Os impactos da inovação na vida das pessoas — Gama Revista
Inovar pra quê?
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© Fashion Revolution Brasil

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Repertório

Eles transformam a vida de pessoas

Especialistas de diferentes frentes explicam como é possível construir um mundo melhor, reduzindo as desigualdades e até salvando vidas em tempos de pandemia: inovando

Mariana Payno e Willian Vieira 10 de Maio de 2020

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Repertório

Eles transformam a vida de pessoas

© Fashion Revolution Brasil

Especialistas de diferentes frentes explicam como é possível construir um mundo melhor, reduzindo as desigualdades e até salvando vidas em tempos de pandemia: inovando

Mariana Payno e Willian Vieira 10 de Maio de 2020
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    Nina Silva

    Executiva de TI e CEO do Movimento Black Money
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    “Pra mim não existe tecnologia e inovação de verdade se não ajudar diretamente a vida das pessoas. No caso do coronavírus, o isolamento é físico, não social. Então o foco virou a sobrevivência. Nós do Movimento Black Money (voltado a estimular negócios de pessoas negras) lançamos a “Impactando Vidas Pretas”, campanha racializada para arrecadar fundos para garantir uma renda básica para famílias lideradas por mulheres e empreendedores afro. Arrecadamos R$ 60 mil de pessoas físicas, o que manterá 80 famílias por dois meses. Agora vamos buscar empresas privadas. Muita gente critica a falta de acessibilidade e organização nas favelas. Mas tenho visto nas comunidades que os próprios moradores têm inovado para sobreviver, com a formação de lideranças por perímetro para lutar contra o coronavírus. Há famílias sendo mapeadas, para saber quais mantimentos são necessários, onde há idosos, quem precisa do quê e não tem a ver com poder político, ou mesmo tráfico. É uma organização voltada à sobrevivência. Outro exemplo: como houve aumento da violência doméstica por causa do isolamento, a rede Justiça de Saia fez uma campanha para que as mulheres possam denunciar agressões sem sair de casa ou, no mínimo, chegar em segurança (física e de saúde) à delegacia, em parceria com a LadyDrive. Tem ainda os apps de telemedicina, que têm feito com que o atendimento básico, sobretudo na África, chegue à população afrodescendente. Como o Mobile Health International, que oferece primeiro atendimento gratuito. Assim, essas pessoas ficam menos expostas à contaminação. Ouvi falar ainda do AfroSaúde, na periferia de Salvador, que conecta profissionais de saúde negros com pacientes negros. A questão é que nós, pretos, temos mais dependência dos sistemas públicos de saúde e pior assistência quando precisamos. Quem está levando mercadorias de um ponto a outro da cidade? Quem está no caixa do mercado, no balcão da farmácia, na segurança dos prédios, na limpeza….? A população negra. Então nós tentamos sempre difundir informações. Nossa plataforma do tipo market place permite digitalizar os negócios de pessoas pretas. Afinal, 51% dos microempreendedores do país são negros. E eles focam em gastronomia, vestuário e estética, como o nosso hub de inovação faz. Não há custo algum além da comissão sobre a venda e eles podem dialogar diretamente com o público alvo. Tem mais inovação nesse sentido, tem comunidades com moedas próprias, como o banco Maré, que traz fluidez econômica para essa população (um terço dos empreendedores negros têm crédito negado sem explicação). Estamos mais unidos como sociedade do que na dita normalidade, e esse novo normal passa a ser um mundo mais conectado. Acho que vai haver um aumento da inclusão.”

