Como a cooperação nos faz melhores — Gama Revista
Qual a sua natureza?
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Henri Matisse / Domínio público

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Reportagem

Um por todos, todos por um

Da primeira infância ao universo corporativo, a cooperação — e não apenas competição — tem papel fundamental nas nossas vidas e na construção de sociedades melhores

Larissa Linder 11 de Julho de 2021
Henri Matisse / Domínio público

Um por todos, todos por um

Da primeira infância ao universo corporativo, a cooperação — e não apenas competição — tem papel fundamental nas nossas vidas e na construção de sociedades melhores

Larissa Linder 11 de Julho de 2021

Aos quatro ou cinco meses de vida, um bebê humano começa a cooperar de forma consciente, ao interagir com a mãe durante a amamentação. Aos dois anos, os bebês passam a reagir por afinidade, prevendo movimentos dos seus pares, em uma interação que se torna mais complexa. A partir dos três anos, já são capazes de cooperar em um projeto comum, como construir um castelo de areia, mesmo quando não há incentivo de adultos.

Esse compilado de achados científicos faz parte do livro “Juntos”, do sociólogo norte-americano Richard Sennett, que se debruçou sobre o tema da cooperação. São muitas as evidências de que a cooperação está na natureza humana — e de tantos outros seres vivos — e faz parte do nosso desenvolvimento, ao lado da competição.

Há uma visão ainda difundida de que o natural entre animais, e sobretudo humanos, é a competição. A sociedade seria um aglomerado de indivíduos atomizados, de comportamento egoísta. É o axioma básico do mainstream do pensamento econômico. Mas as coisas mudaram na esfera acadêmica. “Ao longo do século XX, as ciências da cognição avançaram, mostrando que o comportamento humano não tem uma única característica de base”, explica o sociólogo e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) Arilson Favareto.

São muitas as evidências de que a cooperação está na natureza humana – e de tantos outros seres vivos – e faz parte do nosso desenvolvimento, ao lado da competição

É fácil imaginarmos motivos para que nossos ancestrais guerreassem ou competissem — por território e alimento, por exemplo. No entanto, para um grupo ter mais sucesso nessas guerras, ele precisava ser coeso. “No interior desses agrupamentos, o mais interessante era selecionar os mais cooperativos”, explica o economista e professor da Universidade de São Paulo (USP) e autor de “Amor à Ciência: ensaios sobre o materialismo darwiniano” (Senac), José Eli da Veiga.

O instinto humano mais forte é pela coesão social, afirma o neurocientista alemão Joachim Bauer, autor de “O Gene Cooperativo” (em tradução livre). A sobrevivência dos nossos ancestrais, o australopitheci e outros tipos de homo, dependeu da cooperação e da inteligência. “A natureza evoluiu como um enorme sistema interconectado e muito complexo. Para um único ser, há sempre o perigo e a necessidade de se proteger. De uma meta perspectiva, tudo na natureza é interdependente, tudo é cooperação.”

A natureza evoluiu como um enorme sistema interconectado e muito complexo. Tudo na natureza é interdependente, tudo é cooperação

Em resumo, a vida não é somente uma luta pela sobrevivência, mas uma cooperação pela sobrevivência. Uma das importantes contribuições para essa visão veio do professor de Harvard e diretor do Programa de Dinâmica Evolutiva, Martin Nowak, que há alguns anos trouxe à tona os vários mecanismos que promovem a cooperação entre seres vivos. Um deles, especialmente importante entre humanos, é levar em conta a reputação de quem está sendo ajudado, valorizando aqueles que mais se dispõem a ajudar os demais. Seria algo como “vou coçar as suas costas e alguém vai coçar as minhas”, em vez de “vou coçar as suas costas e você coça as minhas”, no exemplo do cientista.

Os diferentes mecanismos se aplicam a todos os tipos de organismos, de amebas a mamíferos, e até entre genes e componentes celulares. “Essa universalidade sugere que a cooperação tem sido uma força motriz na evolução da vida na Terra desde o início”, afirma em artigo.

