Como reduzir o consumo de agrotóxicos — Gama Revista
Por que comemos mal?
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Mariana Simonetti

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Repertório

Agrotóxicos: é possível desviar do veneno?

A tendência no mundo é produzir cada vez mais alimentos menos dependentes de agrotóxicos, mas o Brasil segue na contramão. Gama aponta caminhos para tentar se proteger dessa realidade

Cristina Nabuco 01 de Maio de 2022
Mariana Simonetti

Agrotóxicos: é possível desviar do veneno?

A tendência no mundo é produzir cada vez mais alimentos menos dependentes de agrotóxicos, mas o Brasil segue na contramão. Gama aponta caminhos para tentar se proteger dessa realidade

Cristina Nabuco 01 de Maio de 2022

Enquanto as maiores economias do mundo se empenham em reduzir o uso de fertilizantes e pesticidas químicos em prol da saúde da população e do ambiente, nosso país vai na direção oposta. Em 2017, o Brasil consumia 20% do agrotóxico comercializado no mundo, de acordo com o Atlas Geográfico do Uso de Agrotóxicos no Brasil e Conexões com a União Europeia, organizado por Larissa Bombardi, da Faculdade de Geografia da Universidade de São Paulo, a partir de dados oficiais. De lá para cá, esse mercado se expandiu. Nos últimos três anos, foram liberados 1500 agrotóxicos por aqui, uma média de 500 liberações por ano, quase cinco vezes mais do que nos anos anteriores, constatou a avaliação técnica realizada pela engenheira química Sonia Corina Hess, professora da Universidade Federal de Santa Catarina.

Os 552 agrotóxicos registrados entre 01 de janeiro e 31 de dezembro de 2021 incluíram 129 ingredientes ativos, dos quais 52 (40,3%) foram banidos ou não têm registro na União Europeia. “O Brasil ‘abriu a porteira’ para agrotóxicos perigosos”, afirma o engenheiro agrônomo Luiz Cláudio Meirelles, do Grupo de Trabalho Agrotóxicos e Saúde da Fiocruz. Muitos dos aprovados são à base de glifosato, um dos herbicidas mais empregados nas lavouras nacionais, que foi classificado em 2019 pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC) como provável carcinógeno para humanos. “O país está trabalhando na contramão da saúde pública”, diz o engenheiro.

O Brasil ‘abriu a porteira’ para agrotóxicos perigosos

Um projeto de lei que tramitava no Congresso Nacional desde 2002 visando flexibilizar as normas de adoção de agrotóxicos foi aprovado pela Câmara em regime de urgência na noite de 9 de fevereiro e aguarda votação no Senado. O PL nº 6299/2002 retira atribuições de órgãos regulatórios como Anvisa, do Ministério da Saúde, e Ibama, do Ministério do Meio Ambiente, concentrando o poder de decisão sobre a adoção dos agrotóxicos no Ministério da Agricultura, Pesca e Abastecimento, e enfraquece estados e municípios nas ações de vigilância e comunicação dos resultados desse monitoramento.

Defendido por deputados da bancada ruralista e representantes do agronegócio, foi batizado de Pacote do Veneno e condenado por instituições de pesquisa, sociedades científicas, órgãos técnicos das áreas de saúde e ambiente e iniciativas da sociedade civil, como a plataforma #ChegaDeAgrotóxicos, que recolheu mais de 1.700.000 assinaturas. A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) e a Associação Brasileira de Agroecologia (ABA-Agroecologia) decidiram atualizar o Dossiê Contra o Pacote do Veneno e em Defesa da Vida, lançado originariamente em 2018, para oferecer subsídios contrários à aprovação da PL.

O Grupo de Trabalho Agrotóxicos e Saúde da Fiocruz divulgou um comunicado sobre o impacto nocivo do pacote na saúde pública e os “graves retrocessos que irá impor à sociedade”. Diz o texto: “O PL não permitirá a aprovação de produtos mais modernos e de menor toxicidade. Ao contrário, o Brasil será muito mais permissivo para o registro de agentes mais tóxicos e obsoletos, tornando-se mercado preferencial para esses produtos, uma vez que grande parte já foi proibida em outros países exatamente por serem muito tóxicos”. Resume Meirelles: “É a destruição da estrutura regulatória para jogar mais veneno no nosso solo, no ar, na água e nos alimentos”.