  • 2

    Tasso Azevedo

    Engenheiro florestal e idealizador do projeto Mapbiomas
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    ©?Rainforest Alliance

    “Hoje não dá para falar em inovação responsável, em qualquer área, sem passar pela questão climática, porque ela é a nossa maior ameaça. O coronavírus é só uma demonstração do que pode acontecer em um planeta dois graus mais quente — vamos sair mais fortes dessa crise para enfrentar outras parecidas. E o conceito comum de quem inova com consideração à sustentabilidade e ao meio ambiente é baseado em dois princípios: deixar sempre melhor do que antes e perpetuar o valor dos recursos ambientais em vez de regredir ou manter. Para executar essas duas coisas você não pode só fazer melhorias incrementais, na mentalidade tradicional de evitar ou reduzir o impacto, você tem que sair da caixa. O Mapbiomas [a maior plataforma digital de monitoramento de mudanças de uso da terra no Brasil] surgiu de um problema bem objetivo, porque precisávamos gerar uma série histórica de mudanças de uso da terra para calcular as emissões de gases do efeito estufa por desmatamento no Brasil. Hoje, o projeto tem várias aplicações e dele surgiram várias iniciativas. Usando essa tecnologia, por exemplo, avaliamos pela primeira vez todos os alertas de desmatamento gerados por várias instituições. Assim podemos garantir que um desmatamento ilegal vai ser pego, vai ser laudado e vai gerar uma ação [punitiva] dos órgãos ambientais e ministérios públicos.”  

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    Fernanda Simon

    Diretora executiva do Fashion Revolution Brasil
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    “Quando a gente fala em inovação na moda, o mais importante é renovar nossa mentalidade: como a gente pensa, cria, consome, produz e descarta. A velocidade com que a moda caminha hoje é incondizente com a realidade do planeta, por isso temos que pensar em novos modelos de negócio, em uma moda mais colaborativa, mais criativa, mais diversa, mais circular, mais compartilhada. Inovação na moda é, então, ter um olhar sistêmico que contempla todas as pessoas da cadeia produtiva e o planeta também, desde a extração da matéria prima até o consumo. No Fashion Revolution, a gente acaba incentivando com mais força a sociedade civil, mostrando para o consumidor que ele tem poder, que a escolha dele é um voto e que ele tem que questionar as marcas, saber quem fez as roupas, exigir energias mais limpas e transparência. A tecnologia precisa ser uma aliada nesse sentido, tanto na inovação de processos e materiais quanto na comunicação. O blockchain, por exemplo, pode nos ajudar muito na rastreabilidade [dos produtos], porque a cadeia produtiva da moda é muito extensa e a gente tem que conseguir entendê-la para consumir de forma mais consciente e transparente. Estamos avançando, e acho que momentos de crise, como o de agora, sempre trazem transformações: as marcas vão precisar se reinventar, se posicionar, e haverá mudanças no comportamento de consumo, já que é um momento que coloca as pessoas para pensarem sobre o que é essencial.

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    Luciano Meira

    Co-fundador da Joy Street e professor da UFPE
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    ©?Thiago Santos

    “Inovar não é apenas trazer novidade. É trazer uma novidade que entrega valor e que muda os comportamentos na direção da missão que foi estrategicamente desenhada. E a missão da escola, ao contrário do que muita gente pensa, não é ensinar, mas criar cenários de aprendizagem. Vivemos imersos em uma cultura digital que é subaproveitada pela escola [nesse sentido]. E a primeira grande lição da pandemia para a educação foi que transformação digital não é a transposição do mundo analógico, presencial, para o mundo digital, remoto. Se a gente tem que mudar a mídia, a engenharia didática também tem que mudar. Temos que construir conteúdos relevantes com significados contextuais atrelados à sociedade e fazer as pessoas usarem a cultura digital para acessar novos formatos de exposição, que trazem competências críticas para o mundo de hoje. Na Joy Street, por exemplo, estamos mudando nossa plataforma [originalmente pensada como uma olimpíada de aprendizagem em formato gamificado, em que os alunos resolvem enigmas a cada fase, desenvolvendo as competências exigidas pelo Enem] para permitir interações com os professores em pequenos grupos. Não é uma aula: a ideia é que a plataforma gere dados de desempenho para o professor chamar interações com os grupos e resolver as dificuldades específicas que esses estudantes têm agora.”

