Naomi Oreskes: "Devemos confiar na ciência" — Gama Revista
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'Devemos confiar na ciência por ela ser crítica e aceitar seus erros'

Historiadora de Harvard e ferrenha defensora da ciência, Naomi Oreskes fala desde sobre terraplanistas até a importância de educar a população sobre como se chega a um consenso científico

Leonardo Neiva 03 de Abril de 2022

‘Devemos confiar na ciência por ela ser crítica e aceitar seus erros’

Leonardo Neiva 03 de Abril de 2022
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Historiadora de Harvard e ferrenha defensora da ciência, Naomi Oreskes fala desde sobre terraplanistas até a importância de educar a população sobre como se chega a um consenso científico

Podemos confiar no que afirmam os cientistas que dizem que as vacinas funcionam? Será que é seguro acreditar que os gases de efeito estufa estão se acumulando na atmosfera, aquecendo o planeta, elevando o nível dos mares e causando graves consequências climáticas? E até quando os dentistas nos dizem que devemos usar fio dental, será que há mesmo pesquisas confiáveis que comprovem o que estão falando?

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Naomi Oreskes  Claudio Cambon

É com alguns desses questionamentos que a escritora, professora da Universidade de Harvard e historiadora da ciência Naomi Oreskes abre um de seus livros mais recentes, com o econômico título “Why Trust Science?” [Por que confiar na ciência?], que no entanto traduz em um dos maiores dilemas atuais envolvendo uma desconfiança generalizada naquilo que os cientistas dizem. “Cada uma dessas questões tem sido colocada em dúvida na imprensa popular e na internet, muitas vezes por pessoas que afirmam ser cientistas”, ela aponta no primeiro parágrafo da obra. “Mas será que conseguimos achar sentido em meio a essas alegações conflitantes?”

 Divulgação

Se depender da autora, a resposta para a pergunta que ela mesma faz é um curto e sonoro sim. Um dos maiores nomes da pesquisa climática mundial, Oreskes, no entanto, acabou ganhando fama pela defesa apaixonada do fazer científico, que vem desenvolvendo há mais de uma década em livros, aulas, palestras e entrevistas.

Havia algo suspeito porque os cientistas que negavam as mudanças climáticas também iam contra os danos causados por pesticidas e pelo tabaco

Em 2010, ao lado do também historiador científico Erik M. Conway, da NASA, ela publicou o livro “Merchants of Doubt” [ainda sem uma versão em português, traduzido livremente como mercadores da dúvida]. A obra foi o resultado de uma longa e profunda investigação sobre cientistas conceituados ligados à política e à indústria, que participaram de campanhas para negar e colocar em dúvida pesquisas como as que mostravam que o tabaco causava câncer ou que apontavam as pegadas humanas do aquecimento global.

“Eu e o Erik sabíamos desde o início que algo suspeito estava acontecendo porque os principais cientistas que negavam as mudanças climáticas também iam contra coisas como o buraco na camada de ozônio ou os danos causados por pesticidas e pelo tabaco. Eram todos físicos, sem experiência em nenhuma dessas áreas”, conta Oreskes em entrevista a Gama.

O livro acabou se transformando até em documentário. Desde sua publicação, a pesquisadora assumiu uma verdadeira cruzada em defesa da ciência. “O que faço de melhor é pesquisar, aprender, escrever e me comunicar. Foi o que tentei usar como arma para expor tudo isso, para que as pessoas pudessem entender melhor e se motivar a descobrir maneiras de corrigir esses problemas.”

Em “Why Trust Science?”, ela sai a favor não do método científico, que considera sujeito a falhas, mas da capacidade dos cientistas de assumir erros e aceitar novas teorias. Para a historiadora, o que torna a ciência realmente confiável é o fato de ser construída a milhões de mãos, com todo artigo ou descoberta sendo submetido a extensas revisões de vários outros cientistas. Assim, o conhecimento seria construído sobre os ombros de outros pesquisadores que vieram antes, um processo que já dura mais de 400 anos e a principal razão porque a ciência consegue alcançar resultados efetivos.

