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SemanaA sociedade da mentira
Em meio à ascensão das fakes news e deepfakes, a humanidade se aproxima de um ponto em que é impossível separar verdade e mentira
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Em meio à ascensão das fakes news e deepfakes, a humanidade se aproxima de um ponto em que é impossível separar verdade e mentira
“Fala para os caminhoneiros aí que são nossos aliados, mas esses bloqueios aí atrapalham a nossa economia.” A frase é de Jair Bolsonaro, mas ninguém acreditou. O disparo foi endereçado aos caminhoneiros, na última quinta-feira (9), dois dias após as manifestações pró-governo, no 7 de Setembro, quando motoristas faziam greve a favor da administração Bolsonaro, travando algumas das principais rodovias do país e prejudicando o abastecimento.
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Mas o áudio logo gerou desconfiança no caminhoneiro Zé Trovão, um dos organizadores do levante e apoiador ferrenho do presidente. Não seria aquela voz tão característica apenas mais uma imitação do humorista Marcelo Adnet na tentativa de ludibriar os grevistas?
No fim das contas, a resposta era não. O áudio, de fato, foi gravado por Bolsonaro, mas o estrago já estava feito. A história saiu nos principais veículos de notícia do país e virou piada nas redes sociais. Também não tardou a chegar aos ouvidos de Adnet em pessoa, que divulgou seu próprio áudio.
“O que eu tenho a dizer aí que o áudio que circulou aí é falso, tá ok?”, ironizou o humorista. Em seguida, pediu uma espécie de flash mob, com todos os caminhoneiros dançando a macarena “até aquele outro lá pedir para sair” — em referência ao ministro do STF Alexandre de Moraes, atual alvo das reclamações do presidente.
O caso virou piada, mas dúvidas como a de Zé Trovão sobre a autenticidade da voz do presidente podem se tornar cada vez mais comuns num mundo em que informações falsas vêm tomando a internet e as redes de assalto. Mais recentemente, fake news tiveram papel importante na desinformação em relação à covid-19 e, devido à sua rápida e fácil disseminação, podem ter inclusive influenciado a população brasileira em período eleitoral.
Informações falsas se tornaram tão disseminadas que o público já não confia mais em seus olhos e ouvidos
Com a chegada de novas possibilidades de falsificar imagens, como os deepfakes — técnica que utiliza inteligência artificial para forjar falas e vídeos —, estudiosos consideram que a sociedade pode estar prestes a cruzar uma fronteira perigosa. Para além dela, estaria um mundo onde tudo pode ser manipulado, algo que os pesquisadores americanos Danielle Citron e Robert Chesney apelidaram de “liar’s dividend”, a cotação do mentiroso. “Essa cotação aumenta, perversamente, à medida que o público aprende sobre os riscos dos deepfakes. A cotação do mentiroso viria junto com essas tendências de maior ceticismo em relação a realidade”, explicam os autores em artigo sobre o tema.
Em outras palavras, se resume a um estado de coisas em que informações falsas se tornaram tão disseminadas que o público já não confia mais em seus olhos e ouvidos. Se nada é real, fica ainda mais fácil acreditar naquilo que é conveniente para cada um. E as tentativas da mídia tradicional de desbancar notícias falsas, ainda que necessárias, acabariam por contribuir com esse estado, pois ajudam a reforçar a impressão de que tudo pode ser questionado.
Segundo a dupla de pesquisadores, esse seria o ambiente perfeito para a ascensão de líderes autoritários pelo mundo. “Se o público perde a confiança naquilo que escuta e observa, e a verdade se torna uma questão de opinião, o poder flui para aqueles cujas opiniões estão mais proeminentes — consolidando certas autoridades pelo caminho.”
Meu querido curral
Embora a desinformação em si seja quase tão velha quanto a humanidade, seu uso na internet como estratégia para campanhas eleitorais é relativamente recente, diz o pesquisador da Universidade de Oxford e especialista em inteligência artificial e desinformação Caio Machado. Segundo Machado, que é diretor-executivo do Instituto Vero, a desinformação não caracteriza objetivamente uma mentira. Pode ser uma informação real explorada com objetivos escusos ou colocada fora de contexto.
