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ArtigoA crise do cinema brasileiro no governo Bolsonaro
Sob ataque, corte de verbas e uma crise de representação na Ancine, o cinema brasileiro segue em um cenário de grandes indefinições
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ArtigoA crise do cinema brasileiro no governo Bolsonaro
Sob ataque, corte de verbas e uma crise de representação na Ancine, o cinema brasileiro segue em um cenário de grandes indefinições
O cinema brasileiro vem trilhando um notável caminho de amadurecimento nos últimos 20 anos. Alguns breves números comprovam essa afirmação. Em 2001, o Brasil possuía 1.620 salas de cinema, com 30 filmes brasileiros lançados. Já em 2019, último ano antes da pandemia, foram lançados 153 longas-metragens brasileiros, num mercado com 3.496 salas. Filmes brasileiros se destacam em festivais internacionais de prestígio, como os prêmios recebidos por “Bacurau” e “A Vida Invisível” no Festival de Cannes de 2019.
Grande parte dessa trajetória se justifica pela atuação da Agência Nacional do Cinema (Ancine), uma agência reguladora responsável pelo desenvolvimento do mercado audiovisual brasileiro, nos campos da regulação, do fomento e da fiscalização, atuando de forma ampla em toda a cadeia produtiva (produção, distribuição e exibição) e nos mais diversos segmentos de mercado.
Mesmo com muitos resultados positivos, a Ancine passou a ser duramente atacada a partir do governo Bolsonaro, tendo como base as tendências liberal e conservadora de seu governo. O lado liberal, representado pelo Ministro da Economia Paulo Guedes, busca reduzir ao máximo a participação do Estado na economia. Depois de extinguir o Ministério da Cultura, transformado em uma Secretaria surpreendentemente subordinada ao Ministério do Turismo, Bolsonaro sinalizou para a extinção da Ancine, mas acabou recuando, pois seria necessário a prévia aprovação do Congresso Nacional, pelo fato de a Ancine ser uma agência reguladora.
Pelo lado conservador, houve uma tentativa em restringir a expressão plural e diversa das temáticas relativas à cultura. Prolongando as estratégias belicosas de sua campanha eleitoral, Bolsonaro criticou o aporte de recursos públicos para projetos voltados para as pautas identitárias, em especial os conteúdos LGBTQIA+. Nesse ponto, Bolsonaro indicou que deveriam ser aplicados filtros que direcionassem os recursos aportados pela Ancine, sinalizando que a Ancine deveria aprovar filmes sobre heróis nacionais ou com temas evangélicos.
O que está em jogo é a autonomia da Ancine, cujas políticas devem ser baseadas em critérios técnicos
O que está em jogo é justamente a autonomia da Ancine como um órgão de Estado, cujas políticas devem ser baseadas em critérios técnicos, elaborados e executados por especialistas na atividade audiovisual, e não segundo diretrizes discricionárias emitidas diretamente pelo próprio governo, utilizando parâmetros totalmente apartados da lógica de funcionamento próprio do setor, enquanto atividade econômica e cultural.
Um incidente adicional aumentou o cenário de turbulência para a Ancine. Em março de 2019, um acórdão emitido pelo Tribunal de Contas da União (TCU) questionou os critérios de prestação de contas dos projetos audiovisuais aprovados pela agência. No entanto, em vez de propor ajustes no modelo e corrigir as eventuais distorções conforme apontadas pelo TCU, o então Diretor-Presidente da Ancine, Christian de Castro, indicado ainda no Governo Temer, simplesmente decidiu paralisar as atividades do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) até a total resolução do conflito. Essa medida desproporcional já apontava para o isolamento de Castro na Diretoria-Colegiada. Poucos meses depois, Castro foi afastado da Presidência da Ancine por medida judicial que o acusava de interceptação de dados sigilosos para beneficiá-lo em sua campanha à presidência da Ancine. Logo em seguida, Castro renunciou ao cargo, e, em seu lugar, assumiu Alex Braga, Procurador Federal sem maior vínculo com o setor audiovisual.
A gestão de Braga adotou uma postura ambígua: se a Ancine não foi extinta nem transformada em uma produtora de filmes evangélicos, Braga acabou implicitamente sinalizando para uma aderência ao atual governo. Mesmo com sua ampla formação jurídica, Braga não atuou para destravar a Ancine, prolongando o impasse com o TCU sem perspectiva clara de resolução. Com isso, o FSA permaneceu praticamente sem novos investimentos entre 2019 e 2021. A situação foi agravada com a pandemia da Covid-19, conduzindo a uma grave crise do setor audiovisual.
