O que os jovens pensam sobre propósito no trabalho? — Gama Revista
Qual é o seu propósito?
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Boris SV / Getty Images

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Reportagem

Faz sentido relacionar trabalho e propósito?

Do boom neoliberal à crise pandêmica, jovens repensam ideia de realização profissional e o papel do emprego em suas vidas

Ana Mosquera 24 de Outubro de 2021

Faz sentido relacionar trabalho e propósito?

Ana Mosquera 24 de Outubro de 2021
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Do boom neoliberal à crise pandêmica, jovens repensam ideia de realização profissional e o papel do emprego em suas vidas

“Propósito tem a ver com sentido, é ver um sentido naquilo que você está fazendo”, diz a jornalista, pesquisadora e artista Vanessa Cancian, de 30 anos, que vive em Ubatuba, litoral de São Paulo. Foi em meados da década de 1980, exatamente quando ela e outros integrantes da chamada geração Y nasceram, que a expressão “propósito no trabalho” começou a ganhar a boca do povo, ou ao menos parte dele.

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“O conceito nasce com a modernidade, no século 18, mas é só no final do 20 e início do 21, com o discurso do capitalismo neoliberal, que ele vai tomar um sentido mais agressivo, de que cabe ao indivíduo realizar todos seus desejos, ímpetos e vontades, o que culmina no que a gente tem hoje como o discurso do empreendedor”, introduz Túlio Custódio, sociólogo e curador de conhecimento na consultoria Inesplorato. Segundo ele, é no contexto da lógica da individualização que despontam as pautas ligadas ao “eu”, e que as lutas e bandeiras pessoais (que também são coletivas) passam a integrar o discurso do propósito no trabalho. A partir daí, os tempos de trabalho, de lazer e de descanso cada vez mais se fundem e se confundem, fazendo com que aos jovens contemporâneos não reste alternativa senão conciliar essas esferas.

Se não colocamos o propósito no trabalho, quando trabalhamos oito horas por dia ou até mais, passamos muito tempo sem um objetivo

“Se não colocamos o propósito de vida no nosso trabalho, quando trabalhamos uma média de seis a oito horas por dia ou até mais, passamos muito tempo sem um objetivo”, comenta Cancian, que, além de arcar com os ossos do ofício que paga as contas da família, e ser mãe de dois, mestranda e aprendiz de surfista, também integra uma banda formada por mulheres.

A jornalista, pesquisadora e artista Vanessa Cancian, que vive em Ubatuba, litoral de São Paulo  Divulgação / Congresso Brasileiro Agroecologia

Tendo seu auge na cultura millennial (ligada à geração Y), há quem diga que a época áurea do discurso do propósito no trabalho esteja mesmo em decadência. Com a crise econômica mundial de 2008 e, mais atualmente, devido aos problemas agravados pela pandemia do coronavírus, o deslumbramento vem sendo ofuscado, e as pessoas parecem estar tratando a relação entre propósito e trabalho de forma cada vez menos romantizada. “A gente está começando a olhar para o lado mais sombrio de tudo isso. O home office parecia esse sonho incrível, mas no fim não é. É um privilégio trabalhar em casa, mas mudou muita coisa, as condições de trabalho, a capacidade mental e emocional, o senso de comunidade”, comenta o psicanalista e pesquisador de cultura e comportamento Lucas Liedke.

Só funciona para alguns

Leonora Lubie, ‘anarco-confeiteira’ na Lubie Bakery, em São Paulo  Foto Letícia Lima

No caso de Leonora Lubie, que tem 36 anos e se autodenomina uma anarco-confeiteira na Lubie Bakery, em São Paulo, foi exatamente a possibilidade de ficar em casa durante o isolamento que desencadeou a tomada de decisões há tempos almejadas para si e seu negócio. “Foi esse movimento que me fez dizer: agora quero continuar com uma coisa que faça sentido pra mim. Passei a falar mais sobre minha ética e política, e comecei a mudar aos poucos os produtos que estava fazendo.” Além de não utilizar aplicativos e trabalhar apenas com encomendas, há pouco começou a fazer o próprio leite condensado. Ela reconhece, entretanto, que alinhar o ganha-pão aos ideais de vida não faz parte da regra. “Isso diz respeito a pouquíssimas pessoas. É um luxo, um lifestyle. Às vezes eu olho e acho que tem uma grande miopia em ficar pensando muito. Não vai ser tendo uma vida legal para mim que vou fazer com que as outras pessoas tenham. Mas foi difícil entender que tem um motivo para as pessoas não trabalharem com propósito: pagar as contas”, diz.

Foi difícil entender que tem um motivo para as pessoas não trabalharem com propósito: pagar as contas

Liedke concorda que existe um bom nível de alienação, ilusão e desconexão com a realidade na evocação do tal discurso. “Para algumas pessoas, a gente pode pensar no trabalho mais ligado ao prazer, mas para a grande maioria, a gente está falando de um nível bem difícil de sobrevivência, um jogo selvagem do capitalismo”, ele diz, recaindo, assim, na raiz do trabalho abstrato, como confirma Custódio: “Esses discursos vão só até a primeira página, porque na segunda tem a realização do trabalho em si, que existe para geração de valor e de lucro para outrem”.

