Estamos preparados para o fim do Twitter?
Se a rede não sobreviver à caótica gestão Elon Musk, qual será seu legado? Será que alternativas como o Koo estão prontas para substitui-la?
Considerada uma rede comprometida com o combate à desinformação, o Twitter anunciou em novembro que vai deixar de moderar posts com informações falsas sobre a covid-19. A mudança vem sendo alvo de críticas em meio à alta de casos em várias partes do mundo, incluindo o Brasil, e integra as medidas adotadas pela rede social desde que o multibilionário Elon Musk assumiu a rede.
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Concluída em outubro, a compra do Twitter pelo homem mais rico do mundo vem empilhando controvérsias ao longo dos últimos meses. Desde demissões em massa de executivos e funcionários com longo tempo de casa até o fiasco do Twitter Blue e uma proliferação de contas fake verificadas, são várias as polêmicas num curto período de tempo. O novo CEO também tem encontrado dificuldades para lidar com a equipe que restou, ainda mais com o estilo explorador e autoritário de liderança que tem adotado. Com tudo isso, a ideia de que o Twitter está prestes a acabar se alastrou pela rede, com o próprio bilionário entrando na onda e postando a irônica imagem de um túmulo em seu perfil pessoal.
Embora seja impossível prever o futuro, dá para dizer que o fim do Twitter, uma das redes mais populares desde o boom das mídias sociais, seria um golpe duro para milhões de usuários no mundo. Em comparação com suas irmãs despojadas e baseadas na produção de conteúdo em fotos e vídeos, a exemplo do TiktTok e Instagram, o Twitter tem um perfil mais sisudo que favorece o debate, ainda que com falas curtas e ágeis. Não à toa, presidentes e figuras públicas das mais variadas esferas escolheram a rede para dialogar com seguidores e fazer comunicados oficiais.
“Não tem outra rede que faça esse papel hoje”, diz Nina Santos, que pesquisa a disseminação de informações em plataformas digitais no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital. Para Santos, como ainda há poucas mudanças práticas no dia a dia da rede, o que reina é uma atmosfera de receio. Tanto que tem muita gente entrando na onda de redes alternativas como a indiana Koo, popularizada numa avalanche de memes, e a Mastodon. Hoje a pesquisadora já percebe o impacto da era Musk até em seu trabalho. Ela conta que perdeu o contato com a equipe da rede no Brasil, até porque boa parte dos funcionários no país foi embora na leva de demissões promovida pelo empresário.
“Já existem especulações sobre a demissão de pessoas do time de moderação de violência política também em outros países, além da retirada de equipes do sul global, de países africanos à América Latina. É um cenário bastante preocupante”, sentencia. Na opinião da especialista, podemos esperar para breve mudanças na maneira de usar o Twitter e no próprio público do site, em especial no caso de as alterações impactarem a qualidade das informações e do debate.
Liberdade de (ex)pressão
Criado em 2006 por um grupo de empreendedores e desenvolvedores norte-americanos, o Twitter se popularizou no mundo em poucos anos. Em 2017, a rede ampliou seu tradicional limite de 140 para 280 caracteres por post, aumentando as possibilidades de comunicação e diálogo entre os usuários. A pesquisadora de comunicação digital da USP Issaaf Karhawi lembra que o Twitter nunca chegou a ser a rede social de maior popularidade nem no Brasil nem no mundo, perdendo facilmente para concorrentes como Facebook, Instagram e TikTok.
No entanto, ele tem características particulares que o diferenciam da concorrência. Uma delas, diz Karhawi, é “ser um sofá estendido”, em que os usuários utilizam a timeline como uma segunda tela em relação à televisão, comentando programas desde o BBB até séries de sucesso. Outra é que, na comparação com as demais mídias sociais, há um espaço de diálogo que vai além da sua comunidade, permitindo acompanhar o que pessoas das mais diferentes vertentes pensam sobre notícias e assuntos atuais. Dentro do Twitter, “não é uma imagem, mas sim a conversa que conduz a comunidade”, aponta a pesquisadora.
O monopólio das big techs é tão intenso que é difícil pensar que vamos nos sentir órfãos de uma rede
Por ter forte ligação com a extrema direita global e tradição de postar fake news, a chegada de Elon Musk gerou temor nos usuários sobre o futuro da comunicação dentro da plataforma. Uma das primeiras ações do bilionário foi reintegrar a conta do ex-presidente Donald Trump, que havia sido banida da rede por incitar a violência no ataque ao Capitólio, em janeiro de 2021. Ele era então um dos usuários mais seguidos e influentes da rede.
Para Karhawi, a compra do Twitter por Musk vem na esteira de uma percepção da liberdade de expressão que beira o discurso de ódio e a disseminação de desinformação. “A reação dos usuários foi pensar no que a plataforma ia se tornar com o comando de uma pessoa que entende liberdade de expressão de forma muito enviesada”, afirma a pesquisadora.
