Como voltar a ter prazer depois da pandemia? — Gama Revista
Prazer, qual o seu?
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Annie Spratt / Unsplash

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Semana

Como voltar a ter prazer

A pandemia tirou de nós momentos singelos de alegria. Qual é o impacto disso no equilíbrio mental e como substituir o que foi perdido de um jeito saudável

Cristina Nabuco 23 de Maio de 2021

Como voltar a ter prazer

Cristina Nabuco 23 de Maio de 2021
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A pandemia tirou de nós momentos singelos de alegria. Qual é o impacto disso no equilíbrio mental e como substituir o que foi perdido de um jeito saudável

“Felicidade é um agora que não tem pressa nenhuma”, define a escritora e roteirista Adriana Falcão no livro “Mania de Explicação” (Editora Salamandra, 2001). Como os grandes acontecimentos que despertam essa sensação são eventuais, “para alívio diário, foram-nos dadas as pequenas alegrias”, registra o escritor alemão Hermann Hesse, no ensaio “Pequenas Alegrias”, de 1905. Para o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 1946, desfrutar em doses homeopáticas permite uma sensação mais duradoura de plenitude e satisfação. O escritor, diplomata e médico Guimarães Rosa também reconheceu a existência desses momentos singelos no conto “Barra da Vaca”, do livro “Tutameia”, de 1967: “Felicidade se acha em horinhas de descuido”.

Há, porém, uma tendência a minimizar esses prazeres como se fossem um tipo secundário de felicidade. Ledo engano. “Pequenos prazeres fazem parte de uma vida mais plena e rica”, diz a Gama o psicólogo Christian Kristensen, professor de Pós-graduação em Psicologia da PUC do Rio Grande do Sul. O almoço de domingo com a família, o churrasco com amigos, o café com os colegas no meio do expediente ou o happy hour depois, a ida ao restaurante ou ao cinema, o passeio na praça com os filhos, sair para dançar, ouvir música ou andar na rua sem preocupação, segundo o psicólogo, tudo isso dá uma espécie de fôlego para encarar a próxima semana. Ajuda a ter mais recursos para lidar com situações de estresse.

Sentimos falta do toque, do abraço, do beijo. Perdeu-se o olho no olho nos encontros mediados por telas e os sorrisos ficaram escondidos por máscaras, dificultando a conexão

“Somos como um balde que vai se enchendo. De vez em quando precisa abrir a torneirinha para aliviar a pressão.” E esse equilíbrio foi abalado pela pandemia. “Houve aumento do estresse e redução dos recursos internos e externos que nos possibilitam lidar com os estressores”, explica Kristensen, que está participando de duas grandes pesquisas sobre o impacto da covid-19 na saúde mental. A primeira acompanha 15 mil pessoas do Brasil inteiro; a segunda, financiada pelo Ministério da Saúde, vai proporcionar 7000 horas de teleatendimento a profissionais da Saúde que atuam no SUS.

Muitos prazeres que nos foram tirados resultam da interação social. O distanciamento social gerou novos hábitos e rotinas que afetaram o convívio. “Somos o animal mais social do planeta, qualquer que seja o critério. Por isso, não é de espantar que a maior parte da nossa felicidade provenha dos relacionamentos sociais”, diz o psicólogo e pesquisador Daniel Gilbert, da Universidade Harvard (EUA), numa entrevista ao jornal El Pais, em 2016. “Sentimos falta do toque, do abraço, do beijo. Perdeu-se o olho no olho nos encontros mediados por telas e os sorrisos ficaram escondidos por máscaras, dificultando a conexão”, diz a Gama a psicóloga Marina Vasconcellos, com especialização em Psicodrama Terapêutico pelo Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, e Terapia Familiar e de Casal pela Unifesp. Na avaliação do escritor Ignácio de Loyola Brandão, “nossa vida deixou de ser o que era para se tornar um contínuo adaptar-se, angustiar-se, solucionar problemas que nunca existiram, exacerbar solidões e traumas, adquirir novos hábitos (…) E chorar nossos mortos, chorar”, assinala na matéria publicada no jornal O Estado de São Paulo em março de 2021, quando se completou 1 ano de pandemia

Caminhos possíveis

“Cada um reage conforme os alicerces construídos ao longo da vida”, esclarece o médico psiquiatra Higor Caldato, formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. As pessoas que já estavam fragilizadas ou apresentavam vulnerabilidade genética para ansiedade ou depressão podem ter encontrado na pandemia um gatilho que as levou a uma espiral de negatividade. “Aí fica difícil substituir pequenos prazeres. Não se tem energia para cultivar qualquer prazer.”

