Como a política está ligada à alimentação — Gama Revista
Por que comemos mal?
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Mariana Simonetti

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Reportagem

Quanto tem de política num prato de comida?

Do aumento da liberação de agrotóxicos ao projeto de lei que flexibiliza seu uso na agricultura, no Brasil não tem como falar de alimentação sem pensar em política

Leonardo Neiva 01 de Maio de 2022

Quanto tem de política num prato de comida?

Leonardo Neiva 01 de Maio de 2022
Mariana Simonetti

Do aumento da liberação de agrotóxicos ao projeto de lei que flexibiliza seu uso na agricultura, no Brasil não tem como falar de alimentação sem pensar em política

Embora tenha chamado atenção nos últimos meses devido à aprovação do projeto de lei 6299/2002, apelidado de “Pacote do Veneno” – que flexibiliza as regras para o registro de agrotóxicos no Brasil e já vinha circulando na Câmara dos Deputados há 20 anos –, o uso em larga escala dessas substâncias nas lavouras nacionais está longe de ser novidade. De 2019 a 2021, período que coincide com os três primeiros anos do governo Bolsonaro, o país bateu recorde atrás de recorde em números de agrotóxicos aprovados por aqui – foram 1.560 novos ingredientes registrados, numa média de 1,4 substâncias por dia –, com 44% dos 475 agrotóxicos liberados em 2019 compostos por produtos banidos na Europa e em outras partes do mundo.

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Pode até parecer uma ideia distante pensar que a política ou os representantes que elegemos a cada quatro anos afetam diretamente até aquilo que chega ao nosso prato todos os dias. Logo no primeiro ano na presidência, no entanto, Bolsonaro já demonstrou uma retórica pró-agrotóxicos e também acelerou ainda mais o ritmo de liberação dessas substâncias no país. Com a perda de poder da Anvisa e do Ibama no processo de registro dos defensivos, que deverá ficar principalmente nas mãos do Ministério da Agricultura caso a nova lei seja aprovada, a visão de instituições e ativistas críticos do projeto é que ainda mais agrotóxicos devem ser liberados na agricultura brasileira nos próximos anos, e sem a devida segurança sanitária ou ambiental.

No fim do dia, o que conta é o voto, a capacidade de agradar ou não os eleitores

Para Rodrigo Afonso, diretor-executivo da Ação da Cidadania, ONG que luta contra a fome no Brasil, a mudança de postura do governo escancaradamente a favor do agronegócio vem desde o início do governo Michel Temer, em 2016 — ano em que o ritmo de liberação de defensivos agrícolas por aqui começou a crescer. “De um lado, você teve toda a destruição da estrutura de segurança alimentar brasileira, desde a produção do pequeno produtor a programas de auxílio e distribuição de alimentos. Do outro, teve o poder do agronegócio, com todo seu lobby e força, fazendo com que um governo totalmente alinhado com ele introduza políticas que o beneficiem.”

Na opinião do nutricionista do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), Rafael Arantes, o Brasil vem ensaiando se tornar um “celeiro de agrotóxicos”, virando a verdadeira menina dos olhos das empresas que fabricam esses ingredientes, como uma alternativa para escoar uma produção que não pode mais ser vendida no resto do mundo, onde muitos deles são proibidos. O mesmo Idec também identificou em 2021 traços de agrotóxicos em 27 alimentos ultraprocessados, entre eles salgadinhos, cereais, sucos de soja, bisnaguinhas e biscoitos. Segundo Afonso, um único pacote de um biscoito de chocolate bastante popular hoje contém substâncias de oito agrotóxicos diferentes, incluindo o glifosato, proibido na Europa e classificado por órgãos internacionais como possivelmente cancerígeno.

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Entre as principais justificativas de grupos ligados ao agronegócio para diminuir o prazo de avaliação de agrotóxicos no Brasil, mudança também sugerida no projeto de lei que hoje tramita no Senado, está uma suposta morosidade do sistema atual, que levaria até nove anos para aprovar uma nova substância. O PL, por sua vez, estabelece a possibilidade de um registro provisório e um tempo máximo de análise de até dois anos para novos produtos. O diretor técnico adjunto da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Reginaldo Minaré, também defende que a lei, caso aprovada, não deve tirar a Anvisa e o Ibama dos processos de avaliação, já que ambos ainda realizariam análises de risco. Segundo o representante da confederação, um processo mais ágil aumenta a concorrência entre os agrotóxicos existentes, o que deve reduzir os preços para os agricultores brasileiros.