Quem sai perdendo

“Os mais vulneráveis são os pequenos agricultores, com baixa escolaridade e renda, pouco suporte técnico e treinamento para manipular substâncias perigosas e falta de equipamentos de proteção individual”, esclarece o pesquisador Rafael Buralli, mestre e doutor em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo. Moradores vizinhos às grandes plantações também estão mais expostos, sobretudo porque no Brasil ainda se adota a pulverização aérea. Mas não só. O Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos (CDC) concluiu que toda a população está suscetível à exposições múltiplas a agrotóxicos por meio do consumo de alimentos e água contaminada.

Resíduos das substâncias pulverizadas ou levadas pela água da chuva contaminam rios, represas, poços profundos, lençóis freáticos e podem demorar décadas para se degradarem. No Mapa da Água, divulgado em março pelo Repórter Brasil, 763 cidades (1 em cada 4 das que testaram a qualidade da água entre 2018 e 2020) apresentavam produtos químicos acima do permitido: 50 tinham pesticidas além do limite e algumas exibiam um coquetel com mais de 20 tipos diferentes de agrotóxicos.

Fora isso, 19 dos pesticidas monitorados estão proibidos na União Europeia. O levantamento é traçado a partir dos resultados de testes feitos por empresas ou órgãos de abastecimento e enviados ao Siságua (Sistema de Informação de Vigilância da Água para Consumo Humano) do Ministério da Saúde. Segundo Buralli, as doses de resíduos de agrotóxicos permitidas na água da torneira são bem mais altas no Brasil do que na União Europeia. Além disso, nossas normas consideram apenas um ingrediente ativo, não o efeito da interação entre diferentes compostos, como preveem os europeus.

Qual é a causa racional para continuar usando se já se sabe que faz mal? Não tem

Quanto aos alimentos, a atenção começa com frutas, verduras e legumes comercializados in natura. Em 2001 foi criado o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA), da Anvisa, para monitorar a presença dessas substâncias em amostras de hortifrútis coletados em supermercados. Em 2010, o pimentão foi campeão de agrotóxicos dentre os 18 alimentos avaliados. Das 146 amostras, 134 (91,7%) continham resíduos de produtos não permitidos para essa cultura e também quantidades acima do limite de agrotóxicos autorizados. Mas a atualização mais recente do site do programa data de 2020 e o último relatório tem quase cinco anos – o que faz supor que o acompanhamento regular foi descontinuado. O Relatório 2017/2018 traz a análise de 14 alimentos. Em 122 das 270 amostras houve detecção de resíduos: 28% estavam no limite permitido; 23% tinham alguma inconformidade. “Nossos limites excedem os de outros países em até 10 mil vezes. Será que o nosso organismo é muito mais resistente do que europeu?”, questiona Buralli.

Nem os alimentos industrializados escapam. O estudo Tem Veneno neste Pacote, feito pelo Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC) em 2021, verificou se havia resíduos de agrotóxicos em 27 alimentos ultraprocessados, divididos em oito categorias: refrigerantes, sucos de caixinha, bebidas de soja, cereais matinais, salgadinhos, biscoitos de água e sal, biscoitos recheados e pães de trigo. Seis categorias continham resíduos de agrotóxicos; 14 (51,8%) possuíam resíduos de glifosato; e 16 produtos (59,3%) apresentavam pelo menos um tipo de agrotóxico – em um biscoito de água e sal foram achados resíduos de até sete agrotóxicos. Mais um motivo para reduzir o consumo desses alimentos, já considerados nocivos devido ao excesso de açúcar, sal, gordura e aditivos químicos para conferir cor, aroma, sabor.

Onde mora o perigo

Dependendo do produto, do tempo de exposição e da quantidade absorvida pelo corpo, a exposição a esses compostos químicos pode causar intoxicação aguda, que provoca irritação na pele, náuseas, tontura, vômitos, diarreia, dificuldade para respirar e nos casos mais graves, pode evoluir para morte, explica o pesquisador Rafael Buralli. Segundo o Dossiê da ABRASCO, entre 2010 e 2019 foram registrados no Brasil 11.031 casos de intoxicações exógenas por agrotóxicos, com crescimento de 233% no período, saltando de 1.903 casos em 2010 para 6.345 em 2019. Porém, os especialistas estimam que o número seja maior: para cada notificação deve haver 50 casos não registrados.