Para compensar a falta das pequenas alegrias, muitos recorrem a estratégias que talvez não sejam as melhores, como extrapolar na comida, beliscar o dia todo, aumentar o uso do álcool e de outras substâncias lícitas ou ilícitas, exagerar o consumo de notícias ou o tempo de exposição às redes sociais, fazer compras compulsivas, alerta Kristensen. Em pesquisa feita pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) que ouviu mais de 23 mil pessoas de 33 países, 42% dos brasileiros relataram maior consumo de álcool durante a pandemia. Sobretudo os jovens apresentaram episódios de beber pesado – consumir mais de 60 gramas de álcool puro (cerca de cinco bebidas alcoólicas padrão) em pelo menos uma ocasião nos 30 dias anteriores. A presença de quadros graves de ansiedade aumentou em 73% a chance de maior frequência no consumo.

As pessoas que já estavam fragilizadas podem ter encontrado na pandemia um gatilho que as levou a uma espiral de negatividade

“Pessoas que não faziam o uso de álcool todo dia passaram a fazer, quem bebia somente à noite também começou a beber durante o almoço, alguns aumentaram o consumo sem ser uma dependência, mas de forma preocupante para um gestor de saúde pública”, exemplifica o médico psiquiatra Arthur Guerra, fundador do Grupo de Estudos de Álcool e Drogas (GREA) do Instituto de Psiquiatria do Hospital da Clinicas da Faculdade de Medicina da USP, numa entrevista ao Jornal da USP. De acordo com o especialista, o álcool tem sido usado como “remédio” para relaxar ou substituto para a falta de conexão pessoal, já que sob efeito dele, o mundo parece mais leve e mais fácil. Só que a sensação é passageira. Além de não diminuir o estresse, o consumo excessivo aumenta os sintomas de pânico e transtornos de ansiedade, depressão, e o risco de violência doméstica e de acidentes de trânsito. “Os quadros compulsivos em geral são mediados pela impulsividade. Trazem um prazer fugaz, seguido de culpa e prejuízos, que vão do ganho de peso ao endividamento”, acrescenta Caldato.

Por outro lado, “quem já cuidava da saúde física, mental e espiritual, cultivava bons laços familiares e de amizade possui uma espécie de cinturão de proteção emocional para lidar melhor com essas circunstâncias desafiadoras”, constata o psiquiatra. Teve gente que no isolamento social se reencontrou consigo, com sua família e com seus valores amortecidos pelo cotidiano. Teve oportunidade de refletir, passou a valorizar mais os pequenos prazeres, saiu do piloto automático em que vivia. Com o home-office, sem as horas perdidas no trânsito e as viagens constantes a trabalho, começou a sobrar tempo para fazer exercícios físicos e se dedicar a outras atividades que viviam sendo adiadas. Depois do bum inicial do delivery de comida, passou a cozinhar mais em casa. Melhorou a qualidade de vida.

Os quadros compulsivos em geral são mediados pela impulsividade. Trazem um prazer fugaz, seguido de culpa e prejuízos, que vão do ganho de peso ao endividamento

“Os casais e as famílias estão redescobrindo prazer na oportunidade única de um convívio mais intenso, enquanto outros estão entrando em parafuso com toda a sujeira que saiu debaixo do tapete”, conta Marina Vasconcellos. Houve aumento de divórcio e violência doméstica, mas muita gente com doenças psiquiátricas finalmente foi se tratar. “Ninguém nasceu para conviver 24horas por dia, nem casais nem pais e filhos. Não é normal. As famílias tiveram que se reorganizar para conviver em harmonia com crianças e filhos adolescentes ou adultos. Definir espaços, rearranjar rotinas. Foi difícil! Um teste de tolerância, paciência, respeito, aceitação, solidariedade. As relações ficaram mais honestas e verdadeiras”, diz a psicóloga.

Melhor do que se imagina

Embora existam prognósticos sobre um futuro distópico, talvez ele não seja tão sombrio. Em geral as pessoas supervalorizam o quanto serão infelizes diante da adversidade, observa o psicólogo Daniel Gilbert, que tem realizado estudos rigorosos sobre felicidade publicados nas melhores revistas científicas e também no seu livro “O Que nos Faz Felizes” (Editora Campus, 2006). De acordo com o cientista, no mundo há os que se abatem perante as mínimas dificuldades e os que são resilientes diante das piores tragédias. Ao contrário do que se imagina, a imensa maioria dos seres humanos pertence ao segundo grupo e apresenta uma capacidade de adaptação que pode ser considerada uma espécie de “sistema imunológico psicológico”: “75% das pessoas voltam a ser felizes dois anos depois do pior trauma que você possa imaginar”, informa Gilbert.

É preciso aceitar a ansiedade do momento e lidar com a frustração pelos prazeres perdidos, entendendo que tudo isso vai passar, salienta Higor Caldato. “Não tem problema ficar um pouco triste, ansioso e com raiva às vezes. O problema é a intensidade, quando estas emoções começam a nos congelar, afetando o trabalho e as relações. Aí é preciso procurar ajuda.”

