda negativa. As que eu considero importantes são pelo menos duas: a criação de um plano nacional de dados e de uma identidade digital nacional gratuita para revolucionar o setor público.

  • G |Poderia falar um pouco dessa identidade digital?

    RL |

    É você superar o fato de que o sistema de identidade do Brasil faliu. Ele não funciona mais. Todos os dados de todos os brasileiros e brasileiras vazaram na deep web, hoje qualquer bandido no Telegram consegue descobrir o seu nome, seu RG ou seu CPF, o seu endereço, o nome do seu pai, o nome da sua mãe, o endereço deles, o número do seu celular. Presente e passado, todos os números que você já teve, todos os endereços que você já viveu, se você tem participação societária, se é dono de automóvel, de imóvel. Com esses dados você faz qualquer coisa. É só ver os golpes de Whatsapp. Acontece todos os dias. O sistema brasileiro faliu. É uma particularidade brasileira essencialmente por causa desses vazamentos de dados que a gente teve. É preciso mudar isso e eu defendo reformar o sistema criando uma identidade digital brasileira, autêntica e gratuita para todo mundo.

  • G |Pra finalizar, um tema que tem tudo a ver com o futuro da internet. Você consegue visualizar o metaverso como uma realidade próxima ou ainda distante?

    RL |

    O metaverso não é um espaço, ele não é um lugar. É um tempo em que aquilo que está acontecendo no mundo digital é mais importante do que o que tá acontecendo na sua realidade. Hoje, essa ideia desse tempo já se materializa em vários momentos, como quando você tá numa mídia social e o que tá acontecendo ali é muito mais importante do que qualquer outro lugar. A luta pelo metaverso é para aumentar esse tempo, que você permaneça nesse estado em que o digital é mais importante que o real por mais tempo do que a gente já fica hoje. As estratégias são muitas, desde criar esses ambientes virtuais quando você vai estudar, fazer reunião e outras coisas, até o airpod da Apple que você vai colocar no seu ouvido e assim por diante. Essa busca pelo metaverso vai continuar. Mas ele vai ser muito diferente do que as pessoas acham. Não vai depender de um óculos de realidade virtual, de uma plataforma nova, vai ser gradualmente incorporado nas nossas vidas. Quem tá mais no metaverso hoje são as crianças. Elas crescem com mídias digitais, estão totalmente incorporadas ao metaverso. Plataformas como o Roblox e outras mostram um pouco desse potencial. Pergunta para qualquer criança que está no Roblox as coisas que estão acontecendo ali, muitas vezes são muito mais importantes do que acontece na escola, com a família ou coisas do tipo. Essa geração mais nova, que hoje está entre 5 e 6 anos, já vai ter crescido com habilidades de metaverso mais desenvolvidas do que as nossas. Mas é um caminho, não vai mudar a gente, millennials e anteriores. Para quem está crescendo com esse tempo do metaverso sendo muito presente e frequente, já vai estar muito mais habituado e não vai nem pensar nisso. Nem na palavra metaverso, inclusive.