Na internet, as particularidades de cada rede são utilizadas para montar estratégias específicas de disseminação de fake news. Seja por meio de palavras-chave ou explorando os algoritmos, seja valorizando a criação de comunidades fechadas em plataformas como o WhatsApp, um dos campeões das fake news no Brasil. “Onde houver espaço, ele vai ser ocupado”, reforça o pesquisador.
O problema não são as bolhas, mas os currais para onde as redes sociais empurram usuários que pensam de forma semelhante
Para o professor de comunicação da UFRJ Henrique Antoun, especialista em cibercultura, o problema não são as bolhas, mas os currais para onde as redes sociais empurram, por motivos comerciais, usuários que pensam de forma muito semelhante entre si. “Se todo mundo fala o mesmo que eu, fico tranquilo. Mas também me irrito cada vez mais quando algo me contraria, e tenho vontade de matar um amigo se ele diz uma coisa de que não gosto.”
A questão, diz Henrique, é que grupos políticos e econômicos foram aprendendo com o tempo a se aproveitar desse curral ditado pelos algoritmos. No caso brasileiro, existe ainda a particularidade do WhatsApp, uma rede que o professor caracteriza como “de laços fortes”, envolvendo família, amigos e colegas de trabalho. Por ser fechada, torna-se missão impossível saber o que acontece ali ou mesmo contradizer informações que circulam dentro dela, o que favorece a formação de movimentos silenciosos, mas de enormes dimensões.
Qual verdade você prefere?
Algumas cicatrizes que essa tendência deve deixar na sociedade, afirma Machado, são a absoluta perda de confiança nas instituições e a incapacidade de formar consensos, fortalecendo retóricas políticas que partem para a polarização popular. “Até hoje se discute a covid-19, com disputas sobre fontes confiáveis de informação. É um processo de descrédito dos poucos instrumentos que temos para ler a realidade, algo que acaba moldando nossa sociedade.”
Embora não se possa falar que todo mundo é ignorante de tudo, Machado diz que já podemos nos considerar num estado avançado — e perigoso — de desinformação. Isso gera uma falta de ação nas pessoas, que têm cada vez mais dificuldade de saber onde encontrar a verdade ou quais políticas públicas apoiar.
O debate sobre a desinformação não tem a ver só com ignorância. Ele deve englobar a parcialidade inerente a todo ser humano
Estudioso da cognição em ambientes digitais, o professor de filosofia e ciências sociais do Instituto Federal de Minas Gerais José Costa Junior ressalta que o debate sobre a desinformação não tem a ver só com ignorância. Ele também deve englobar a parcialidade inerente a todo ser humano. Ou seja, o fato de favorecermos certas informações por nos agradarem mais, numa tendência que pende para o sentimental em vez do factual. “Basta olhar a questão do voto impresso. São inúmeros estudos institucionais que apontam a segurança do processo eleitoral. Mas muita gente segue contestando mais por posicionamento político do que por realmente acreditar numa fraude”, afirma José.
Os primórdios da checagem
Gilmar Lopes não estará muito longe da verdade se disser que o ambiente de checagem de fatos na internet era só mato quando ele ali chegou. Em 2002, quando criou o site E-farsas, um dos precursores desse trabalho no Brasil, as próprias fake news eram bem diferentes de hoje.
A intenção dos mentirosos de plantão, segundo ele, era muito mais inocente: chamar a atenção e chegar ao máximo de pessoas possível. Na época, Lopes podia levar até uma semana para checar e desmentir uma afirmação falsa. Hoje, essa demora seria inconcebível. “É tudo muito mais rápido. Quando um influenciador posta um vídeo político no YouTube, as visualizações são logo impulsionadas por grupos com milhares de membros no WhatsApp. Mesmo que o canal tenha 1 milhão de inscritos, ele vai conseguir 1,5 milhão de visualizações num único vídeo. Não é algo orgânico.”
Ainda que seja impossível lidar com todas as fake news que são disparadas, o pesquisador teve ajuda extra. A evolução dos mecanismos de busca ao longo dos anos, com ferramentas como pesquisa por imagens, e o grande aumento do número de documentos disponibilizados online vêm facilitando e muito seu processo de checagem.
Apagando incêndios com copo d’água
Para desenvolver esse trabalho, hoje Lopes monitora vários grupos grandes no WhatsApp. A maioria é gerenciada por alguns poucos administradores, que impulsionam as histórias falsas em todos eles. Assim, quem integra algumas dessas comunidades fica com a impressão de que todo mundo está falando sobre o assunto e acaba tomando uma notícia como verdade.
