Christina Sharpe fala sobre narrativas negras silenciadas — Gama Revista
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Rachel Eliza Griffiths

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Conversas

Christina Sharpe: "O silêncio e o poder moldam as narrativas que aceitamos como verdadeiras"

Uma das principais presenças na Flip, autora que vem revolucionando o debate racial lança livro com histórias cuja beleza escapa da violência cotidiana

Leonardo Neiva 26 de Novembro de 2023

Christina Sharpe: “O silêncio e o poder moldam as narrativas que aceitamos como verdadeiras”

Leonardo Neiva 26 de Novembro de 2023
Rachel Eliza Griffiths

Uma das principais presenças na Flip, autora que vem revolucionando o debate racial lança livro com histórias cuja beleza escapa da violência cotidiana

“Eu fui um receptáculo para todas as ambições que minha mãe tinha para mim — ambições que encontraram suas próprias formas”, narra Christina Sharpe no recém-lançado “Algumas Notas do Dia a Dia” (Fósforo, 2023). No trecho do livro, com tradução de Jess Oliveira, a escritora, professora e pesquisadora estadunidense conta a obstinada tentativa da mãe, ao longo de muitos verões, de ensiná-la a costurar. Apesar de fadada ao fracasso, já que Sharpe não parecia levar muito jeito para a atividade, a autora faz uma consideração importante: “Ela falhou. Falhamos juntas.”

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Anos depois, a história se transforma quando a escritora reencontra os corações de feltro vermelho que a mãe costumava fazer, assim como o círculo preto do mesmo tecido onde construía arranjos únicos com uma gama de alfinetes tortos. “Até os alfinetes tortos têm um lugar só para eles”, aponta Sharpe, reforçando o amor da mãe pela simetria. Em relação à beleza simples e surpreendente dessa redescoberta, ela descreve como principal resultado da atenção “a um tipo de estética que, sempre que possível, escapou da violência, mesmo que seja só o arranjo perfeito de alfinetes.”

Uma das mais aguardadas participações deste ano na Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, onde dividiu mesas com a poeta e acadêmica brasileira Leda Maria Martins e a poeta canadense Dionne Brand, Sharpe vem revolucionando as abordagens e a própria linguagem do debate racial contemporâneo. O livro “No Vestígio” (Ubu, 2023), também traduzido para o português por Jess Oliveira, foi sua obra que primeiro atraiu a atenção do mundo, onde a escritora desvenda vislumbres das inúmeras memórias negras ocultas e esquecidas em meio a uma história predominantemente branca.

“Quando abordo a ortografia do vestígio, não estou falando da forma como os negros se descrevem. Na verdade, me refiro às maneiras como a supremacia branca descreve os negros”, aponta a escritora em entrevista a Gama. “É contra esse tipo de ortografia que negros de todo o mundo escrevem. Contra essas formas de escrita que nos desumanizam.”

Já em “Algumas Notas do Dia a Dia”, versão reduzida do original “Ordinary Notes”, finalista do prestigiado National Book Award, a escritora, que é professora e pesquisadora em estudos negros na Universidade York, em Toronto, mescla as próprias memórias familiares a teorias, documentos históricos e relatos biográficos. Num emaranhado de histórias e reflexões cotidianas, a obra narra a beleza, as variedades da vida negra que emergem apesar de e também nas brechas deixadas pelo racismo e a violência. Não à toa, são as imagens de peças costuradas pela mãe que ilustram a capa e permeiam todo o livro. A edição completa da obra deve chegar ao Brasil apenas em 2024, também pela Fósforo.

“Queria pensar nas maneiras como navegamos pelo mundo sabendo que enfrentamos a violência, mas que essa não é a única forma de encontrarmos esse mesmo mundo e uns aos outros”, explica a autora. A obra, que vai de trechos longos a capítulos com apenas um parágrafo, passeia de histórias e impressões da vida pessoal da escritora até referências e exemplos reconhecíveis, que ajudaram a moldar seu pensamento e sua escrita.