Afonso aponta, no entanto, que a maior fatia dos que devem utilizar esses agrotóxicos são os grandes produtores, não os pequenos, e que uma enorme quantidade da produção deve ser usada para exportação, e não para consumo interno. “Então todo esse modelo introduzido pelo PL não é para levar mais comida ao nosso prato ou reduzir os preços dos alimentos. Ele gera exclusivamente um lucro maior para essas empresas.”

Panela de pressão

Em abril, a ONG Ação da Cidadania colocou no ar o site Comida Sem Veneno, cuja principal função é acompanhar e mapear os votos de todos os senadores da Casa em relação ao projeto de lei dos agrotóxicos. Até o momento, a conta está em seis a favor e 16 contra — seriam necessários ao menos mais 27 para derrubar a proposta. Outros 59 parlamentares não responderam nem que sim nem que não até o momento. “Nossa ideia é que as pessoas saibam quem são os senadores a favor do agronegócio e dos agrotóxicos. Ali é branco ou preto, não existe uma linha cinzenta, porque o PL traz coisas que mudam radicalmente a política de agrotóxicos para uma abertura nunca antes vista”, declara o diretor-executivo.

Nessa lista, estão incluídos também os emails e telefones oficiais desses políticos e até uma sugestão de texto que pode ser enviado para os indecisos ou favoráveis ao projeto, com a intenção de pressioná-los a votar contra. “A gente sabe que, no fim do dia, o que conta é o voto, a capacidade de agradar ou não os eleitores. Então essa pressão é essencial neste momento.”

Um dos que já se manifestaram contra é o senador Rogério Carvalho (PT-SE). Em março, o parlamentar chegou a protocolar um projeto de lei para lidar com os possíveis efeitos negativos da nova legislação, caso seja aprovada. Além de obrigar os produtores de agrotóxicos a renovar o registro dessas substâncias a cada dez anos, e a cada cinco para produtos de alta toxicidade, o texto prevê a participação da Anvisa e do Ibama nessa reavaliação. O político ainda faz críticas pesadas ao texto do projeto 6299. “É como colocar o controle de queimadas no Ministério da Agricultura em vez do Ibama. O governo é absolutamente irresponsável e se coloca contra a vida.”

Ninguém come roupa

Embora os agrotóxicos quase sempre apareçam conectados ao cultivo de alimentos, eles estão presentes em peso até mesmo numa indústria como a da moda. Segundo o estudo “Fios da Moda”, de 2021, o algodão é a quarta cultura que mais consome agrotóxicos no país, chegando a 10% do total de defensivos aplicados por aqui. A designer e diretora-executiva da organização Moda Verde, Yamê Reis, afirma que a questão dos agrotóxicos na indústria de roupas acaba sendo menos visível devido a uma tradição história de greenwashing no setor e à ação dos grandes produtores, que sempre fizeram campanha para tratar o algodão como um produto sustentável. “Essa campanha faz com que a moda não questione nem se sinta afetada por esse uso, como se não fosse um problema dela. Ninguém está comendo a roupa, então tudo bem.”

As escolhas dos governantes podem afetar diretamente a qualidade e saúde do solo, dos alimentos e até das nossas roupas

Só que, embora não haja estudos que comprovem se existem efeitos negativos para a saúde de usar roupas feitas com algodão plantado com agrotóxico, a principal preocupação nesse caso é o impacto para os trabalhadores rurais e para o ambiente e a biodiversidade, afirma Reis. “O Brasil, ao contrário da União Europeia ou dos EUA, não tem leis de regulamentação muito claras em relação ao volume que pode ser aplicado e ao limite do que pode prejudicar a saúde.”

Até por isso, uma das principais reivindicações da campanha Moda Sem Veneno, da qual ela participa, é evitar a visão de que o algodão é um produto sustentável. “Moda é política sim, e as escolhas dos nossos governantes podem afetar diretamente a qualidade e saúde do solo, dos alimentos e até das nossas roupas”, declara Fernanda Simon, diretora-executiva do Instituto Fashion Revolution Brasil e editora de sustentabilidade da Vogue, que também integra o movimento.

Fiscalizar e conscientizar

Rafael Arantes, do Idec, destaca que, embora países como China e Estados Unidos também usem agrotóxicos em escala semelhante ao Brasil, a fiscalização e as normas de proteção por aqui são muito mais falhas. E o setor de monitoramento, segundo ele, está longe de ser uma prioridade do governo, realidade que pode se agravar ainda mais caso o projeto de lei seja aprovado da forma como está. “O PL vai ampliar a utilização de agrotóxicos com uma fiscalização e monitoramento que já são frágeis, e que devem continuar assim.”