Há situações, entretanto, de discursos que não preenchem sequer uma linha, de tão dispensáveis que são os cargos. Curioso, o conceito de “bullshit jobs” (na tradução, “trabalhos cretinos”), como bem lembra Custódio, foi criado pelo antropólogo e anarquista norte-americano, David Graeber (um dos idealizadores do Movimento Occupy), em 2018, e se refere a uma categoria de funções completamente esvaziadas de propósito – sob o consenso dos empregados. Entre os trabalhos (nem sempre precarizados), estão tarefas ínfimas ou aquelas em que o material humano seria facilmente substituível por máquinas. O motivo da existência desses cargos já é outro assunto.

Os jovens e o mercado de trabalho

Em ensaio publicado no New York Times, o escritor Jonathan Malesic afirma: é preciso trabalhar menos, criar mais tempo de lazer, rever a centralidade do trabalho e aprender a encaixá-lo em uma boa vida – e não o contrário. “Seu trabalho, ou a falta de um, não define seu valor humano”, diz Malesic, em tradução livre. “Sou mais do que a minha função, sabe?”, fala Nadine Quandt, de 20 anos, assistente de comunicação interna e estudante de jornalismo, de Joinville (SC). Pertencente à faixa etária conhecida como geração Z — dos nascidos, em média, entre a segunda metade dos anos 1990 até o início do ano 2010, logo após a Y, de 1982, os millennials –, a futura jornalista conta que enxerga o trabalho não como o fim, mas como um caminho para a realização pessoal. “Mas lógico que trabalhar com algo que se gosta torna isso mais fácil”, pontua, lembrando que, um dia, sonha em se dedicar à produção de conteúdo para videogames.

Não dissocio meu trabalho da minha vida pessoal, tanto em termos de conduta, quanto de propósito

“Apesar de o destino ter me jogado para um caminho que eu não esperava, eu tive essa oportunidade de escolha”, conta Maria Luiza Rocha, de 22 anos, estudante de Letras na USP e sócia da Escola Sorvete, em São Paulo (SP). Foi com o pensamento sobrevoando os livros que Malu, como é chamada, aterrissou na empresa, ainda com 16 anos. Hoje apaixonada por gastronomia, considera o trabalho uma extensão de si. “Eu não dissocio meu trabalho da minha vida pessoal, tanto em termos de conduta, quanto de propósito. Sempre quis ser uma pessoa que tivesse um impacto positivo no mundo e na vida de outras pessoas”, conta. Desde 2019, a escola possui um projeto em Heliópolis – a ÔSH (Oficina do Sorvete de Heliópolis), em parceria com a ONG UNAS –, que capacita moradores a fabricar e vender sorvetes 100% naturais.

Maria Luiza Rocha, estudante de Letras na USP e sócia da Escola Sorvete, em São Paulo  Foto Gabriel Reis

“A gente percebe uma preocupação muito grande com esses valores sociais desde as primeiras conversas com a geração Z”, conta Beatriz Almeida, diretora de marketing e sócia fundadora da Gummy Conteúdo Digital, de Florianópolis (SC). Almeida reforça que, já no início do processo seletivo da sua empresa, essa parcela se interessa em conhecer as práticas e os valores da organização. “Para eles, a forma de identificar se a empresa tem coerência com o que buscam é as redes sociais, que são os canais que eles habitam”, complementa, lembrando que uma das pautas mais caras ao grupo é, sem dúvida, a diversidade.

Geração existe mesmo?

Criado em agências de publicidade norte-americanas, o conceito de gerações (Baby Boomer, X, Y e Z) vem sendo questionado nos últimos anos, uma vez que criar recortes etários muito definidos passou a ser visto como generalista e arbitrário, ocasionando, por exemplo, guerras culturais ou mesmo o excesso de cobrança com relação aos mais jovens, como abordou artigo recente de Louis Menand, na The New Yorker. “Isso obviamente tem consequências em relação às expectativas e ao propósito dessas pessoas, não só para a vida delas, quanto para o trabalho que executam”, aponta Custódio.

Cada pessoa é única dentro do seu contexto biológico, psíquico e social, e também do momento histórico

De acordo com a psicóloga organizacional, master coach e especialista em carreira e gestão humana, Bia Benassi, o propósito é uma questão humana e a diferença se dá nos estímulos recebidos por cada um. “A gente precisa entender que existem perfis diferentes ocupando o mesmo espaço e, quanto às gerações, o mais importante a considerar é que cada pessoa é única dentro do seu contexto biológico, psíquico e social, e também do momento histórico”, afirma. Um dos papéis do psicólogo organizacional é entender a individualidade dentro do ambiente corporativo e como esse comportamento vai se manifestar, tanto interna quanto externamente.

Para repensar a ideia de gerações no contexto de uma nação tão diversa e extensa quanto a brasileira, os aspectos cultural e territorial também são primordiais a serem considerados, como lembra Custódio. Ainda que com um pé atrás frente ao conceito importado, Cancian também acredita que é possível adequá-lo à realidade brasileira, se determinados marcadores forem considerados. “Eu vivencio com juventude, da minha geração, de comunidades quilombolas, que tem um choque geracional com as pessoas mais velhas e com as crianças que estão chegando. Eu acho que isso vai acontecer em vários modelos de civilização”, completa.

“O que está instituído em médio e longo prazo que ajuda a gente a entender a conformação dessas juventudes? Quais são as rotinizações? Talvez seja essa a pergunta que a gente tenha que responder”, termina Custódio.