Arquitetura biomimética e o debate sobre construções e sustentabilidade — Gama Revista
Qual a sua natureza?
Icone para abrir
Wikimedia Commons/Matthew Williams-Ellis/Getty Images

4

Semana

Para construir, olhe para a natureza

Arquitetos se inspiram em soluções naturais para projetar e construir de maneira mais verde e sustentável. No Brasil, o debate dá passos importantes

Manuela Stelzer 11 de Julho de 2021
S_biomimetica_repertorio2_teaser media
Wikimedia Commons/Matthew Williams-Ellis/Getty Images

Para construir, olhe para a natureza

Arquitetos se inspiram em soluções naturais para projetar e construir de maneira mais verde e sustentável. No Brasil, o debate dá passos importantes

Manuela Stelzer 11 de Julho de 2021

No Zimbábue, as tubulações de ar do shopping Eastgate Center imitam cupinzeiros africanos — e assim mantém constante e fresca a temperatura interna do edifício. O Estádio Nacional de Pequim possui toda sua estrutura inspirada em um ninho de pássaros. Já o Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, tem uma cobertura que acompanha o movimento do sol para obter iluminação natural, além de captar energia solar por células fotovoltaicas, justamente como as plantas fazem durante o processo de fotossíntese.

Wikimedia Commons/Unsplash/Buda Mendes/Getty Images/Pikrepo

Esses são alguns exemplos de projetos icônicos da arquitetura biomimética, uma corrente contemporânea que busca soluções sustentáveis inspiradas na natureza, sem simplesmente replicar suas formas, mas compreendendo as normas que a regem. “Vai além da forma. É um entendimento mais profundo do que a natureza faz para que o partido arquitetônico [parâmetros levados em consideração pelo arquiteto na hora de projetar] faça a mesma coisa”, diz Alessandra Araujo, bióloga, designer em inovação e especialista no assunto. “Traduzimos uma função encontrada na natureza, e a aplicamos à arquitetura. As respostas para nossas perguntas estão nos 3,8 bilhões de anos de seleção de padrões e estratégias naturais eficientes.”

Como estamos no Brasil

O mercado nacional da biomimética ainda é tímido. No lugar de projetos grandiosos, arquitetos brasileiros replicam estratégias naturais em práticas como a captação de energia solar ou reuso da água das chuvas. “Uma das características dessa vertente da arquitetura é o olhar altamente sistêmico, que acredita que tudo está integrado”, afirma Giane Brocco, engenheira e fundadora da Amazu, uma consultoria de biomimética para empresas. “Mas, de forma geral, se preocupar com o ecossistema no qual aquela construção vai se inserir já segue a perspectiva da biomimética.”

Oportunidade para desenvolver a metodologia no país, no entanto, não falta. “Cada bioma brasileiro, com suas formas de lidar com contexto e pressões climáticas, esconde muitas estratégias inteligentes. Vivemos em um laboratório natural”, afirma Alessandra Araujo. “Se a arquitetura brasileira tivesse uma inspiração local, condizente com o devido contexto, seríamos uma vanguarda.”

Cada bioma brasileiro, com suas formas de lidar com contexto e pressões climáticas, esconde muitas estratégias inteligentes. Vivemos em um laboratório natural

No Brasil, fala-se com mais propriedade de outras vertentes verdes da arquitetura, que ainda não são de fato biomimética — mas se aproximam. É o caso da bioarquitetura, que pretende aliviar os impactos ambientais das construções; também da biofilia, que busca uma reconciliação com a natureza por meio da presença de vegetação, água e iluminação natural abundante no projeto; ou do biourbanismo, que quer reinserir a natureza nas cidades, tornando-as mais resilientes a mudanças climáticas. Aplicados no país em diferentes escalas e projetos, essas vertentes, apesar de não seguirem a metodologia complexa e específica da biomimética, são mais responsáveis do ponto de vista da sustentabilidade e propõem soluções integradas e inteligentes. A seguir, Gama lista algumas iniciativas e arquitetos que, por aqui, têm dado passos importantes em direção à uma arquitetura que conversa com a natureza e nela se inspira.

