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ReportagemAs consequências de não valorizar a carreira científica
Fuga de cérebros, desigualdade social, baixo desenvolvimento econômico e enfraquecimento da soberania nacional são alguns dos efeitos para o país da desvalorização da ciência
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As consequências de não valorizar a carreira científica
Fuga de cérebros, desigualdade social, baixo desenvolvimento econômico e enfraquecimento da soberania nacional são alguns dos efeitos para o país da desvalorização da ciência
A carreira científica não é valorizada no Brasil como deveria, sofrendo há anos com cortes de recursos, baixo investimento e quedas contínuas no número de bolsas para pesquisas e para a formação docente, situação que gera consequências negativas profundas em diversos aspectos e em variadas áreas. Valorizar a ciência e os profissionais que trabalham no setor contribui tanto para o avanço acadêmico quanto para o progresso social e econômico.
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Esse reconhecimento traz inúmeros pontos positivos: inovação, permitindo que o país desenvolva novas tecnologias, produtos e serviços, o que aumenta a competitividade no mercado global; cria empregos de alta qualificação; proporciona o desenvolvimento de tratamentos médicos, vacinas e estratégias de saúde pública; melhora a qualidade do ensino superior, preparando uma força de trabalho qualificada, versátil e adaptável; nos torna menos dependentes de soluções estrangeiras, fortalecendo a soberania nacional; ajuda na elaboração de soluções para questões urgentes como mudanças climáticas, conservação de recursos naturais e energia renovável; e propõe soluções para problemas sociais.
O contrário dessa lista, portanto, é uma série de efeitos colaterais que prejudica não só quem vive disso, ou seja, professores, cientistas e pesquisadores, mas toda a sociedade, de geração em geração, que seria beneficiada por todo esse trabalho.
A partir da observação desse cenário, Gama perguntou a especialistas quais são os principais resultados de décadas de desvalorização das atividades científicas. Confira.
Competitividade e inovação
“Quando pensamos em competitividade internacional, a ciência é fundamental”, diz o infectologista, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Julio Croda. Ele lembra ainda que a falta de investimentos nessa área compromete o futuro e deixa o país menos competitivo.
“As grandes transformações vêm das inovações que estão atreladas à ciência. A inovação, por si só, está intrinsecamente ligada à ciência”, diz. Sem ciência também não há geração de recursos, de renda nem de dividendos, que garantem, sobretudo, a diminuição das desigualdades socioeconômicas existentes.
O Brasil continua sendo muito atrelado ao agronegócio, que não para de crescer, segundo ele, justamente por ser um campo em que conseguimos inovar com constância. “A Embrapa é um grande modelo de inovação e de desenvolvimento de novas tecnologias que produzem uma agricultura forte, tornando o país competitivo, gerando receitas e recursos para serem investidos, por meio de impostos, em educação e em programas sociais para diminuir a desigualdade de renda e o suporte social”, afirma.
As grandes transformações vêm das inovações atreladas à ciência
Mas isso não acontece em áreas críticas, como a saúde, que ainda sofre com um déficit significativo devido à importação de 90% da matéria-prima para a produção de medicamentos e vacinas — os chamados ingredientes farmacêuticos ativos (IFAs) vêm principalmente da China e da Índia.
O pesquisador da Fiocruz, no entanto, não deposita a responsabilidade por essa conjuntura apenas no governo. Para Croda, a iniciativa privada — criando departamentos fortes de inovação, e a sociedade em geral –assumindo o papel de cobrar dos gestores maior apoio à carreira científica — também precisam fazer parte da discussão para que mudanças comecem a ocorrer.
“As nossas empresas de farma, de medicamentos e vacinas, não têm produtos inovadores, não têm setores de inovação. Elas só fazem transferência de tecnologia. Ou seja, a gente importa, por exemplo, muito princípio ativo e só coloca dentro do comprimido. A indústria farmacêutica do Brasil não produz nem um pó de princípio ativo de diversos medicamentos, inclusive dos genéricos. Tudo vem de fora”, analisa.
O setor privado tem que ter parte da responsabilidade no desenvolvimento científico do país, até para a sua própria sobrevivência
A imunologista, pesquisadora e professora titular da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), que liderou as pesquisas do sequenciamento do genoma do novo coronavírus no país, Ester Sabino, tem a mesma visão. “Se a gente for só copiar e pegar dos outros, o que vai acontecer, mais cedo ou mais tarde, é que as indústrias locais vão ser compradas. E sem produção local, ficamos sem autossuficiência na definição de melhorias da própria capacidade de produção. O setor privado tem que ter parte da responsabilidade no desenvolvimento científico do país, até para a sua própria sobrevivência.”
Julio Croda reforça a necessidade de uma transformação “bastante radical”, que passa por mudança de mentalidade e por incentivo estatal, como a desoneração de ramos prioritários, com vantagens financeiras que viabilizem o investimento em inovação, e a desburocratização. Nada disso, de acordo com Croda, deve afetar as universidades federais e as instituições públicas de pesquisa, que têm o seu espaço, continuarão a existir e que, da mesma forma, precisam de investimentos.
Conforme explica o infectologista, para algumas áreas do setor privado não há retorno financeiro competitivo e, nesses casos, a inovação deve ser mantida na esfera pública. “Porque é estratégico para o país, para enfrentar novas pandemias e para ter autonomia.” O desenvolvimento das vacinas de Covid-19 está nesse rol. “Foi um exemplo claro, caso a gente não tivesse essa capacidade”, cita.
Educação, valorização docente, infraestrutura
Ester Sabino ressalta ainda o impacto da falta de valorização da ciência na educação e no desenvolvimento sustentável do país. A professora da FMUSP diz que ciência e qualidade educacional universitária caminham juntas. “As melhores universidades têm pesquisa que, por sua vez, é necessária para manter o tônus da universidade.”
