Relatos de quem cuida de alguém com Alzheimer — Gama Revista
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Depoimento

Cuidar de quem está esquecendo

Pessoas que cuidam de familiares com Alzheimer relatam as dificuldades de uma doença que, aos poucos, apaga a memória. Leia sobre os aprendizados de relações postas à prova

Manuela Stelzer e Andressa Algave 22 de Agosto de 2021

Cuidar de quem está esquecendo

Manuela Stelzer e Andressa Algave 22 de Agosto de 2021
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Pessoas que cuidam de familiares com Alzheimer relatam as dificuldades de uma doença que, aos poucos, apaga a memória. Leia sobre os aprendizados de relações postas à prova

O filme “Meu Pai” (2020), protagonizado pelo vencedor do Oscar Anthony Hopkins, hoje com 83 anos, é tido por muitos como a produção que melhor representa a memória de um portador de Alzheimer. Repleto de cenas confusas e desconexas, que vão e voltam em looping, o filme foi como uma luz para os que cuidam ou já cuidaram de parentes com a doença. “Foi a primeira vez que vi tudo pelo ponto de vista da minha mãe”, conta o escritor Marcelo Rubens Paiva, que cuidou da mãe, portadora de Alzheimer, por anos.

Cuidar de alguém que pode chegar a esquecer o próprio nome e idade é uma tarefa difícil, dolorosa e cheia de desafios– ainda mais quando essa pessoa é parte da família. E foi pensando nessas relações afetivas transformadas pela perda da memória que reunimos aqui relatos de pessoas que se dedicaram a cuidar de seus parentes atingidos pelo Alzheimer.

Essas histórias, mesmo que repletas de altos e baixos, propuseram reflexões profundas, seja sobre o valor da memória, a importância da família, ou até mesmo a essência da vida. Conheça a seguir os aprendizados e as dificuldades de cuidar de alguém querido que, a cada dia, perde um pouco mais de suas lembranças.

Acervo Pessoal
  • A memória é a essência da humanidade

    Marcelo Rubens Paiva, escritor, 62 anos. Por mais de dez anos, cuidou da mãe, a advogada Eunice Paiva, que morreu em 2018

    “É muito triste ver alguém com Alzheimer, mas é ainda mais triste quando acontece com a mãe, ou o pai. Porque eles são aquelas pessoas que, pela vida toda, foram exemplo, além de protegerem e cuidarem. Ao mesmo tempo, foram também nossas memórias. Nos viram nascer, crescer, e acompanharam nossa infância tão de perto, uma época da vida que não guardamos de fato as lembranças. Eles reservaram espaço nos álbuns de fotografias, contaram histórias da família e parentes que já morreram. Quando uma mãe ou pai começa a perder a memória, perdemos um pouco do nosso passado. O mais chocante é que minha mãe era justamente a pessoa que cuidava de todas as burocracias. E de repente, nós que passamos a cuidar dela. Isso dá um nó na cabeça. No meu livro, ‘Ainda Estou Aqui’ (Alfaguara, 2015), até falo disso, que passei a ser mãe daquela que sempre foi a minha mãe.

    Nossa relação mudou totalmente com o avanço da doença. Primeiro, houve um momento de incertezas, em que nos perguntávamos se haveria tratamento. Depois, entramos na fase complicada em que ela ainda morava sozinha, ainda se virava, mas precisávamos ficar de olho em algumas situações. Em seguida, começou a precisar de cuidados para tarefas diárias. Esqueceu como andar, como levantar da cama, até como comer. Pouco a pouco a pessoa vai definhando, é um processo lento, e uma doença que castiga.

    Passamos a nos referir à minha mãe no passado, mesmo que ainda estivesse viva, porque era como se ela já tivesse partido. A sensação era de que ela estava em outro lugar, não ali, não mais presente. A memória é muito da essência de uma pessoa, da humanidade. Nosso cérebro é a nossa história.

    Depois de toda essa convivência com a minha mãe, passei a ficar muito mais ligado na memória. Comecei a registrar mais os momentos com a minha família. Tenho filhos pequenos, e minha vontade é deixar tudo registrado, porque eu mesmo não me lembro tanto da minha infância, e acho que essas fotos são extremamente importantes para ajudar a construir a memória. Quero guardá-las. A memória, para mim, passou a ser algo extremamente valioso.”

