A memória enquanto preservação da cultura indígena — Gama Revista
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Uma turma

Pela memória da cultura indígena

Gama reúne diretores, escritores, influenciadores digitais, ativistas e artistas que produzem e compartilham trabalhos em defesa da memória cultural e ancestral de povos originários

Ana Elisa Faria 25 de Junho de 2023
Reprodução

Pela memória da cultura indígena

Gama reúne diretores, escritores, influenciadores digitais, ativistas e artistas que produzem e compartilham trabalhos em defesa da memória cultural e ancestral de povos originários

Ana Elisa Faria 25 de Junho de 2023

“Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui”, diz o filósofo, ambientalista e escritor Ailton Krenak no livro “Futuro Ancestral” (Companhia das Letras, 2022). Na publicação, o autor indígena argumenta sobre a importância de, hoje, buscarmos a sabedoria dos povos originários do presente e do passado para conseguirmos sobreviver no amanhã caótico que está se encaminhando.

A cultura é uma das aliadas nessa luta por preservar conhecimentos, tradições, crenças, línguas, padrões comportamentais, modos de vida. A cultura, como produção artística, é também um meio de disseminação de todo esse conjunto.

Pensando nisso, Gama reuniu diretores, escritores, influenciadores digitais, ativistas e artistas, indígenas e não indígenas, que produzem e compartilham trabalhos, como filmes, peças, livros e conteúdos para as redes sociais, em defesa da memória cultural e ancestral de povos originários.

  • “É muito importante a gente registrar memórias, cânticos, a nossa própria cultura”

    Beka Saw, 20, jovem liderança munduruku, da terra Sawré Muybu. É cofundadora do coletivo audiovisual Daje Kapap Eypi e secretária da Associação Indígena Pariri

    Com uma câmera na mão — um drone e um celular também — e muitas ideias na cabeça, três garotas munduruku tocam o coletivo audiovisual Daje Kapap Eypi, fundado em 2014 para registrar e divulgar as constantes invasões de madeireiros e garimpeiros ilegais na Terra Indígena Sawré Muybu, localizada às margens do rio Tapajós.

    Beka Saw é uma das fundadoras do projeto. Ela vive por ali e trabalha como secretária da Associação Indígena Pariri, que luta pelos direitos indígenas e pela melhoria da qualidade de vida das aldeias do Médio Tapajós, no Pará, a partir do fortalecimento de valores culturais, tradicionais e ancestrais de sustentabilidade.

    Além de produzir curtas-metragens, o Daje Kapap Eypi acompanha e grava o que ocorre no território e nos eventos promovidos pela organização, como encontros de lideranças, reuniões e festas. Para Beka, essas filmagens do dia a dia são fundamentais, principalmente, para os jovens, que acabam se afastando da cultura ancestral. 

    “É muito importante a gente registrar essas memórias, as histórias do nosso povo, os cânticos, a nossa própria cultura, e o que está acontecendo no momento; mostrar as lutas das lideranças mais velhas. Conforme os avanços tecnológicos chegam, as novas gerações passam mais tempo no celular, na internet, e não sentam para ouvir os mais velhos, por exemplo”, conta.

    E é por meio da tecnologia que Beka conquista esses jovens espectadores — seja com filmes ou conteúdos feitos para as redes sociais ou para apps de mensagens. Ela diz que é preciso usar as mesmas ferramentas — e não nega a importância delas, pelo contrário — e, por isso, compartilha, via grupos de WhatsApp, imagens, áudios e vídeos para que os mais novos acompanhem o que está acontecendo.

    Com os curtas, Beka e as companheiras do Daje Kapap Eypi, Aldira Akai e Rilcelia Akai, passam mensagens mais combativas e pontuais sobre a grande causa munduruku, a proteção territorial da extração de madeira e do garimpo, atividades que, além dos danos ambientais, como a poluição e a contaminação do rio e do solo, também impactam os aspectos socioculturais porque, como num círculo vicioso, destroem todo o tecido social do entorno, impedindo a realização de festas, práticas e rituais indígenas.   

    No documentário “Mensageiras da Amazônia” (2022), o trio apresenta as ações dos munduruku para proteger e defender o território de invasores, sobretudo madeireiros e garimpeiros. Em “Autodemarcação Já!” (2023), o foco é a demarcação dos territórios indígenas. Sobre os trabalhos, que unem cultura e ativismo, Beka relata que se coloca em risco, mas segue resistindo, como fizeram os seus ancestrais.

    “Muitas pessoas não acreditam na gente, mas somos resistência. Tudo o que falamos são palavras que vieram dos nossos avós, são recados. Eu me sinto porta-voz do meu povo por levar os recados de tudo o que os mais velhos vêm passando dentro do território há anos. As ameaças, a tristeza de ver a devastação, a tristeza de presenciar o Tapajós, que é um rio sagrado para os munduruku, ser poluído”, desabafa. 

    Por isso, ela acredita que é obrigação da juventude alertar, comunicar e acompanhar o que as lideranças dizem. “E a gente tem o dever de continuar a luta para manter o nosso território para as futuras gerações. Já são mais de 523 anos de lutas, de geração em geração.”