Cética de uma quebra de confiança entre o público contemporâneo e a ciência, ela fala com Gama sobre a importância de educar a população sobre como funciona o consenso científico, a visibilidade dada aos terraplanistas e o trabalho que dá recuperar a confiança depois que a dúvida já foi plantada.

A coisa mais importante que os cientistas fazem é ser autocríticos

  • G |Existe uma impressão de que a ciência está sendo cada vez menos valorizada. Ela já esteve tão em baixa quanto agora? Com exceção talvez da época de Copérnico ou Galileu…

    Naomi Oreskes |

    Essa é a grande pergunta. As alegações de que há uma crise geral de confiança não são apoiadas por dados. Na maioria dos países, as pessoas ainda expressam um alto grau de confiança nos cientistas e na ciência como instituição. Nos EUA, 70% das pessoas dizem confiar na ciência, e esse número tem sido surpreendentemente estável. As pessoas pensam que tudo está desmoronando nos últimos anos, mas pouca coisa mudou desde a década de 1970. Não há evidências de uma grande crise de confiança, se com isso queremos dizer que a maioria das pessoas rejeita a ciência. Por outro lado, os 30% que não confiam na ciência são o problema, porque essas pessoas são importantes. Em alguns casos, são pessoas poderosas, como presidentes, líderes de corporações, pessoas influentes, editores do Wall Street Journal…

  • G |Por que então temos essa percepção de que a ciência não é mais respeitada?

    NO |

    Bem, há muitas razões. Francamente, a mídia desempenhou um grande papel em promover essa ideia. Houve tantas manchetes sobre isso nos últimos dois anos. A maioria delas, na minha opinião, está incorreta. Em alguns casos, foram prejudiciais, dando uma impressão errada sobre o que está acontecendo. Uma reportagem sobre uma crise tem muito mais chance de chamar a atenção do que uma sobre o fato de estar tudo bem. A mídia vai sempre atrás da crise.

  • G |Foi o que aconteceu com a enorme atenção dada a movimentos absurdos como o terraplanismo?

    NO |

    Outra parte importante da história são as mídias sociais. Pessoas assim existiam desde o século 17 ou talvez até antes, mas as redes os tornaram muito mais visíveis. Esse aumento de visibilidade foi confundido com aumento de importância. E é muito fácil escrever uma história ridicularizando os terraplanistas porque isso nos faz sentir superiores. Só que zombar não ajuda. Eu não me importo com os terraplanistas, mas sim com pessoas que rejeitam as vacinas ou são contra políticas climáticas. E, se quero entender por que eles têm as opiniões que têm, tirar sarro não vai funcionar. Essa noção é algo que está em falta em grande parte da mídia.

  • G |Sob o risco de copiar o título do seu livro e também soar abrangente demais: mas, afinal, por que devemos confiar na ciência?

    NO |

    A resposta curta é: porque funciona. As estruturas básicas da investigação científica estão em vigor há cerca de 400 anos, mais do que a maioria das instituições que conhecemos, com exceção da Igreja Católica. E ela tem produzido conhecimento confiável em todas as áreas, que usamos desde para fabricar vacinas, construir tecnologias que tornam nossa vida mais interessante ou melhor ou para compreender por que a queima de combustíveis fósseis está causando o agravamento de furacões e inundações. São tantas as coisas que entendemos graças à ciência moderna… E como a ciência faz isso? O argumento do meu livro é que não é por causa do método científico. A coisa mais importante que os cientistas fazem é ser autocríticos. As comunidades científicas instituem políticas para questionar afirmações, sujeitá-las a um duro exame crítico e modificá-las diante de novas evidências. Somente depois que passam por esse escrutínio podemos dizer que algo é um fato. Então a base para confiar na ciência é a existência desse processo longo e difícil. Em sua melhor versão, os cientistas estão dispostos a abraçar esse processo, aceitar críticas e dizer: Ei, eu nunca tinha pensado nisso, mas você pode estar certo.