A paralisação não atingiu apenas as atividades de fomento mas também a esfera da regulação, dadas as tendências liberais do atual governo. Um dos mais fortes exemplos foi a não publicação do decreto anual de Cota de Tela a partir de 2019. A Cota de Tela é um tradicional mecanismo de salvaguarda à proteção nacional, existente no país desde o governo Vargas em 1932, que, na sua versão atual, estipula a obrigatoriedade que as salas de cinema comerciais exibam longas-metragens brasileiros por um número mínimo de dias.
Sem regulação, os filmes lançados pelas distribuidoras globais ocuparam de forma avassaladora o mercado brasileiro
Sem Cota de Tela, “Vingadores-Ultimato” (2019), novo filme da franquia Marvel distribuído globalmente pela Disney, estreou em abril de 2019 em 2.950 salas no país, o que corresponde a 88% das 3.352 salas de cinema comerciais em funcionamento naquele momento. Mesmo com ótima bilheteria, o filme brasileiro “De Pernas pro Ar 3” (2019) foi retirado de cartaz, inclusive com o cancelamento de sessões já programadas, causando revolta na classe cinematográfica brasileira. Sem regulação, os filmes lançados pelas distribuidoras globais (as chamadas majors) ocuparam de forma avassaladora o mercado brasileiro, sem qualquer atuação da Ancine.
A situação se agrava pois não há qualquer regulação para o setor de vídeo sob demanda (VOD) e para as plataformas de streaming, causando uma assimetria regulatória em relação ao setor de TV por assinatura, regido pela Lei 12.485/11. Plataformas como o Netflix, que já faturam mais do que a Band, terceira maior emissora de TV aberta, não possuem requisitos regulatórios como cotas de conteúdo brasileiro e investimento mínimo em produção independente, e inclusive pagam menos impostos que a TV paga.
A participação de mercado do cinema brasileiro em 2021, após a reabertura dos cinemas, foi de míseros 1,3%. Se a Ancine não foi extinta nem se transformou numa produtora de filmes evangélicos, ela acabou entrando em uma espécie de regime inercial.
A Ancine acabou entrando em uma espécie de regime inercial
De todo modo, não seria mais possível manter indefinidamente a paralisação das atividades da agência, acumulando-se insistentes denúncias do Ministério Público Federal (MPF). Alex Braga acabou reconduzido para a presidência da Ancine por mais cinco anos a partir de outubro de 2021. Também assumiram como diretores da Ancine dois servidores de carreira do próprio órgão: Vinícius Clay e Tiago Mafra, que antes eram apenas substitutos.
Com a posse dos novos diretores em condição não mais temporária ou interina, Braga apontou, enfim, para o destravamento da Ancine. As primeiras linhas de ação do FSA começaram a ser lançadas já no final de 2021, ampliadas em 2022, envolvendo produção cinematográfica, com categoria de novos realizadores (estreantes), e séries de televisão. No entanto, permanecem com certa desconfiança por parte do setor os critérios de aprovação dos projetos e de formação da comissão de seleção.
Deve-se ressaltar que os três diretores foram empossados para mandatos fixos de cinco anos (2021-2026) e que, segundo a lei das agências reguladoras, não podem ser livremente exonerados pelo próximo Presidente da República. Assim, a próxima eleição presidencial será decisiva quanto aos rumos da política audiovisual brasileira. Caso o atual presidente seja reeleito, o cenário é o do prolongamento do desmonte das políticas culturais e o provável fechamento da Ancine. Caso o eleito seja o ex-Presidente Lula, a tendência é a de fortalecimento do papel da agência, uma vez que a Ancine atingiu seu período áureo justamente em seu segundo mandato, sob a gestão de Manoel Rangel. Entretanto, terá que lidar com três diretores empossados pelo governo anterior. Enquanto isso, o cinema brasileiro permanece em um cenário de grandes indefinições.
Marcelo Ikeda é doutor em comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor de cinema e audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC). Autor do livro “Utopia da Autossustentabilidade: Impasses, desafios e conquistas da Ancine” (Sulina, 2021)
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