Adpocalypse
Já imaginou ver de lados opostos de um ringue o poderoso Twitter e a gigante da tecnologia Apple? É mais ou menos o que vem acontecendo em meio ao rápido desgaste da relação entre as duas empresas, que eram parceiras até pouco tempo atrás. Além de deixar de anunciar na rede social, a criadora do iPhone estaria ameaçando retirar o Twitter de sua loja de aplicativos. “[Vocês] odeiam a liberdade de expressão nos Estados Unidos?”, questionou Musk numa série de posts direcionada ao CEO da Apple, Tim Cook.
Segundo Karhawi, além dos próprios usuários, são o mercado e as empresas que influenciam os rumos de qualquer plataforma online. “As marcas sempre vão esperar um espaço seguro. Investir dinheiro ali tem que trazer resultados positivos”, afirma.
Foi mais ou menos o que aconteceu com o YouTube em 2017, como lembra a pesquisadora. Quando perceberam que seus anúncios vinham sendo veiculados em vídeos com discurso de ódio e conteúdo preconceituoso, muitas empresas começaram a boicotar o site, que precisou criar uma estratégia para mapear com mais eficiência vídeos adequados para incluir anúncios.
Embora ainda não tenha chegado ao mesmo patamar do que aconteceu com a rede de transmissão de vídeos, cujo evento ficou conhecido como “Adpocalypse” (algo como apocalipse publicitário), empresas gigantes como a GM e a Heineken já deram uma pausa nos anúncios na rede, que talvez se torne permanente. “Os caminhos do Twitter vão esbarrar nos interesses das marcas, e isso já está no horizonte dessa nova gestão”, diz a pesquisadora.
Rei morto…
Mas, caso se confirmem os prognósticos dos mais pessimistas, o que muda no ecossistema das redes sociais? Haverá algum dano permanente para a experiência online? Na opinião do professor de comunicação e história da Universidade Estadual de Londrina, André Azevedo, mesmo que desapareça da internet, o Twitter não deve deixar grandes saudades ou gerar órfãos de seus serviços. “Sobre a destruição das redes como o próprio Twitter, acho inclusive que seria ótimo, porque nos levaria a buscar alternativas, o que é muito salutar”, afirma.
Para o professor, que vem desenvolvendo um livro sobre o assunto, as empresas têm aprisionado a humanidade na lógica das redes sociais ao nos vender a ideia de que elas são produtos que melhoram o mundo. “Ficamos reféns de um deslumbramento meramente publicitário e não conseguimos ainda nos desvencilhar disso.” É o que acontece, segundo ele, com coisas como o metaverso, que seria uma nova tentativa de nos induzir a “uma era de consumo dentro de uma outra plataforma que também não é necessária”.
A única grande perda no caso de um fracasso total do Twitter seria a destruição de um acervo de fotos e textos
A única grande perda no caso de um fracasso total do Twitter, ele diz, seria do ponto de vista histórico: a destruição de um acervo de fotos e textos que nos ajudaria no futuro a compreender o momento atual. “Iniciativas como um arquivo da internet são importantes para não perdermos esses dados, como tem acontecido nos últimos 20 anos com redes como o Orkut.”
Karhawi admite que o Twitter oferece mais espaços afastados das bolhas do que ocorre em outras redes sociais. O principal está nos trending topics, onde é possível encontrar uma gama de diferentes posicionamentos sobre um mesmo assunto. Mas a pesquisadora considera que esse contato não é distante o suficiente para distinguir a rede tanto assim. “O monopólio das big techs é tão intenso que é difícil pensar que vamos nos sentir órfãos de uma rede, porque vivemos um aprisionamento dentro de outras.”
A pesquisadora indica ainda que há um interesse coletivo na formação dessas bolhas que, geradas por algoritmos, evitam conflitos e deixam os usuários mais confortáveis, um ganho importante para todas as plataformas, o que também inclui o Twitter. Além disso, ela lembra que a rede é tradicionalmente tomada por bots, que inflam determinados assuntos e com frequência criam tendências falsas entre seus usuários, um problema longe de ser resolvido.
Rei posto
Para o jornalista e comunicólogo Rodrigo Ghedin, criador do site Manual do Usuário, é difícil vislumbrar que alguma rede hoje tenha capacidade para substituir o que o Twitter faz. A indiana Koo, que surgiu como um meme, angariou milhões de usuários em pouco tempo, mas já vem perdendo popularidade. E a Mastodon, de código aberto e que tem sido uma opção para internautas fora do Brasil, apresenta uma série de dificuldades extras na comparação com a rede do pássaro azul, na avaliação de Ghedin.
“Mas elas abrem um flanco interessante, com outras propostas para investir. Se o ritmo de degradação do Twitter se mantiver como no primeiro mês, as pessoas podem buscar opções como essas”, afirma o jornalista.
Ghedin aponta que hoje já existe uma espécie de fadiga com as redes abertas, que também atinge o Twitter. Até por isso, muita gente estaria se comunicando quase exclusivamente por meio de chats privados dentro do Instagram ou Facebook, além do próprio Whatsapp. Segundo Karhawi, as plataformas já estão alertas a esse movimento, assim como a uma possível queda do Twitter, e podem aproveitar para acabar tomando elas mesmas o lugar da falecida. “A descaracterização do Twitter é uma vantagem competitiva para outras redes, que podem integrar características dele dentro de seus espaços.”
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