É muito difícil combater a desinformação sem uma compreensão de por que a pessoa pensa aquilo

  • G |A maioria das pessoas não faz ideia de como funciona a ciência ou como se chega a um consenso científico. Essa é uma das razões que afastam a população?

    NO |

    Uma das coisas que identificamos nos ataques à ciência é que as pessoas deturpam o processo científico. Se um cientista admite que uma coisa estava errada, argumentam que então você não deve acreditar em nada do que ele diz. Eu penso o contrário. Devemos confiar na ciência justamente por ela ser crítica e aceitar seus erros. Dá para acreditar porque os cientistas se mostram humildes diante de evidências e dados. Claro que muitos não agem assim. Alguns são inclusive muito arrogantes, inflexíveis e falam como se soubessem tudo. Isso pode contribuir para criar uma impressão de falta de humildade. Eu argumento que os cientistas não devem ser idiotas. Eles precisam ser honestos sobre o que fazem e até quando cometem erros. A ciência é um processo de aprendizagem, de descoberta. Quando descobrimos coisas novas, significa que vamos ter que repensar as antigas. Não é nada para se envergonhar, e sim para se orgulhar.

  • G |Há muitos médicos que são contra as vacinas. Como você explica isso?

    NO |

    Uma parte da resposta é que os médicos não são cientistas, eles têm uma formação muito orientada para a prática, e não para a pesquisa. A maioria é bastante ignorante sobre como a ciência opera. Portanto, eles não estão necessariamente bem equipados para julgar informações científicas, principalmente se elas mudam rapidamente, como foi na pandemia. Quando você se forma em medicina, recebe um treinamento científico básico e rapidamente passa para a prática clínica. Agora você interage principalmente com os pacientes. Algum deles pode dizer que viu na internet que a vacina foi feita pelo Bill Gates para nos rastrear com microchips. É de se esperar que a maioria dos médicos vai dizer que isso não é verdade e explicar porquê. Mas muitos não estão preparados para responder esse tipo de pergunta e, acima de tudo, estão muito ocupados. Com sorte, seu médico vai passar 15 minutos com você. Nesse tempo, não dá para descobrir nada sobre quem você é e por que pensa essas coisas. É muito difícil combater a desinformação sem uma compreensão de por que a pessoa pensa aquilo. Então, diria que a prática médica coloca esses profissionais numa posição muito difícil quando se trata de resolver complexidades sociais e culturais envolvidas em coisas como a rejeição às vacinas.

  • G |No livro “Merchants of Doubt”, você fala sobre como cientistas conceituados foram influenciados pela política e a indústria para enganar o público sobre temas como tabaco e o aquecimento global. Essa é uma prática que acontece hoje?

    NO |

    Certamente. Uma das coisas que vemos na ciência climática é que a grande maioria dos cientistas faz um bom trabalho, tem a mente aberta e está atenta às evidências. Mas há outros que são motivados pela política, dinheiro ou ideologias. Um sinal é que muitas vezes não são especialistas na área sobre a qual falam. Eu e o Erik [Conway] sabíamos desde o início que algo suspeito estava acontecendo porque os principais cientistas que negavam as mudanças climáticas também iam contra coisas como o buraco na camada de ozônio ou os danos causados por pesticidas e pelo tabaco. Eram todos físicos, sem experiência em nenhuma dessas áreas. Eram pessoas inteligentes, com ótimas formações, mas não cientistas do clima ou oncologistas e, no entanto, se apresentavam como autoridades nessas áreas. O que mostramos no livro foi que eles eram motivados por ideologias políticas.