A exposição aos agrotóxicos também pode causar efeitos crônicos, como esquecimentos, irritabilidade, ansiedade, diminuição da atenção, distúrbios do sono, dor de cabeça, fadiga, tremores, além de doenças cardiovasculares, renais, gastrintestinais, endócrinas, respiratórias e imunológicas e diversos tipos de câncer. Existe, ainda, risco de má formação congênita e abortamento. “Como os sintomas demoram anos para se manifestar, é difícil estabelecer relação de causa e efeito”, pondera Buralli. Havendo contato com resíduos, essa associação é ainda mais difícil, dada a dificuldade de quantificar o que a pessoa consome e a combinação de substâncias vindas de fontes diversas. “É como a parte escondida de um iceberg”, compara o pesquisador.

Haveria, então, limite seguro para uso dessas substâncias? Meirelles é taxativo: “Não, agrotóxico é veneno. O ideal é não utilizar substâncias potencialmente perigosas”. É o caso do herbicita paraquat, banido da União Europeia em 2003. Após avaliar o produto e constatar ação danosa sobre o sistema nervoso – há suspeita de relação com a Doença de Parkinson –, em 2017 a Anvisa determinou que seria proibido, mas concedeu aos agricultores prazo de três anos até setembro de 2020, quando a venda foi interrompida. Daí autorizou o uso do produto em estoque até julho de 2021 com a justificativa de minimizar os impactos econômicos da medida, considerando que o herbicida era eficiente e de baixo custo. Indaga Buralli: “Qual é a causa racional para continuar usando se já se sabe que faz mal? Não tem”.

Alternativa possível

O grande argumento usado em defesa dos agrotóxicos é que eles são necessários para alimentar toda a população. Mas os números demonstram que não é bem assim. Larissa Bombardi constatou que 52% dos agrotóxicos utilizados no Brasil são aplicados em plantações de soja; 10%, milho; 10%, cana-de-açúcar; e 7%, algodão. Assim, 79% dos agrotóxicos são empregados nessas quatro culturas agrícolas que se destinam à exportação. “A maior parte dessa produção vai alimentar porco na China. Vira comodity que enriquece grandes produtores”, diz Meirelles “Enquanto isso, 70% dos alimentos consumidos aqui vêm da pequena e média produção”. Segundo o engenheiro, é preciso questionar o modelo brasileiro centrado na monocultura, na mecanização intensa e no uso massivo de agrotóxicos e investir em sistemas alimentares que dependam cada vez menos de pesticidas e fertilizantes químicos.

A transição de nossa agropecuária para formas de produção mais seguras à saúde e ao meio ambiente está prevista no PL 6670/2016, que institui a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos (PNARA), e também tramita Congresso. “Temos que deixar de utilizar produtos mais tóxicos que estão proibidos em outros países, acabar com a pulverização aérea, dar preferência a defensivos biológicos e acompanhar de modo mais eficiente a qualidade da água e dos alimentos”, propõe Buralli. Outra medida importante, segundo Meirelles, é rever as autorizações “ad aeternum”. Países, como a Austrália, preveem revisão da autorização de comercialização a cada cinco anos porque nesse período podem surgir pesquisas apontando riscos antes desconhecidos.

Enquanto isso o que fazer

Apesar do perigo apresentado, ainda vale a pena ter na base da sua dieta alimentos in natura e minimamente processados e evitar o consumo de ultraprocessados, conforme as recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira. “O benefício de comer alimentos de origem vegetal ainda supera o risco”, garante a nutricionista Lara Natacci, idealizadora e mantenedora do site dietnet.com.br, no ar desde 1997, e presidente da ABENUSM (Associação Brasileira de Nutrição em Saúde Mental), em fase de criação. “A Organização Mundial da Saúde recomenda cinco porções diárias de frutas, verduras e legumes. Não é tão difícil se você incluir vegetal no almoço e no jantar e acrescentar frutas nos intervalos ou nos lanches” O mínimo preconizado são 400g/dia. O brasileiro consome apenas 156g/dia.

Para comer mais com segurança:

1. Dar preferência a alimentos orgânicos ou de base agroecológica, cultivados sem o uso de agrotóxicos ou adubos químicos. Este não é o único benefício. Segundo a nutricionista, estudos encontraram mais nutrientes nos alimentos orgânicos, em comparação aos convencionais, caso da vitamina C, o ferro, magnésio, potássio, além dos compostos antioxidantes, como betacaroteno e vitamina E, em maior quantidade.