Inspiração eclética e multidisciplinar

O croata naturalizado brasileiro Marko Brajovic é um dos nomes mais importantes da arquitetura inspirada na natureza do Brasil. Grande parte de seus trabalhos no Atelier Marko Brajovic, fundado em 2006, têm como premissa o olhar menos mecanicista, mais orgânico e interconectado. “Meu processo como arquiteto foi na união dessas áreas, da biologia, da ciência, da filosofia, da pesquisa. Todas elas se tocam no entender da arquitetura como uma interface de conexão do ser humano com ele mesmo e com o ambiente ao seu redor”, diz a Gama Brajovic.

É entender a arquitetura como extensão da pele e conexão com a biosfera e nós mesmos

Para ele, não há outro caminho para a evolução da arquitetura senão pela observação do meio. “A biomimética e outras metodologias similares produzem estruturas resilientes, formas de pensar regenerativas, permitem que projeto evolua no tempo, que agregue novos materiais, mais inteligentes.” E tudo isso, de acordo com Brajovic, que há 15 anos estuda sobre o tema, transcende um pouco seu papel como arquiteto, vai além da profissão: “É entender a arquitetura como extensão da pele e conexão com a biosfera e nós mesmos. Precisamos deixar um espaço de experimentação, para que produzamos uma arquitetura que evolua nosso modo de morar, nos relacionar e nos integrar com os ecossistemas”.

Um dos trabalhos mais recentes do Atelier, a Casa Macaco, construída em Paraty e finalizada em 2020, tem toda a sua estrutura inspirada nas raízes escoras, uma especificidade da palmeira juçara. “Essa planta cria uma grande quantidade de raízes mais finas para se adaptar às diferentes topografias. Usei a mesma técnica na estrutura de suporte da Casa Macaco.” De acordo com Marko, ainda não dá para dizer que se trata da arquitetura biomimética de fato, mas sim de uma inspiração, já que houve uma parametrização profunda das espessuras exatas das raízes nos pilares da Casa.

S_biomimetica_repertorio_casa macaco

Rafael Medeiros/Gustavo Uemura

Dando vida à arquitetura

A arquiteta e urbanista Luana Lousa sempre foi meio inconformada com o modo tradicional de projetar e construir. “Já na faculdade buscava soluções que nunca tinha visto antes”, diz ela. “Se a gente parar para pensar, tudo à nossa volta performa muito pouco. Nossa roupa ainda é resíduo, a comida que comemos vem embalada em resíduo. E a natureza não produz resíduo, somos nós que trabalhamos mal o design como um todo, inclusive dentro da arquitetura.”

Dessa vontade de performar melhor com custo energético mínimo (uma premissa originalmente natural), surgiu em 2003 o projeto Arquitetura Viva. O grupo de arquitetos e designers é guiado pela permacultura — conceito que se define pelos princípios de cuidado com a terra e com as pessoas, além do uso responsável de recursos naturais e seus excedentes.

Nossa roupa ainda é resíduo, a comida que comemos vem embalada em resíduo. E a natureza não produz resíduo, somos nós que trabalhamos mal o design como um todo

“Nossa arquitetura é resultado do olhar para a vontade do cliente combinada às necessidades e características do terreno.” De acordo com Lousa, todo projeto é pensado a partir das condicionantes do ecossistema em que a construção será inserida, como umidade, regime de chuvas, topografia. Assim, o objetivo é gerar o menor impacto possível, bem-estar para os moradores do espaço e ainda fazer a economia local girar.