Um dos problemas que dificultam a já árdua tarefa de conscientizar a população para os riscos dos agrotóxicos à saúde humana são as barreiras para pesquisas, aponta o nutricionista. Ainda que dados do Ministério da Saúde e de instituições de vigilância indiquem quadros de intoxicações agudas ligadas ao contato com os produtos, principalmente no campo, ainda é muito difícil apontar os impactos do acúmulo de agrotóxicos no organismo ao longo do tempo, pelo consumo cotidiano de alimentos que contêm as substâncias. “Nunca vai existir um estudo em que se oferece lentamente certa fonte de agrotóxico para uma pessoa, justamente porque eles são tóxicos. Apesar de se saber disso, alguns setores, usam até de má-fé desse fato para dizer que não existem pesquisas mostrando que agrotóxicos fazem mal.”

Outro ponto de discussão na seara política é a mudança da nomenclatura dos agrotóxicos para pesticidas, prevista no novo projeto. Inicialmente, o termo agrotóxico foi selecionado justamente para contemplar não só sua função no controle de pragas, mas também as intoxicações humanas, animais e ambientais que causa, diz Arantes. “Não basta trocar o nome por outro similar. Na nossa interpretação, isso é prejudicial”, afirma. Na visão do engenheiro agrônomo e pesquisador da Embrapa Décio Gazzoni, porém, a mudança alinharia o país com o restante do mundo, onde o termo pesticida é mais usado, além de descrever melhor sua principal função. “A palavra agrotóxico não descreve corretamente o que se pretende quando o produto é usado, ou seja, matar uma praga que afeta uma lavoura.”

Mariana Simonetti

O que fazer

Hoje, o que o Idec pede, de acordo com Arantes, é uma redução lenta e gradual na utilização de defensivos agrícolas, para acompanhar uma tendência mundial de redução dos danos ao meio ambiente e à saúde, ampliando a fiscalização e retirando de circulação produtos que já são banidos em outros países.

Quando votam em determinado senador, as pessoas estão votando também a favor do modelo econômico do agronegócio

No entanto, para ele, a compreensão das implicações da política nacional para a nossa alimentação ainda não está perto de se expandir, até mesmo num caso como o de um projeto de lei que deve afetar diretamente a produção e o consumo de alimentos para todo mundo. “Está distante para a maior parte da população o entendimento de todas as dimensões de representatividade que os legisladores eleitos pelo voto popular têm no Senado e na Câmara.”

Segundo Rodrigo Afonso, da Ação da Cidadania, o momento é de exercer pressão política e deixar claro para os representantes que os eleitores não estão satisfeitos com o apoio a projetos que vão contra a saúde pública ou o meio ambiente. “Queremos fazer com que as pessoas entendam que, quando votam em um determinado senador, estão votando também a favor do modelo econômico do agronegócio, e não da saúde ou da produção de mais alimentos que vão chegar à mesa das pessoas.”

O brasileiro não sabe o que come

Na visão da ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Tereza Campello, o prato do brasileiro, por tradição bastante rico e diverso, está mais ameaçado do que nunca por questões que vão desde a presença de substâncias tóxicas à saúde até o encarecimento de vários alimentos. E, segundo ela, a crise política relacionada à alimentação é também uma crise informativa. “A população não sabe o que está comendo e muitas vezes essa informação é passada induzindo à escolha errada”, afirma Campello, que é pesquisadora e professora titular da Cátedra Josué de Castro de Sistemas Alimentares Saudáveis e Sustentáveis da Faculdade de Saúde Pública da USP.

Para a ex-ministra, a discussão sobre agrotóxicos costuma se centrar principalmente em alimentos in natura, convenientemente ignorando os industrializados, que podem conter quantidades até maiores das substâncias. “Se uma mãe soubesse que a bisnaguinha que o filho come é carregada de veneno, ela compraria?” Portanto, segundo Campello, deveria ser obrigação dos parlamentares criar políticas que informassem já no rótulo dos produtos, além da quantidade de agrotóxicos, seu nível de processamento industrial e se o alimento é transgênico. “Mas o Parlamento atual jamais agiria nesse sentido, infelizmente”, afirma.

A pesquisadora indica que deveriam estar sendo discutidas medidas como criar políticas de preços e de estoques reguladores, algo que até o momento não aconteceu. Em vez disso, ela diz, as estruturas de proteção à alimentação estão sendo destruídas. “Quem mais nos ameaça é justamente o Parlamento, que deveria nos proteger.”  Uma forma de garantir que a população eleja os candidatos certos para tratar de todas essas questões, defende Campello, seria obrigar os parlamentares e candidatos a se comprometer com algumas agendas básicas, como a da alimentação saudável. “O prato do brasileiro nunca esteve tão exposto quanto hoje à falta de alimentos tradicionais, como arroz, feijão e mandioca, e a produtos menos frescos e ultraprocessados.”