    Beka também participa do longa “Escute: A Terra Foi Rasgada” (2023), de Cassandra Mello e Fred Rahal, que reúne três povos pressionados pela destruição que o garimpo ilegal causa: os yanomami, os munduruku e os kayapó. No filme, lideranças abordam os impactos da exploração da floresta e dos rios, do crescimento da criminalidade e da violência, assim como as ameaças às tradições, à cultura e à espiritualidade desses povos indígenas.

  • “A cooperação é fundamental para a juventude, que vem passando por um processo de aculturação”

    Luiz Bolognesi, 57, roteirista e diretor de filmes como “A Última Floresta” e “Ex-Pajé”

    Luiz Bolognesi não é indígena, mas um aliado da causa há muitos anos, mais precisamente desde o colégio, quando leu “A Sociedade contra o Estado” (Ubu Editora, 2017), de Pierre Clastres. No livro, o autor fazia uma investigação para mostrar como a ausência do Estado na vida de povos originários da floresta não os fazia viver numa situação de inferioridade histórica, pelo contrário, “havia vários dispositivos e mecanismos sociais de recusa do surgimento do Estado. Ou seja, a sociedade indígena seria uma espécie de sociedade anarquista que deu certo”, detalha. “Foi aí que começou a minha jornada.”

    O segundo passo nesse sentido foi cursar ciências sociais na Universidade de São Paulo. Depois da faculdade, veio um passo mais profundo: trabalhando um ano como jornalista na Folha de S.Paulo, ele decidiu ser professor numa comunidade de pescadores que atendia os pataxó em Caraíva, na Bahia. “Convivi por quase dois anos com as famílias pataxó, o que aprofundou não apenas uma troca intelectual, mas um conhecimento mais íntimo e uma admiração pelo modo de pensar, pelo modo de agir e pelo modo como os indígenas lidam com conflitos”, conta.

    A vida seguiu, Bolognesi se tornou roteirista e diretor de cinema, mas a afeição pelos indígenas continuou e os caminhos percorridos pelo cineasta na carreira se cruzaram com muitas aldeias. Desde a década de 1990, durante o Cine Mambembe, projeto de cinema itinerante feito em parceria com a diretora Laís Bodanzky que passou por muitas cidades do interior do país, incluindo comunidades indígenas.

    Antes de assinar projetos próprios relacionados à temática indígena, Luiz Bolognesi trabalhou em obras como “Terra Vermelha” (2008), de Marco Bechis. Para escrever o roteiro do filme, uma ficção, ele conviveu dez semanas com os guarani-kaiowá.

    A animação “Uma História de Amor e Fúria” (2013), que marcou a estreia de Bolognesi na direção, reconta a história do Brasil por meio de um índio tupinambá imortal. O longa seguinte, “Ex-Pajé” (2018), é uma mistura de documentário e ficção sobre um ex-xamã que foi obrigado a renunciar quando seu povo foi evangelizado no Brasil. 

    O trabalho mais recente do diretor no cinema é “A Última Floresta” (2021), que acompanha o yanomami Davi Kopenawa tentando manter os espíritos da floresta e as tradições vivos, enquanto a chegada do garimpo traz morte e doenças à comunidade. Para realizar a obra, Bolognesi passou, no total, cerca de seis semanas com os yanomami e dividiu a escrita do roteiro com Kopenawa para “não invadir um lugar de fala ou fazer qualquer apropriação cultural”. 

    “Cheguei com o projeto e o Davi declinou, ele não queria fazer um filme-denúncia sobre o garimpo. Ele disse: ‘Toda vez que vocês vêm aqui [referindo-se aos jornalistas], mostram a floresta destruída e o índio doente. Mas você e a sua civilização é que estão doentes. Nós estamos fortes e eu quero fazer um filme que, dentro de um contexto de beleza e de potência dos yanomami, dos xamãs e da floresta, a gente fale do garimpo e da destruição da floresta. Mas o filme não vai ser sobre isso’. Então, eu aprendo com eles quando faço os filmes. E é com essa troca que fico checando se estou fazendo a coisa certa”, relata.

    Bolognesi também comenta sobre a importância da realização de filmes em parceria com os indígenas. Ele fala que o próprio Kopenawa salienta que “esse tipo de cooperação artística é fundamental para a juventude, que vem passando por um processo de aculturação e perda dos valores culturais”. “O Davi diz que é importante que os jovens indígenas vejam essas obras porque eles acabam acreditando que só o que o branco faz é importante. Ou seja, o filme do branco é importante. Então, se tem um filme yanomami, eles pensam: ‘nós somos importantes.

  • “Aquelas leituras me permitiram entender melhor minha identidade indígena”

    Trudruá Dorrico, 32, escritora macuxi, doutora em teoria da literatura, mestre em estudos literários e pesquisadora de literatura indígena

    Movida por uma onda feminista de incentivo à leitura de obras escritas por mulheres, a pesquisadora macuxi Trudruá Dorrico criou em 2019, em parceria com Jamille Anahata, um perfil no Instagram dedicado à divulgação de títulos de autoras indígenas, o Leia Mulheres Indígenas.