No papo com Gama, que aconteceu durante a Flip, a escritora aborda ainda as forças que controlam as narrativas que chegam até nós, a linguagem como forma de opressão e o impacto universal de histórias que não falam necessariamente “por todos os negros”, mas “para todos os negros”.

As crianças negras não podem ser crianças. Para eles, é usado ‘juventude’, que  raramente se associa aos brancos

  • G |Seu livro “No Vestígio” só foi publicado recentemente aqui no Brasil. Como você descreveria o significado do termo “vestígio” na obra? E como esse aspecto se infiltrou na existência e na memória negras?

    Christina Sharpe |

    Quando abordo a ortografia do vestígio, não estou falando da forma como os negros se descrevem. Na verdade, me refiro às maneiras como a supremacia branca descreve os negros. É a isso que [a escritora] Sylvia Wynter se refere no texto “No Humans Involved”, como os tipos de conhecimento produzidos na academia colocam os negros como menos que humanos. É contra esse tipo de ortografia que negros de todo o mundo escrevem. Contra essas formas de escrita que nos desumanizam, ao mesmo tempo em que fazem uso da humanidade negra como uma espécie de matéria.

  • G |Na obra, você argumenta que algumas palavras e expressões adquirem diferentes significados e reverberações no contato com pessoas negras. Como isso acontece?

    CS |

    Falo sobre as maneiras pelas quais a linguagem e as palavras se desintegram. E não só em relação aos negros, mas também a outras pessoas expulsas daquilo que entendemos como ser humano. Por exemplo, a palavra criança. Se olharmos para o presente, Israel tem crianças, enquanto os palestinos têm jovens menores de idade. Esse é o tipo de linguagem que os negros em todo o mundo reconhecem, porque é assim que se fala das crianças negras. As crianças negras não podem ser crianças. A palavra criança desmorona quando é atribuída a alguém que é negro ou de ascendência africana. Para eles, são usadas expressões como “juventude”, que muito raramente se associa aos brancos. Esse é um tipo de limitação que não descreve, e sim patologiza esses jovens. Os negros não têm direito de ser crianças.

  • G |O livro trata também das dificuldades de habitar um mundo onde as regras são escritas a partir de uma perspectiva branca e racista. Como construir histórias numa sociedade como essa?

    CS |

    Há muitas maneiras, e certamente vemos isso acontecendo o tempo todo. Senão, eu não estaria aqui. Vou dar um exemplo de fora dos EUA: os flâneurs de Kinshasa [moradores pobres que caminham vestidos de forma impecavelmente luxuosa pelas ruas da capital do Congo]. Em meio a todos os problemas de infraestrutura, você tem essa figura com roupas escandalosamente lindas, que constrói beleza em meio a todos os tipos de colapsos. Existem também os poetas. Todo movimento negro pela libertação no mundo é acompanhado por escritores, artistas visuais, músicos, dançarinos, etc. Portanto, a beleza sempre fez parte de qualquer luta de libertação. Em “Ordinary Notes”, escrevo sobre a beleza como método. Percebi um pouco tarde que minha mãe não adorava suas flores, a costura, a pintura e todas essas coisas só para criar beleza. Essa era também uma prática necessária para habitar um mundo anti-negro. Isso acontece em todos os lugares. Há uma nota no livro, incluída pela escritora Canisia Lubrin, em que ela descreve a elegância como tirar o chapéu frente ao desastre. Me refiro a esse tipo de coisa.

  • G |Como surgiu a ideia de um livro como “Ordinary Notes”, que se constrói em torno de histórias, pensamentos, memórias, referências, trocas?

    CS |

    Em “No Vestígo”, repito algumas vezes que nós, negros, fomos constituídos através de uma força esmagadora. Mas não nos conhecemos nem nos dirigimos uns aos outros por essa força. Então queria pensar nas maneiras como navegamos pelo mundo sabendo que enfrentamos a violência, mas que essa não é a única forma de encontrarmos esse mesmo mundo e uns aos outros. Criamos música, arte, literatura, reivindicações políticas, fazemos mudanças ao redor. As notas são uma forma de dizer: vejo tudo o que está acontecendo ao meu redor e compreendo como o mundo atua contra mim, mas estou trabalhando para criar algo diferente disso.