A partir de modelos matemáticos, o professor de Harvard, assim como outros cientistas, passaram a mostrar que a seleção pode operar em vários níveis, de genes individuais a grupos de indivíduos relacionados a espécies inteiras. Em artigo publicado na Scientific American, ele resume: “Assim, os funcionários de uma empresa competem entre si para subir na hierarquia corporativa, mas também cooperam para garantir que o negócio tenha sucesso na competição com outras empresas”.

Trabalho em equipe?

Mesmo sendo consenso no mundo científico de que a cooperação é tão importante quanto a competição para a evolução das espécies, a história da luta solitária pela sobrevivência ainda persiste no senso comum, em especial em parte dos ambientes de trabalho.

Entre as empresas, apesar do discurso repetido constantemente de valorização do trabalho em equipe, a prática nem sempre é essa. “O que a gente está vivendo é um paradoxo porque as empresas pedem posturas colaborativas, mas premiam e estimulam a competitividade”, explica o pesquisador do Centro de Altos Estudos da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), psicólogo e consultor organizacional, Victor de la Paz.

Segundo o pesquisador, isso decorre de uma cultura estabelecida no Brasil de que o gestor tem que ser autoritário, no estilo “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Soma-se o fator autoritário um contexto de desigualdade social extrema, que acaba por reforçar as hierarquias e o territorialismo — quem tem privilégios, não quer perdê-los.

O que a gente está vivendo é um paradoxo porque as empresas pedem posturas colaborativas, mas premiam e estimulam a competitividade

A professora de prática de gestão da London Business School Lynda Gratton chegou à mesma conclusão que la Paz quanto à prática das empresas no que diz respeito à cooperação. Durante cinco anos, ela estudou trabalho colaborativo e mentalidade cooperativa em empresas como Nokia, Goldman Sachs e British Petroleum. Ao final, percebeu que há uma lacuna entre a retórica da cooperação e a realidade da competição improdutiva. Um dos fatores que mais minam a cooperação, afirma, é recompensar trabalhadores apenas individualmente. É uma ótima forma de ter baixa produtividade.

Para ela, valorizar a competição individual em detrimento da colaboração em uma empresa pode até ter resultados no curto prazo — o setor financeiro que o diga. No entanto, ao longo do tempo, tende a ser danoso para os funcionários e para a própria companhia, reduzindo a produtividade e pondo em risco inclusive a sustentabilidade do negócio.

Além disso, onde há mais cooperação, há também mais inovação, de forma geral. O espaço para o diálogo e a colaboração ajudam a trazer diversidade de opiniões. “Por exemplo, no setor de contabilidade tem alguém que tem uma deficiência, ele pode dar uma opinião sobre um produto sob a ótica dele, mas isso só acontece quando tem um clima de respeito”, exemplifica o pesquisador da ESPM.

Henri Matisse / Domínio público

O que nos faz cooperar ou não

Para criar um ambiente de trabalho de fato cooperativo, diz la Paz, é necessário que o gestor tenha uma mentalidade também cooperativa, e que estabeleça regras claras. “Se você percebe que há justiça, clareza de regras e um ambiente não tão pesado para trabalhar, você tende a cooperar.” E vice-versa.

A cooperação também demanda que haja algum tipo de liberdade ou autonomia. Na visão de Sennett, uma equipe em que várias pessoas trabalham juntas, mas só seguem ordens, não se traduz em cooperação, e acaba por ser uma forma muito improdutiva de trabalhar.

O autor de “O Pinguim e o Leviatã – como a cooperação triunfa sobre o autointeresse” (em tradução livre) e professor de Harvard, Yochai Benkler, acredita que a satisfação do reconhecimento mútuo, o respeito e a confiança são valores que favorecem a cooperação. Entre os exemplos, ele compara a indústria automobilística americana, em que o crescimento das disparidades salariais e as formas de trabalho que inibem iniciativas dos operários conduzem a resultados ruins; ao sistema japonês, no qual os executivos ganham menos, com menor disparidade portanto, e os trabalhadores da base têm voz, o que resulta em mais inovação.