Acervo Pessoal
  • O que fica além das lembranças

    Paula Perim, jornalista, 51 anos. Filha do dentista mineiro Juarez Negrão, de 84 anos, diagnosticado com Alzheimer em 2015

    “A conivência é desafiadora, porque é uma mistura de vários sentimentos, entre eles a tristeza. De uma certa maneira, você vê a pessoa indo, se desligando do mundo. E digo desafiador porque a principal questão do Alzheimer é a memória recente. Quando eu converso com meu pai, a memória não dura um minuto — ele logo esquece. Ele pergunta das netas, como elas estão, o que têm feito, e eu respondo. Em seguida, pergunta de novo. É desgastante, por mais que você tenha toda a boa vontade.

    Gosto de pensar que, mesmo que ele não lembre que fui até a casa dele, aquele momento juntos o deixa muito feliz. Quando você pergunta se ele está bem, ele responde que sim porque eu estou lá com ele, porque as netas estão lá. Pede abraço, pede carinho. A parte física, o amor, o afeto é o que tem valor para ele, muito mais do que qualquer memória. O poder está na sensação e no presente, mesmo que ele não se lembre daquele momento no futuro. Já me perguntei se vê-lo e fazermos programas juntos tem algum impacto, ou se como ele esquece não tem importância. Mas tem. É maior do que só aquilo que fica na consciência.

    Meu pai teve um irmão gêmeo com Alzheimer, uma irmã com Alzheimer, uma outra irmã que agora está com Alzheimer. E eu morro de medo de ter também. Conviver com ele me recorda desse medo de esquecer. Mas tem uma coisa que faz valer a pena: a bondade infinita dele. Ele está doente, não consegue manter uma conversa ou aprender coisas novas, mas permanece curioso. É emocionante, porque ele quer entender tudo o que está acontecendo, pergunta como, onde e por que — mesmo que vá esquecer depois. A convivência com o meu pai me fez pensar na vida de uma maneira mais simples. Afinal, o que são os grandes feitos, os grandes alcances? Ele poderia ter sido o Presidente da República ou mendigado a vida inteira, não significa nada, porque ele esqueceria. O que fica, e fica até hoje, mesmo que a memória falhe de vez em quando, é a luz da vida dele, que vejo toda vez que vou visitá-lo. Não importa o que ele lembra ou o que não lembra — o que fica é muito mais brilhante, e mais importante.”

Acervo Pessoal
  • Protagonismo não se perde com a memória

    Renan Silveira, publicitário, 28 anos. Neto do José Sales da Silveira, de quem cuidou por seis anos quando o avô começou a apresentar sintomas

    “Sempre quis dar espaço para que meu avô fosse quem ele realmente era, mesmo doente. Criaram essa imagem de que ele era um senhor que usava um certo tipo de roupa, e não o deixavam sair desse padrão. Até o dia em que comprei uma bermuda para ele, e meu avô não queria vestir outra coisa. As pessoas deduzem muito sobre o idoso, e tudo o que fiz foi perguntar, escutar, dar espaço para que ele tivesse a própria personalidade, porque o protagonismo da pessoa não deve se perder com a memória.

    Sempre fiquei atento às manias. Para alguém com Alzheimer, é importante mantê-las. Meu avô, por exemplo, molhava o pente com água da torneira, dava três batidinhas na pia, e depois penteava o cabelo. Mantive esse hábito mesmo quando ele não conseguia mais fazê-lo sozinho. Quando ele começou a apresentar sintomas, também fizemos um varal de fotografias, cheio de momentos que ele viveu. Era um porto seguro. Toda vez que ele ia até o quarto, caso não se lembrasse do espaço, o varal ativava a memória, e lhe trazia conforto. Durante um tempo, meus parentes me acusaram de cuidar dele por dinheiro, sendo que eu só fui usar a aposentadoria dele quando realmente precisei, para pagar ajuda, fralda, tratamento. E em todos os cartões haviam feito empréstimos até o limite.

    Várias vezes meu avô perguntava se íamos dormir na casa que morávamos ou na outra. Ninguém entendia de que outra casa ele estava falando. Resolvi perguntar. Ele disse que era uma casa igualzinha àquela, apontava pros móveis e dizia que era igual. Hoje, acredito que a tal casa não era uma antiga da infância. Era a mesma casa onde ele vivia, só que por se sentir deslocado e perdido, achava que haveria outro lugar que se sentiria mais confortável. Como não se lembrava tão nitidamente, tinha a sensação de não estar no lugar certo.