2. Se houver dificuldade de acesso a esses produtos em função do custo nos supermercados ou lojas especializadas, Lara Natacci sugere conhecer a CSA Brasil – Comunidade que Sustenta a Agricultura, que incentiva a agricultura familiar e a distribuição de orgânicos dos produtores direto para o consumidor, por um preço mais justo. O site apresenta um mapa para localizar uma comunidade mais perto de sua casa.

3. Vale também visitar as feiras orgânicas. O Idec elaborou um Mapa de Feiras Orgânicas que abrange todo o país, região por região, com endereços e dicas de como chegar. Só no Sudeste são 405, no Nordeste, 244.

4. Em vários locais já existem serviços de deliveries de orgânicos criados por cooperativas de agricultores familiares, inclusive com a opção de assinatura, que dá direito a receber toda semana uma cesta com os produtos selecionados por eles ou de sua preferência. Pesquise na sua cidade.

5. Comprar de pequenos produtores locais ou em hortas comunitárias em vez de grandes varejistas aumenta as chances de conseguir produtos mais frescos, com menos agrotóxicos e a custo menor. Em geral, não são pulverizados pós colheita, já que não precisam percorrer longas distâncias até o destino final.

6. Preferir frutas e hortaliças da estação. Recebem menos fertilizantes e defensivos do que as cultivadas fora da época. Segundo Natacci, como crescem num clima mais favorável, a produção é mais fácil. Por isso são mais baratas e há mais variedade.

7. A propósito, é importante variar o cardápio para receber nutrientes diferentes em vez de consumir sempre os mesmos alimentos, das mesmas fontes, e, sendo um produto convencional, com os mesmos tipos de agrotóxicos.

8. Desconfiar de produtos bonitos ou grandes demais já foi uma orientação válida. Hoje, não mais. O melhoramento genético pode estimular o crescimento de produtos muito apetitosos, explica a nutricionista. O cultivo com produtos biológicos também evoluiu. “Já comi morango orgânico maravilhoso. Depende do produtor. Não é o agrotóxico que faz nascer bonito, nem a falta dele que torna o produto menos atraente”.

9. Como lavar? O simples ato de tirar a casca elimina boa parte dos agrotóxicos. Se não puder, para diminuir os resíduos superficiais, lave com água corrente e friccione com escova e detergente biodegradável.

10. E quanto ao resíduo que ficou na polpa do alimento? Parte dos agrotóxicos pode ser eliminada deixando o produto de molho por 20 minutos, em uma solução de vinagre (100 ml para 1 litro de água), bicabornato de sódio, hipoclorito de sódio ou água sanitária (a mesma medida vale para os três: 1 colher de sopa para 1 litro de água). Depois lave bem em água corrente. Atenção: o vinagre não mata bactérias, assim pode ser necessário complementar a higienização com um dos três produtos desinfetantes.

11. Cozinhar os alimentos ajuda. Uma parcela dos químicos sai na água do cozimento. O congelamento e a refrigeração também degradam parte do agrotóxico.

12. Ao programar o cardápio, escolha fontes de fibras (frutas, verduras e grãos integrais) e probióticos (iogurtes), que estimulam as bactérias benéficas do intestino a produzirem o muco que serve de barreira para a entrada de agentes químicos na corrente sanguínea. Também coloque na mesa frutas, hortaliças e sementes repletas de antioxidantes (como maçã, cebola, chá verde e castanhas). Quem desintoxica o corpo é o fígado, diz a nutricionista. Suas enzimas precisam de nutrientes para transformar agentes tóxicos, em geral armazenados ou diluídos na gordura, em compostos hidrossolúveis a serem eliminados pelos rins. Beber muita água também colabora nesse processo.

13. É fundamental saber de onde vem a água que abastece a sua casa. Peça, através dos canais de atendimento ao consumidor, dados para a concessionária da sua cidade. Acompanhe as análises periódicas. Os resultados devem ser públicos.

14. E finalmente, mas não menos importante, fazer pressão para que o Senado não aprove a PL do Veneno, destacam Buralli e Meirelles. Cobrar das autoridades o direito à alimentação adequada e água de qualidade e o acesso à informação sobre ambos. Dar resposta nas urnas, elegendo políticos preocupados com a saúde humana e do ambiente. O voto é o instrumento mais eficaz para mudar essa história.