O ceticismo é uma virtude, toda ciência depende de um ceticismo saudável

  • G |E é impossível eliminar totalmente a ideologia da ciência, certo? Sempre vai haver algum viés…

    NO |

    Isso, a ideia de que é possível apagar essas questões não é realista. O que podemos fazer é deixar claro que temos opiniões, mas que nossas atividades têm práticas projetadas para garantir que isso não vai definir a forma como interpreto os dados. Mais uma vez, é por isso que a estrutura científica é tão importante, porque permite tentar ser objetivo. Obviamente, quase todos os cientistas tentam ser objetivos, mas ninguém consegue totalmente. Por isso submetemos nosso trabalho à crítica dos outros. Quando faço isso, não são meus amigos quem faz as revisões. O que se espera é que o trabalho se mantenha de pé mesmo quando examinado por pessoas com visões políticas muito diferentes. Isso também é um argumento a favor da diversidade na ciência. Quanto mais perspectivas diferentes você puder trazer, maior a chance de não sucumbirmos ao pensamento de grupo ou a uma pressão para que todos enxerguem as coisas do mesmo ponto de vista.

  • G |A gente ouve o tempo todo que pesquisas e estudos são todos comprados pelo governo, pela mídia, por políticos… Criar teorias da conspiração e questionar as autoridades sempre vão ser coisas que atraem parte da população?

    NO |

    Por isso os ataques à ciência têm sido tão prejudiciais, porque se cria uma situação em que muitas pessoas desconfiam de tudo. Por outro lado, se você confia em tudo, então não confia em nada. Aí as pessoas ficam sem saber em quem acreditar ou no que pensar. Isso cria uma espécie de paralisia, que beneficia alguns, como a indústria de combustíveis fósseis ou como foi com a do tabaco. É uma das consequências mais prejudiciais das campanhas de desinformação que vimos. O ceticismo é uma virtude, toda ciência depende de um ceticismo saudável. Quando reviso um artigo, procuro o que há de errado com ele, então estou sempre lendo com uma visão meio negativa, mas uma negatividade que ajuda. Só que, quando chega a um ponto em que não acredito em nada porque acho que todo o sistema está corrompido, o ceticismo se torna corrosivo. Meu trabalho é ajudar as pessoas a distinguir entre o ceticismo saudável e o niilismo.

  • G |As ciências humanas costumam ser menos levadas a sério do que as exatas?

    NO |

    Eu nem gosto de falar em ciências exatas, porque nada no mundo real é exato. Prefiro falar em ciências físicas e sociais. E não tenho dúvida de que as ciências sociais não são levadas a sério, o que é uma parte importante do problema. Por isso escrevo bastante sobre questões sociais. A menos que gastemos muito mais tempo e esforço entendendo as dimensões sociais do problema, vamos conviver com ele por muito tempo.

  • G |Como estudiosa, o que te moveu a focar seu trabalho na defesa da ciência?

    NO |

    A raiva [risos]. Na verdade, foi um acidente. Há 20 anos, eu estava escrevendo um livro sobre a história da oceanografia, que inclusive só fui publicar recentemente. Ao escrevê-lo, me deparei com a história de “Merchants of Doubt”. Na mesma época, conheci o Erik Conway, que, de forma independente, também se deparou com a mesma história. Começamos a conversar e percebemos que era algo importante e significativo sobre o qual ninguém mais estava falando. Então, quando comecei a aprender e descobrir coisas, fiquei com raiva. Percebi que essa história precisava ser contada, as pessoas precisavam saber o que estava acontecendo. E devemos mesmo ficar bravos com isso. Um dos meus lemas na vida é transformar raiva em ação. As pessoas dizem que é ruim ficar com raiva, mas eu não acredito nisso. A raiva é a resposta apropriada para atividades nefastas e desonestas. Só que, sem ação, ela não serve para nada. E, no meu caso, essa ação é a erudição. Sou uma estudiosa, uma professora. O que faço de melhor é pesquisar, aprender, escrever e me comunicar. Foi o que tentei usar como arma para expor tudo isso, para que as pessoas pudessem entender melhor e se motivar a descobrir maneiras de corrigir esses problemas.