    Nesse processo todo eu ganhei força. Sempre fui muito tímido e calado. Só comecei a ter voz quando eu percebi que meu avô não tinha mais. Ele não tinha voz para brigar por ele mesmo, para falar com os médicos, para se comunicar. Foi quando passei a enfrentar as coisas por ele. Também nunca tinha falado sobre a minha sexualidade tão abertamente, e um dia, se referindo a um personagem gay de uma novela, meu avô disse que pessoas que ‘nasceram assim’ eram ‘muito amorosas’, e que não tinham culpa de nada. Foi depois de cuidar do meu avô que comecei a ser mais aberto e levar um namorado para casa.”

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  • Aprendizado constante

    Anna Lobato, 21 anos, universitária, convive com a tia de 71 anos, diagnosticada com Alzheimer em 2016

    “Conviver com alguém que a cada dia perde mais de suas lembranças não é uma tarefa fácil. Exige paciência, muito zelo, e é um teste de amor. No início era uma tarefa bem complicada, já que não sabíamos da condição dela. Dizíamos ‘você já falou isso’, e percebíamos que ela ficava envergonhada. Acabamos deixando ela contar a mesma história diversas vezes. Começamos a ter mais paciência, mais carinho, a dar uma atenção maior. A nossa relação mudou bastante, ficamos mais próximas, porque ela não consegue fazer as coisas sozinha, e eu sempre estou a acompanhando nesses quesitos, vou junto quando ela tem que sair, isso nos uniu muito. Nós não tínhamos uma ligação dessa forma.

    Ela é muito focada no passado. Os maiores comentários dela são as lembranças da infância, as relações com a avó, com o avô, com os tios, conta muito. Já aconteceu de ela esquecer onde morava e querer ir para a casa da infância. Ela sente muita falta. Não tínhamos o conhecimento da doença no início e foi bem difícil aprender a lidar com ela, mas os aprendizados vêm com o tempo, temos que ter paciência. Ela gosta de ensinar, de falar sobre a vida, e eu aprendi a ser paciente, a escutar e observar mais ao meu redor. Eu jamais vou esquecer a nossa proximidade, fazemos tudo juntas. Se eu saio e ela não vai, sempre trago algo pra ela. A gente divide as nossas coisas.”

Acervo Pessoal
  • O diagnóstico não é o fim da vida

    Bete Lorca, 65 anos, aposentada, cuidou por nove anos do marido Anezio Moreira Santos, morto em julho de 2021

    “No início do diagnóstico vem a fase da negação. Você não acredita na doença. Com o passar dos meses você vai perceber que a negação não leva a nada, aí vem o período da aceitação, que não é fácil. A partir do momento que você aceita e aprende sobre o Alzheimer, você tem muita coisa a aproveitar ainda. O diagnóstico, com a aceitação, não é o fim da vida. A perda da memória acontece aos poucos, você reflete e fala ‘meu deus, ele não está me reconhecendo’. Não acontece do dia para a noite, mas é muito triste. Se fortalecer como cuidadora é o que possibilita oferecer uma qualidade de vida bem próxima ao normal por muito tempo.

    Tudo muda a partir do diagnóstico. O Alzheimer praticamente não afeta ele, e sim a família que está ao redor. A família é que tem que aprender sobre a doença, porque tudo muda — os horários, a rotina, o modo de abordá-lo. Meu marido se tornava agressivo se fosse abordado pelas costas, mesmo que fosse um colocar de mão no ombro, se fosse por trás, na ideia dele era uma agressão. Isso tudo nós aprendemos, não só eu na condição de esposa, mas filhos, netos, quem passasse pela minha casa. É um aprendizado que a gente constrói ao longo da doença.

    A doença não nos paralisou e não perdemos oportunidades. Fomos a casamentos, vestimos terno; mesmo na cadeira de rodas, tudo nós fizemos. Meus filhos o carregavam no colo, não perdemos um batizado das crianças, nem formaturas dos netos. Na fisioterapia ele caminhou, saiu da casa, encontrou outras pessoas, houve possibilidade de diálogo. Meu marido era lúcido o tempo inteiro, conversava, falava coisas sem nexo, não tinha sentido, mas sempre lúcido, sempre caminhava enquanto pôde. Eu não o privei de nada, nem em confraternizações e nem na rotina: passeava, andava no parque, de tudo foi feito.”+“>