Autoridade por parte dos que chefiam, confiança mútua e colaboração em momentos de crise são fatores que ajudam a fundamentar a cooperação em empresas

Sennett apresenta aspectos semelhantes: autoridade merecida por parte dos que chefiam (poder com legitimidade), confiança mútua e colaboração em momentos de crise são fatores que ajudam a fundamentar a cooperação em empresas e a tornar os ambientes mais civilizados.

Contudo, esses fatores são desenvolvidos essencialmente a longo prazo e dependem em parte da colaboração informal no dia a dia, o que coloca um empecilho à cooperação em tempos nos quais boa parte dos empregos são instáveis ou de curto prazo. Contribui, ainda, para dificultar a cooperação, o fato de que a dependência de outra pessoa é frequentemente considerada uma fraqueza nas sociedades ocidentais — nas quais o individualismo encontra terreno fértil.

A cooperação é afetada também pela desigualdade socioeconômica — que se agravou em países como os EUA nas últimas décadas — , e desde cedo. Quando uma criança chega à faixa etária dos dez anos, suas habilidades naturais em cooperar podem ser negativamente impactadas pela desigualdade.

Nesse contexto, o consumo — ou a incapacidade de consumir — tem um papel importante, porque tem potencial para gerar comparações e consequentes sentimentos de inferioridade que, por sua vez, afetam a disposição para cooperar.

Segundo relatório do Unicef, que avaliou o bem-estar de crianças e adolescentes em países da América do Norte e Europa, as sociedades mais desiguais apresentam maior incidência de comportamento abusivo entre crianças, enquanto nas mais igualitárias há maior predisposição das crianças para estudar em grupo.

Cooperar pra quê?

Se a cooperação é importante para ter ambientes de trabalho mais produtivos e inovadores, além de mais agradáveis, ela é definitiva para o desenvolvimento de um território, seja ele uma cidade, uma região de um estado ou mesmo um país.

Uma das perguntas de quem se dedica a estudar o desenvolvimento territorial é por que alguns lugares conseguem obter mais coesão e bem-estar, enquanto outros, menos? A resposta mais aceita é que esses maiores níveis de bem-estar e coesão não podem ser explicados por recursos naturais, disponibilidade de infraestrutura ou tamanho da população, segundo Favareto.

O que explicaria seriam a qualidade das instituições, que abarcam regras formais e informais, divididas em dois tipos pelo economista Daron Acemoglu: extrativas — patrimonialismo e patriarcalismo, por exemplo — e inclusivas.

“O que vários autores nos dizem é que as instituições inclusivas, em geral, têm origem em coalizões amplas e diversificadas de atores”, diz o professor da UFABC. Se um território é comandado por uma cooperação ampla de forças sociais, haverá interesses plurais, que levarão a regras benéficas para uma pluralidade de pessoas.

Por trás dessa coalizão ampla, estão fatores como o acesso a recursos naturais. No Brasil, o exemplo mais nítido é o acesso a terra. Em locais onde houve maior concentração, as instituições extrativas são mais fortes e inibem a cooperação e o desenvolvimento. Mesmo que haja riqueza, ela é para poucos.

Dali em diante, torna-se um ciclo virtuoso ou vicioso. A economia mais diversificada gera formas de cooperação. “O empresário local depende do consumidor local, você vai criando formas de solidariedade orgânica que dá origem a um conjunto de interações sociais. Já numa sociedade simples, você não tem nem muitas oportunidades de interação, porque se tornou uma estrutura econômica mais rígida.”

Extrapolando o nível territorial, na pauta global a cooperação atingiu um nível de urgência nos últimos anos. Sem a colaboração de diferentes países, não será possível reduzir o ritmo da mudança climática. Durante a pandemia de covid-19, também vimos o papel fundamental do trabalho conjunto entre cientistas de todo o mundo. Nossa capacidade de cooperar tem sido posta à prova, talvez como nunca antes