Também vale a pena se livrar do sentimento de culpa por estar numa situação privilegiada. A culpa pode levar à espiral de negatividade. “Não dá para comparar ordens diferentes de sofrimento”, adverte Caldato. Mas é possível exercer a solidariedade, contribuindo com causas humanitárias, sugere Marina Vasconcellos.

Sugestões práticas

Felicidade é aqui e agora. Não dá para ficar esperando a pandemia terminar ou a vida voltar ao normal. “Não quero incentivar ninguém a ser Poliana [a brincar de contente], mas a focar no que é possível hoje. Não pode fazer a viagem que gostaria, nem ver aquela peça de teatro? Dê espaço à criatividade e deixe que sua individualidade se manifeste”, propõe Caldato. Ler um livro, reservar 15 minutos para saborear um café, organizar os documentos, o guarda-roupa, as fotos antigas, fazer meditação, praticar yoga, aprender a fazer investimentos financeiros. “Parece clichê, porque a gente tem a mentalidade de querer a volta ao que era antes. Aqueles prazeres antigos podem ficar em stand-by enquanto procuramos novos prazeres nas coisas simples do cotidiano. As novidades estimulam a liberação de dopamina, o neurotransmissor do prazer, que ativa o sistema de recompensa no cérebro e nos leva a querer repetir aquela sensação boa”.

O consumo excessivo de açúcar em produtos industrializados também favorece picos de dopamina, por isso algumas pessoas que controlam rigidamente a dieta durante a semana perdem o controle no fim de semana, abusando de pizza e fast foods. Os exercícios físicos também ativam a síntese desse neurotransmissor. “Quando a pessoa está bem emocionalmente, ela busca a recompensa com o pé no chão, direcionando para situações que trazem bem-estar, não prejuízos à saúde”, pondera Caldato.

Aqueles prazeres antigos podem ficar em stand-by enquanto procuramos novos prazeres nas coisas simples do cotidiano

Aprender a cozinhar, saborear uma comida bem feita, criar o hábito de leitura, maratonar séries, fazer jardinagem, aprender a tocar um instrumento ou a falar uma segunda língua, cuidar de plantas e de seu bicho de estimação, caminhar, bater papo com os filhos, ver filme, fazer uma aula de dança virtual. Tudo isso pode ser fonte de alegria. Estar fisicamente distante não impede de ter interação social com as pessoas de quem você gosta e que gostam de você, avisa Kristensen. “Vale a pena buscar apoio social seja por meio de ligações telefônicas ou videochamadas. Isolamento não obriga a se desconectar dos outros”, orienta o psicólogo. A tecnologia pode ser uma aliada.

Outras medidas que ajudam a manter o equilíbrio emocional é estruturar a rotina, ter horários regulares para o trabalho remoto, a higiene, as refeições. Não passar o dia de pijamas. Fazer atividade física regular, seja on-line em casa ou caminhando ao ar livre, em praças ou ruas arborizadas, de máscara e mantendo o distanciamento. Melhorar a qualidade do sono (evitando álcool e estimulantes como café à tardinha e à noite, preferindo alimentos leves, mantendo horários fixos para dormir e acordar, não usando eletrônicos na cama). Desenvolver atividades que acalmam sua mente, como alongamentos, exercícios respiratórios, meditação. E, finalmente, adequar suas expectativas ao contexto. “Não estamos funcionando em condições normais de pressão e temperatura, portanto, não fique se cobrando em relação à performance e produtividade, sob pena de se desgastar”, recomenda Kristensen.

Uma boa fonte de inspiração pode ser o “Livro do Sensacional”, o primeiro dos sete livros sobre pequenos prazeres escritos pelo canadense Neil Pasricha, diretor do Institute for Global Happiness. Lançado no Brasil em 2011 (Editora Maestro), esteve na lista de best-sellers do jornal The New York Times. Pasricha destaca momentos corriqueiros de felicidade que, na correria diária, deixamos escapar, como cheiro de padaria, usar uma roupa que acabou de vir da lavagem, estourar plástico bolha, comer o último pedaço da sobremesa deixada na geladeira, achar dinheiro que você nem se lembrava de ter guardado. O próprio autor é um exemplo de superação. Após enfrentar dois tsunamis na vida pessoal – a mulher o abandonou e um amigo cometeu suicídio – ele decidiu focar em coisas positivas, pequenos prazeres que ia descrevendo no blog 1000awe.something.com, que começou em 2008 e atualizou até maio de 2020. O blog deu origem aos livros e a um aplicativo.

Tudo na vida tem sentido, ensina a Psicologia Positiva, criada pelo psicólogo Martin Seligman, professor da Universidade da Pensilvânia (EUA), nos anos 1990. Diante de uma crise podemos ser frágeis (quebrar), resilientes (dobram-se, mas voltam à posição original) ou antifrágeis (caem e se levantam melhores do que antes). “Não adianta se lamentar”, assegura Marina Vasconcellos. “Esta é a chance de desenvolver potenciais que nem sabíamos que tínhamos. Afinal, todo mundo está aprendendo”.