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    Marco Krieger

    Vice-Presidente de Produção e Inovação em Saúde da Fiocruz
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    ©?Peter Illiciev-Fiocruz

    “Pra gente, inovação de verdade é poder transferir para a sociedade o que produzimos em nossos laboratórios. Durante uma pandemia isso precisa ocorrer o mais rápido possível. Um exemplo é a tecnologia para identificação e sequenciamento do vírus, fundamental para produzir soluções de diagnóstico e tratamentos emergenciais. Nos anos 80 levamos três anos apenas para identificar o HIV. Já se sabia que havia a AIDS, mas nem se sabia que era um vírus. Em 2002, com a SARS, foi preciso duas semanas para descobri-lo e sequenciá-lo. Com o Covid-19, conseguimos sequenciar em 24 horas, aqui no Brasil. O que leva a outra inovação, as plataformas para desenvolvimento de vacinas. Com forte investimento internacional e o compartilhamento de dados entre centros de pesquisa de países diversos, novas metodologias puderam ser postas em prática. Antes, desenvolver uma vacina levava décadas. Hoje, esse processo foi acelerado em mais de dez vezes, graças à validação do uso de subunidades ou partes do vírus, como proteínas, em vez do patógeno inteiro. Isso é recente. Os testes clínicos em animais, depois grupos pequenos e então grupos maiores e vulneráveis ainda são vitais para garantir a segurança. Mas hoje é possível acelerar tudo isso e se preparar para um novo possível surto de uma doença. O mesmo se dá com remédios. No projeto Solidarity, que envolve a OMS e mais de cem países, incluindo o Brasil por meio da Fiocruz, é possível avaliar a eficácia, sobre o Covid-19, de todos os tratamentos já existentes para outras condições –e em tempo recorde. Como a letalidade da doença é baixa, testar a efetividade de um medicamento levaria anos em testes com muitos milhares de pessoas. Mas com centros testando os resultados em grupos pequenos, mas em centenas de locais ao mesmo tempo, a validação científica é possível em até dois meses. O uso do “big data” para avaliar o efeito dessas intervenções, assim como para analisar a adesão da população às indicações, dinâmicas sociais diversas e a evolução dos casos clínicos via app de celular é outro ponto. Essas inovações são simples, mas geram evidências que podemos nos ajudar até que ferramentas mais sofisticadas possam surgir.” 

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    Adauto Cardoso

    Arquiteto, professor de planejamento urbano da UFRJ e coordenador do Grupo de Pesquisa Habitação e Cidade do Observatório das Metrópoles
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    Em termos de habitação de interesse social, inovações tecnológicas praticamente não existem. Há, isso sim, grandes inovações de gestão. É o caso do Minha Casa Minha Vida Entidades, projeto do governo federal (na gestão da Dilma Rouseff) que incorporou um modelo de participação popular em todo o escopo da obra, na linha da autogestão. Se no Minha Casa Minha Vida grandes incorporadoras conseguiram aumentar a produtividade e reduzir custos por meio de uma enorme padronização das soluções, sem se pensar nas necessidades das famílias e diferenças sociais, climáticas, etc. (o mesmo edifício era erguido no semiárido nordestino e na Amazônia), aqui a redução do custo de construção que foi revertido em melhoria da qualidade do produto final, inclusive apartamentos maiores, na readequação das áreas comuns, tudo sendo decidido pelo coletivo de futuros moradores segundo suas reais necessidades. Isso com acompanhamento de associações, cooperativas, arquitetos, urbanistas, assistentes sociais. A reforma do edifício Dandara, no centro de São Paulo, é um exemplo. Em vez de construir do zero em locais distantes, o prédio, numa região com estrutura de transporte público, escolas, etc., foi retrofitado e entregue a famílias de baixa renda. Outra inovação recente no país foi a criação de um modelo de intervenção de favelas, com o “PAC das favelas”. Nem todos foram bem-sucedidos, como o caso das favelas cariocas, mas há alguns lugares onde se avançou muito, como em São Bernardo do Campo. De qualquer forma, com o coronavírus, essas favelas que sofreram intervenção tem condições sanitárias muito melhores.”