O projeto da Casa do Bosque, idealizado pelo Arquitetura Viva, é um exemplo de todo esse cuidado: utiliza iluminação e ventilação naturais, possui paisagismo funcional, taipa de pilão na fachada, técnicas de captação da água da chuva e telhado verde, além de pedras de refugo, que foram reaproveitadas. “Tentamos sempre pegar resíduos ou passivos ambientais e transformá-los em insumos dentro do nosso processo”, algo que a natureza faz com maestria.

S_biomimetica_repertorio_casa

Divulgação: Arquitetura Viva

Integração ao espaço de forma responsável

Em 1997, quando a GCP Arquitetura e Urbanismo foi fundada, já se falava em sustentabilidade e arquitetura verde, e entrava para o debate a importância de repensarmos como construímos. “Sempre tive muito interesse nessa questão, que coincidiu com a inovação dada aos projetos da GCP”, diz Sergio Coelho, sócio-fundador do escritório. “Gosto de usar o termo arquitetura responsável, mais do que arquitetura sustentável.” Assim, biomimética e bioinspiração não são aplicadas em todos os projetos — “falta tempo e investimento”, diz Coelho –, mas há uma constante preocupação com o entorno, e o cuidado no olhar para a natureza.

Em 2009, quando o tema era ainda menos difundido no Brasil, o GCP projetou a Arena Pantanal, um estádio pensado para a Copa do Mundo de 2014, sediada no Brasil. “Procuramos fazer uma série de soluções inteligentes, pensando fora da caixa, que já eram uma sementinha da biomimética.” A arena tem seus cantos abertos ao redor do gramado, justamente para que o vento possa circular — algo essencial em uma cidade tão quente quanto Cuiabá. Apesar do projeto não ser inspirado pela natureza nem mimetizar uma estratégia encontrada em organismos naturais, já é uma construção que dialoga melhor com o meio ambiente e considera suas características.

Tal metodologia foi aprimorada no mais recente projeto (que ainda não saiu do papel) da GCP: o Votu Hotel, na Bahia. Com apoio da bióloga e especialista em biomimética Alessandra Araujo, o escritório projetou uma construção com ventilação natural inspirada nos Cães de Pradaria, um mamífero roedor que faz suas tocas no solo com entradas e saídas de ar que permitem sua circulação e conforto térmico. No prédio principal do hotel, a cobertura da cozinha, além de ser uma laje jardim, atua como um trocador de calor que tem como referência um mecanismo encontrado em bicos de tucanos. “Essas coisas me fascinam, é um desafio que a natureza tem as respostas.”

S_biomimetica_repertorio_votu hotel

Divulgação: GCP Arquitetura & Urbanismo

União da natureza com o urbano

Uma das premissas do Natureza Urbana, empresa que faz planejamento estratégico e projetos nos campos da arquitetura e urbanismo, sempre foi trabalhar com sustentabilidade. “Procuramos tocar no tripé da sustentabilidade ambiental, por meio de materiais e soluções verdes; econômica, pensando no investimento e custo de manutenção justos; e social, que visa o público alvo mas também olha para possíveis impactos indiretos, no entorno da construção e como ela vai afetar populações vizinhas”, diz Pedro Lira, um dos arquitetos do grupo.

Por meio de projetos de grande escala e de uso público, eles atendem clientes governamentais, tanto dentro quanto fora do Brasil. “Entendemos primeiro a movimentação das pessoas, as áreas que precisam de cuidado ou que se traduzem em potenciais”, diz Lira. “Tem essa intenção de qualificar o contato das pessoas com o meio ambiente.”

Ainda em andamento, há um projeto do grupo que pretende requalificar um trecho da orla de Maceió. Ali, técnicas e mecanismos naturais mimetizados não são de fato aplicados, mas há uma bioinspiração. “Nosso olhar foi para os elementos no entorno da orla. Fizemos coberturas curvadas que se inspiram no movimento das ondas. Não é uma leitura técnica, foi mais uma observação do entorno para compor o conceito do projeto”, explica Lira.

S_biomimetica_repertorio_orla maceio

Divulgação: Natureza Urbana