“Recentemente, conheci uma pessoa na vida real que faz parte desses grupos”, conta Gilmar. “Ele me disse que existia uma brecha na Constituição permitindo que a populaçao entrasse e tirasse todos os ministros do STF. Claro, viu isso numa postagem do WhatsApp. É um texto antigo, que desmenti algum tempo atrás, mas que voltou repaginado para aproveitar o barulho do 7 de Setembro.”
Uma das maiores mágoas do trabalho com verificação é o fato de que o desmentido nunca tem o mesmo alcance da notícia original, diz Lopes. Para furar essa bolha, ele faz parcerias como a que mantém com o site R7 ou mesmo com o influencer Pirulla no YouTube. Em 2020, fez parte do projeto Fato ou Boato, força-tarefa criada pelo Tribunal Superior Eleitoral para frear a disseminação de fake news nas eleições.
Mas afinal, desbancar notícias falsas deixa ainda mais dúvidas na cabeça das pessoas? O constante apontar de mentiras por veículos de mídia pode até inflar o tema, mas o pesquisador Caio Machado não vê outra saída. “A gente é obrigado a responder, senão fica só a mentira. Se você desmente, talvez a longo prazo a informação se retifique.”
Cara de um, focinho do outro
Ter imagens e áudios falsos, ainda por cima extremamente convincentes, circulando pela internet é certamente um ponto de atenção. Que o digam famosos perseguidos por suas imagens, indevidamente incluídas em vídeos pornô ou colocadas para dizer coisas absurdas. Mas os deepfakes ainda devem ser uma preocupação mais para o futuro, segundo os especialistas consultados por Gama.
Em primeiro lugar porque a tecnologia não está tão disseminada assim — e criar falsificações de qualidade requer alguns gastos e uma certa técnica. Além disso, tem também a questão da praticidade. “Nas últimas eleições para presidente, as fotos da ‘mamadeira de piroca’ fizeram um estrago enorme praticamente sem gasto nenhum”, lembra Lopes.
Mas, segundo Machado, o tempo dos deepfakes ainda pode chegar. “É algo que devemos ter em mente. Hoje os maiores investimentos são feitos em formas diferentes de disseminar fake news. Mas talvez no futuro, com maior conhecimento e tecnologias mais desenvolvidas, os deepfakes podem se tornar muito dificeis de distinguir da realidade.”
O duro baque da realidade
O diretor-executivo do Instituto Vero considera importante educar as pessoas sobre onde buscar suas informações, além de investir em leis que moderem aquilo que é publicado nas redes sociais. Algumas delas, como Twitter e Facebook, até desenvolveram mecanismos internos para coibir a publicação desse tipo de conteúdo — prática que foi impedida no Brasil por uma Medida Provisória recente de Bolsonaro.
Uma legislação mais robusta contra fake news exige um conhecimento profundo sobre o ecossistema das redes sociais entre os parlamentares
Para Machado, uma legislação mais robusta contra fake news carece de um conhecimento aprofundado sobre o ecossistema das redes sociais entre os parlamentares. Além disso, a polarização de interesses políticos entre oposição e governo impediria que o debate avançasse neste momento.
Lopes é contra a criação de uma nova lei para moderar as notícias falsas — para ele, a legislação que existe é suficiente. Também não bota fé nos tais mecanismos das redes para moderar comentários, pois eles poderiam descambar para o cerceamento do direito de expressão, causando uma dor de cabeça ainda maior. A saída, segundo ele, estaria na educação digital, especialmente de pessoas que têm em redes como o WhatsApp seu principal contato com a internet. “Até antes da pandemia, eu costumava dar muitas palestras em escolas e universidades mostrando os passos importantes que todo mundo deveria percorrer antes de compartilhar uma história nas redes.”
Já o professor Henrique Antoun defende que a solução para as fake news é uma só, e até bastante orgânica: o duro baque da realidade. Afinal, acontecimentos gerados ou impulsionados por notícias falsas têm consequências reais para o cotidiano das pessoas. “Por mais que a rede te amarre, as pessoas acabam fazendo coisas fora dela. É aí que é possível vislumbrar problemas novos e encontrar caminhos. Dessa forma, a sociedade se complexifica e se amplia.”