    A curiosidade de Trudruá pela temática, no entanto, é mais antiga. Desde pequena, sempre se interessou por livros — mas lembra que não havia literatura indígena na escola. Cultivando o gosto pelas palavras até a vida adulta, graduou-se em Letras pela Universidade Federal de Rondônia e foi avançando na academia pela mesma área. Foi no mestrado, estudando performance e autoria indígena, que ela teve o primeiro contato com essa literatura. Daí em diante, esse virou o seu foco de estudo.

    No início do doutorado, a partir da influência do escritor Daniel Munduruku, ela conseguiu perceber que todos aqueles autores e autoras faziam parte de um movimento literário indígena. “Eu sabia da existência daqueles nomes, mas não conseguia enxergar a totalidade da produção”, lembra. “Fui me dando conta de que havia um sistema de literatura indígena em voga no Brasil e comecei a escrever artigos científicos numa espécie de curadoria. Então, analisei a obra de Márcia Kambeba, Eliane Potiguara, Auritha Tabajara, para mostrar o volume de autores, homens e mulheres, que estavam escrevendo e publicando.”

    Com a vida acadêmica produtiva, Trudruá passou a realizar palestras sobre aquele movimento que ela também estava conhecendo e que a ajudaram a se autoconhecer mais. “Aquelas leituras todas falavam comigo de alguma forma. Elas também me permitiram entender melhor minha identidade indígena”, revela.

    Pouco depois, por sentir que estava restrita a uma “bolha científica e acadêmica”, ela decidiu extrapolar a universidade e chegou às redes sociais. “Eu produzia conhecimento, porém, não conseguia chegar num espaço cultural amplo, não via esse movimento indígena nesses espaços. Assim, comecei a fazer a divulgação no Instagram”, diz. O feminismo e os ecos de outras campanhas que incentivam a leitura de autoras deram o mote da página. O projeto deu tão certo que hoje o perfil já soma 17 mil seguidores.

  • “A minha cultura e a minha ancestralidade são a mais pura arte”

    Zahy Tentehar, 33, guajajara, atriz, artista visual e poeta

    Nascida na reserva Cana Brava, no Maranhão, filha da pajé Elzira e do seu Quinca, um homem não indígena, a guajajara Zahy Tentehar sempre se viu artista. “Eu nasci e me criei em meio à arte. A minha cultura e a minha ancestralidade são a mais pura arte. Mas a arte comercializada, essa que precisei desenvolver, tive contato aos 20 anos, quando cheguei no Rio de Janeiro”, lembra. 

    Quando desembarcou ali após três dias em um ônibus, numa viagem que surgiu depois de conversas com primos que viviam na Aldeia Maracanã, ela se deslumbrou com o que viu e, logo, entrou para o ativismo indígena palestrando em escolas sobre a cultura do seu povo e frequentando manifestações contra a demolição da aldeia urbana. Fotos e vídeos de Zahy nos protestos rodaram a internet e, assim, a jovem, que nunca havia atuado, foi chamada para participar de um teste para a série “Dois Irmãos” (2017), baseada no romance homônimo de Milton Hatoum. Foi o primeiro trabalho da guajajara na TV.

    De lá para cá, não parou mais — e ainda ampliou as experiências para o cinema, o streaming e o teatro, além de escrever poesias e criar videoinstalações. Entre os filmes, estão títulos como “Não Devore Meu Coração” (2017), de Felipe Bragança, e “Uýra: A Retomada da Floresta” (2022), de Juliana Curi. Das peças, destaca-se “Macunaíma: Uma Rapsódia Musical” (2019), de Bia Lessa. Na segunda temporada da série “Cidade Invisível” (2021-), da Netflix, Zahy vive a “cobra” Maria Caninana.

    A multiartista conta que todas essas vivências culturais reforçaram a sua ancestralidade indígena. “A nossa ancestralidade é atemporal. A minha, por exemplo, foi se adaptando às novas civilizações a que foi imposta, vestiu-se com novas roupagens para re-existir. E, através das minhas expressões artísticas, ela ganhou ainda mais força. O corpo da gente é memória. Então, minhas expressões artísticas nada mais são do que o resultado disso.” 

    Recentemente, Zahy Tentehar interpretou Ceci na montagem atualizada de “O Guarani”, ópera composta por Carlos Gomes em 1870, que esteve em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo em maio. Apesar de ampla participação indígena — desde a concepção à escolha da orquestra e do elenco —, o espetáculo suscitou debates sobre o colonialismo e críticas a respeito de mudanças na obra. A própria Zahy, segundo explica, ainda tem “muitas questões” a respeito da encenação.

    “De alguma maneira, foi estabelecido um diálogo com o que não é mais aceitável nos tempos atuais. Não é só sobre ter indígenas no palco, na criação e na concepção, mas tem a ver com algo maior. Precisamos questionar a obra como um todo, um clássico que não pode ser modificado é como um ato genocida de intelectuais conservadores. Não dá para manter conservada uma obra como essa, que não dialoga com o tempo presente. O mundo está vivendo uma transformação, assim como tudo o que há nele”, pontua.