Muitas pessoas que escrevem a história com H maiúsculo estão interessadas apenas na vida de grandes homens

  • G |Você mencionou também a influência de uma conversa com a escritora Saidyia Hartman…

    CS |

    Eu fazia uma entrevista com ela em Los Angeles sobre o livro “Vidas Rebeldes, Belos Experimentos”, quando ela me perguntou no que eu estava trabalhando. Respondi que estava fazendo duas coisas diferentes. Um dos projetos tinha a ver com algumas fotos da minha avó com a minha mãe ainda criança, que hoje estão no livro. Saidyia disse que eu deveria optar pelo projeto mais difícil, que era o da fotografia. Mas também fui influenciada por livros como “Um Mapa para a Porta de Não Retorno” e “The Blue Clerk”, de Dionne Brand, e por uma obra pela qual sou apaixonada há muito tempo, “People Who Led to My Plays”, da dramaturga Adrienne Kennedy. Também queria escrever um livro em que a forma tivesse um impacto importante.

  • G |Na nota que incluiu sobre sua mãe você descreve a beleza como resultado da “atenção dada a uma estética que, sempre que possível, foge da violência”. Essa é uma definição única para a negritude ou abrange todos os grupos que enfrentam este tipo de violência?

    CS |

    Não acredito que sejam apenas os negros que criam beleza diante de uma violência tremenda. Minha preocupação ao escrever é principalmente com os negros, mas tenho trabalhado para dialogar com toda e qualquer pessoa. Então penso o mesmo em relação aos povos indígenas, aos brancos pobres e todas as pessoas que são descartadas na sociedade, como os desabrigados, pessoas com deficiência, pessoas queer, trans, lésbicas, gays. É possível para qualquer pessoa que enfrenta a violência ter uma vida sustentada pela beleza.

  • G |Encontrar a beleza no cotidiano é uma forma de resistência? Uma maneira de viver em vez de sobreviver?

    CS |

    Acho que é ao mesmo tempo uma resistência e uma forma de viver. Por que eu deveria me deixar entregar ao que não é bonito? A beleza também pode ser um tipo de exigência política, de que eu me recuso a aceitar ser tratada como lixo. Posso fazer outra coisa com isso, o que seria surpreendente. O tempo todo vemos pessoas que coletam lixo e criam algo bonito a partir dele. Não pretendo aqui estetizar a violência, mas falar sobre o profundo compromisso das pessoas em criar uma vida que seja habitável para elas, seus filhos e suas comunidades. Não é desculpa para a violência dizer que você pode continuar me dando lixo, porque criarei algo com isso. Não, é uma exigência política por uma coisa diferente.

  • G |O livro resgata muitos desses pequenos objetos e momentos que representam uma fuga, um cotidiano que nem sempre registramos. Por que raramente temos acesso a essas histórias e memórias?

    CS |

    Existem motivações muito reais para isso. Muitas pessoas que escrevem a história com H maiúsculo estão interessadas apenas na vida de grandes homens. São os historiadores sociais que buscam construir a história a partir do zero, analisando materiais que muitos historiadores colonizadores simplesmente ignoram, porque são o sustento dos pobres, da classe trabalhadora, das mulheres, das pessoas queer, negras, latinas, asiáticas, em contextos marginalizados. Num país como o Brasil, que é majoritariamente negro, certas histórias da vida e da luta negra foram totalmente marginalizadas. Há um grande antropólogo cultural chamado Michel-Rolph Trouillot, que escreveu um livro chamado “Silenciando o Passado”. Ele diz que há quatro momentos em que o silêncio entra no registro: a coleta de materiais, sua organização, a escrita, que é a organização histórica, e o quarto não me lembro. Mas em todos esses momentos, o silêncio e o poder moldam as narrativas que aceitamos como verdadeiras.