Além disso, ela destaca que o desenvolvimento de novas tecnologias depende de um grupo de cientistas. “Senão, você só recebe conhecimentos de fora, não cria conhecimento. Aprender a treinar pessoas a criar conhecimento é muito importante”, pondera.
Valorizar a carreira científica também auxilia governos na avaliação e na implementação de políticas públicas eficazes para a população. “Sem pessoas pensando ou criando, não é possível avaliar técnica e cientificamente se as políticas são boas ou não. Isso depende se estamos ou não formando as pessoas. Se não temos gente para fazer isso, acabamos tendo políticas pouco efetivas”, enfatiza Sabino.
Ao tratar da educação superior, outros assuntos cruciais sempre reverberam: os baixos salários de docentes, a pouca oferta de bolsas para pesquisas, também mal-remuneradas, e falta de condições mínimas para desenvolver um estudo.
“O salário inicial de um docente é muito baixo e as perspectivas de crescimento são poucas. Já o salário final de um professor titular, por exemplo, é muito inferior ao que há no mercado [privado] e até no exterior”, reflete Marcelo Knobel, físico, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin, da Unicamp, e colunista da Gama.
Sobre a questão salarial, Marcus Oliveira, professor associado do Instituto de Bioquímica Médica (IBqM) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), exemplifica: “Vivo uma realidade que é a da inflação acumulada dos últimos oito anos. Eu não tive uma recomposição. Então, existe esse lado, que é uma parte do reconhecimento que o governo ou os governos deveriam dar.”
Knobel sublinha que a falta de reconhecimento da carreira na pesquisa, como uma trajetória profissional promissora para uma vida minimamente tranquila, que permita certa estabilidade, desestimula os jovens a escolherem carreiras científicas. “Ninguém está falando de enriquecer”, declara.
“Estou falando de várias áreas, do direito, da medicina, da computação. As empresas hoje pagam mais do que qualquer universidade [pública ou privada] consegue pagar. Com isso, há, naturalmente, um desestímulo das pessoas seguirem na pesquisa, o que é preocupante, porque é por meio da ciência que a gente acredita que teremos um futuro mais sustentável, menos desigual e mais promissor”, aponta.
É por meio da ciência que a gente acredita que teremos um futuro mais sustentável, menos desigual e mais promissor
Os problemas estruturais nas universidades e nos laboratórios também impactam negativamente o trabalho científico, como relata o professor Marcus Oliveira, citando o caso da UFRJ que, como diversas universidades federais do país, enfrenta problemas graves de infraestrutura.
“Não é algo que tenha começado nesta administração, já vem de algum tempo. Os prédios estão bastante comprometidos. A reitoria está tentando angariar recursos do governo federal e de outras fontes para tentar reverter o quadro. Recentemente, o nosso reitor [Roberto de Andrade Medronho] fez um levantamento do investimento necessário para recompor a infraestrutura, valor que chegou próximo de R$ 700 milhões. Obviamente, vai ser muito difícil para a UFRJ reverter esses problemas”, considera Oliveira.
A fuga de cérebros
Uma das consequências mais comuns da desvalorização do trabalho científico é a chamada fuga de cérebros, conceito que se refere à ida de profissionais altamente qualificados ao exterior, em busca de melhores condições salariais e também para suas pesquisas.
“Muita gente está tendo oportunidades fora do país, tem uma fuga de cérebros daqui. Há a chance de atuar no exterior ou mesmo em áreas mais concorridas no mercado privado”, observa o físico Marcelo Knobel.
Ester Sabino, da FMUSP, acredita que a ciência brasileira acaba perdendo uma porção de talentos que não pensam duas vezes em fazer outra coisa ou sair do Brasil. “São tantos empecilhos que o número de cientistas vai diminuindo. E, lógico, os salários são menores do que pessoas com a mesma capacidade e que estão em outros ramos. Além da capacidade de conseguir renovar projetos grandes, o que é menor. Então, é sempre desgastante.”
O professor da UFRJ Marcus Oliveira faz uma lista de alunos que estão na Itália, nos EUA e na Áustria. São pessoas que concluíram o doutorado no Brasil e foram tentar a vida no exterior à procura de possibilidades mais atraentes. “As oportunidades que surgem lá fora são muito mais atrativas. Mesmo sendo competitivas, são mais atrativas do que aqui no país. O destino é esse.”
Oliveira considera que enquanto o Brasil não tiver um projeto estatal voltado à ciência e à tecnologia, a fuga de cérebros vai continuar acontecendo aos montes. “Tem que ser um programa de Estado, não de governo, que atravesse as administrações e que seja financiado de forma robusta e intocável. Por exemplo, poderíamos definir um percentual fixo do PIB do país para investimento em ciência e tecnologia. E que isso não seja possível de ser modificado por governos”, pensa.
Acho uma lástima, porque é o tempo, são recursos e é a energia de milhares de pessoas sendo voltadas para o desenvolvimento da ciência fora daqui
Segundo ele, enquanto isso não acontecer e for obedecido, e enquanto não houver uma política robusta de Estado para a ciência e a tecnologia, o Brasil vai formar os cientistas desde a base, na graduação, até a pós-graduação e o pós-doutorado, para entregar aos países do norte global uma mão de obra qualificada que levou décadas para se formar.
“Eu acho uma lástima, porque é o tempo, são recursos e é a energia de milhares de pessoas sendo voltadas não para o desenvolvimento do nosso país, mas para o desenvolvimento da ciência no mundo fora daqui”, conclui Oliveira.
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CAPA Qual o futuro da ciência?
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1Reportagem O Brasil valoriza seus cientistas?
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