Não falo por todos os negros, mas para todos os negros

  • G |A obra também contém uma seção chamada “Dicionário da Negritude Intraduzível”. Quanto das experiências, histórias e do uso de palavras são realmente intraduzíveis?

    CS |

    O título é um comentário sobre um livro que encontrei chamado “O Dicionário do Intraduzível”, uma espécie de léxico filosófico. Eram palavras de diversas línguas, principalmente europeias, em que filósofos escreveram verbetes sobre aquilo que se perde na tradução de uma língua para outra. À medida que lia o livro, percebi que havia palavras como liberdade, que teriam um significado muito diferente caso houvesse um filósofo negro envolvido. Então pedi para várias pessoas definirem uma palavra a partir de sua posição na vida negra. Por exemplo, o que significa elegância? O que é arquivo, o que significa vida? Então 18 pessoas escreveram uma frase cada uma, pensando o significado de uma palavra a partir da vida que viviam.

  • G |As manifestações da vida negra que você escreve estão restritas a uma realidade norte-americana? Ou existem aspectos identificáveis em outros lugares, como aqui no Brasil, onde a população e cultura negras são tão extensas?

    CS |

    No meu primeiro livro, “Monstrous Intimacies”, escrevo sobre Gayl Jones e seu romance “Corrigidora”, que se passa tanto no Brasil quanto nos EUA; escrevo sobre Isaac Julien, um cineasta e fotógrafo negro, britânico e gay; escrevo sobre a artista visual americana Kara Walker e a escritora sul-africana Bessie Head. Portanto, é um livro claramente diaspórico. “No Vestígio” pode parecer uma obra muito mais afro-americana, mas isso é porque estou escrevendo a partir de minhas experiências particulares. Não espero que elas mapeiem a experiência de toda pessoa negra num espaço majoritariamente branco, mas que sejam compreensíveis por pessoas negras espalhadas por todo o mundo. Não falo por todos os negros, mas para todos os negros.

  • G |O Brasil foi o último país a abolir a escravidão no continente americano. Nos últimos anos, temos vivido um forte movimento para evitar o uso de palavras e expressões que façam alusão à escravidão. Na sua opinião, esse tipo de conscientização gera impacto positivo?

    CS |

    Acredito que seja mais ou menos bem-sucedido. Dá para observar, no contexto dos EUA, como a autodenominação dos negros mudou ao longo dos anos. Nos afastamos de expressões como “nigro” ou “pessoa de cor”, que não eram escolhidas por nós para definir afro-americanos e negros. Eu prefiro a palavra “preto”, porque ela não determina uma nação para pessoas de ascendência negra, não importa onde estejamos no mundo. E entendemos todas as conotações negativas que acompanham a palavra. O dicionário em inglês tem 60 definições negativas para preto, mas é também uma palavra que descreve um conjunto de políticas e solidariedades. Existem outras palavras que as pessoas tentaram parar de usar ou das quais mudaram determinadas letras. Não acho que a mudança de uma letra altere o impacto, mas pode ser porque sou mais velha. Há algo poderoso em mudar o idioma. Nós, negros, mudamos o idioma o tempo todo e obrigamos as palavras em inglês a fazer o que não deveriam inicialmente, o que destaca a vitalidade da língua. Mas certas expressões têm um histórico de atrocidades tão grande que não sei se é possível quebrar.

  • G |Na Flip, você estará ao lado das poetas Dionne Brand e Leda Maria Martins, cujas obras tratam das multiplicidades de corpos, identidades e experiências negras. O que você espera dessas trocas?

    CS |

    Aprendi muito com a escrita da Dionne Brand, e ainda não tive a oportunidade de acompanhar o trabalho da Leda, porque não sei ler português. Mas espero que alguém possa me enviar algo em inglês para que eu possa ler. Há uma genealogia de escritores que me moldaram e com quem continuo aprendendo. Só recentemente passei a me considerar uma escritora, e certamente isso não teria acontecido se não tivesse lido esses trabalhos vorazmente e tentado, com o melhor da minha capacidade, seguir seus exemplos.