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SemanaFoco na Amazônia
Fotógrafos compartilham registros e falam de seus trabalhos em meio à pandemia e a escalada de devastação das florestas
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SemanaFoco na Amazônia
Fotógrafos compartilham registros e falam de seus trabalhos em meio à pandemia e a escalada de devastação das florestas
A Amazônia Legal se desdobra em nove estados brasileiros. São mais de 5 milhões de quilômetros quadrados de imaginários, realidades e territórios diversos e em disputa: o agravamento das instabilidades na região durante a pandemia favoreceu a devastação, que se alastra em ritmo acelerado, e o avanço de invasores sobre áreas protegidas.
A fotografia funciona como um mapa de navegação que nos ajuda a recobrar os sentidos, traz cara e história aos números da devastação. Há, agora e antes da pandemia, uma série de fotógrafos em campo pautados por veículos da imprensa, por ONGs que exercem trabalhos socioambientais, coletivos de comunicação popular, entre outros. Também por meio das redes sociais, eles tentam democratizar o conhecimento da região e desfazer estigmas, muitos deles cristalizados pela própria fotografia.
Alguns dos trabalhos se voltam para contar as histórias de populações invisibilizadas nas pequenas cidades, comunidades quilombolas, ribeirinhas e indígenas. “Eu tenho a impressão de que a região é imaginada como um grande bloco, de cultura comum, um jeito de ser Amazônia comum”, conta a fotógrafa e documentarista Ana Mendes, que registra desde 2017 a comunidade indígena Akroá-Gamella, no Maranhão. “A importância de pautar a Amazônia pela fotografia é conseguir falar de multiplicidade. E gerar retratos que sejam condizentes com a autoimagem das populações, que não digam respeito só ao que a gente imagina. Não se pode ficar namorando o estereótipo indígena”, diz.
Nosso papel é o de ser os olhos de uma sociedade para problemas que estão acontecendo em realidades muito distantes, para que as pessoas entendam e se sensibilizem
Outros captam grandes áreas registrando a alta das queimadas e ajudando a elucidar um debate hoje povoado por falas que negam a destruição e a falta de comprometimento das instituições com a preservação da Amazônia e das populações indígenas, que estão entre as mais vulneráveis à pandemia no país. “O Brasil tem proporções continentais e realidades muito distintas. Nosso papel é o de ser os olhos de uma sociedade para problemas que estão acontecendo em realidades muito distantes, para que as pessoas entendam e se sensibilizem”, diz o fotojornalista Victor Moriyama.
Ele é autor do projeto @historiasamazonicas, que reúne fotógrafos da América do Sul para pautar a maior floresta tropical do mundo por meio de registros audiovisuais. Periodicamente, repórteres utilizam a conta para compartilhar seus trabalhos e contar o que viram em expedições na Amazônia. “Queria criar uma comunidade engajada com o que está acontecendo, com o processo de desmatamento, e na luta para que a natureza fique de pé”, conta.
Fotógrafos que se deslocam pelo território amazônico são rodeados de inseguranças que dificultam a documentação. Há lugares em que se pode transitar; em outros, muitas vezes devido a emboscadas e intimidações, não é possível firmar um tripé ou usar equipamentos chamativos, como drones. Alguns registros precisam ser discretos, muitas vezes escondidos.
“Uma floresta pode ser tanto linda quanto aterrorizadora se você não souber onde está pisando. Por isso é importante ter boas referências, boas fontes e sempre estar bem acompanhada de pessoas locais que conheçam intrinsecamente as miudezas tanto naturais quanto políticas daquele território”, diz a documentarista Fernanda Ligabue.
A seguir, Gama conversa com cinco profissionais que trabalham para revelar a Amazônia por meio da fotografia.
Fernanda Ligabue
A documentarista Fernanda Ligabue esteve na Amazônia em agosto de 2020 produzindo vídeos sobre a relação da soja com o desmatamento para uma ONG internacional. O trabalho começou no cerrado, na região do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) e se estendeu para o território amazônico ao longo da BR 163, entre o Mato Grosso e o Pará.
Ela conta que a filmagem de queimadas exige equipamento de proteção específico e orientação de guias locais. É que os acessos ao foco dos incêndios são sempre muito difíceis e, algumas vezes, perigosos quando não se conhece o contexto do local.
Além da dificuldade física, há ainda o desafio de lidar com a realidade dolorosa da população. “Foram diárias de filmagem muito impressionantes e muito tristes. São comunidades locais tentando lutar para controlar o fogo sem ajuda de nenhum órgão de fiscalização do governo, nem bombeiro, nem brigada de incêndio, nada. Assistir a uma mulher lutando para que o fogo criminoso não chegasse em sua casa apenas com um balde de água e um pote de margarina foi uma das coisas mais desesperadoras que já vivenciei em campo.”
Ana Mendes
Desde 2017, a fotógrafa e documentarista Ana Mendes faz registros do povo indígena Akroá-Gamella, que vive no Maranhão. Até 2014, eles eram considerado extintos pelo Estado. “Estavam num processo de recolhimento e silenciamento como estratégia de sobrevivência”, conta Ana, que acompanhou parte do processo de autodeclaração pública da população e das lutas pela retomada e garantia de sua identidade e territórios.
No primeiro ano de registros, a fotógrafa, que integra o coletivo Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão, documentou os dias que se seguiram depois de os Akroá-Gamella sofrerem ataques motivados pela disputa territorial, em abril de 2017, que ganharam repercussão nacional pela brutalidade com que ocorreram. “Cheguei na mesma noite em que eles foram atacados. Havia vários grupos perdidos na mata, relatos de tiroteios. Nos alertaram para tomar cuidado com emboscadas possíveis na estrada”, conta a fotógrafa. “Já passei por situações complicadas e já sofri uma intimidação que me fez recuar do território maranhense e repensar estratégias de luta”, diz a Gama.
Desse episódio, formou-se um vínculo que se mantém até hoje. Ana segue produzindo registros da comunidade. “Não posso me furtar à necessidade de colher informações e organizar estratégias para que os indígenas respondam juridicamente a isso”, diz sobre o uso que esse povo também faz de seus registros para garantir seus direitos.
Christian Braga
Morando em São Paulo há quatro anos, o fotógrafo amazonense Christian Braga voltou a Manaus para fazer registros da pandemia, que se alastrou pela região, atingindo cidades sem hospitais e com dificuldade de acesso à capital. Em seu trabalho recente, ele documenta populações indígenas lutando contra a covid-19 e o avanço das queimadas e das atividades de garimpeiros, que com seus deslocamentos pelo território contribuíram para que o problema de saúde atingisse comunidades vulneráveis.
“Esta imagem [abaixo] é da primeira vez que eu cheguei no hospital e vi povos indígenas entubados. Aquilo me chocou muito, foi muito forte entrar dentro de um hospital e ver pessoas que vivem próximas a florestas precisando de ajuda para respirar”, conta Christian.
O retrato acima foi feito em agosto, na comunidade indígena Dau, a cinco minutos de barco da cidade de São Gabriel de Cachoeira, que já contabiliza mais de 50 mortos por coronavírus. O fotógrafo conta que, na década de 1980, o povo quase foi extinto e veio se reestruturando para sobreviver nos últimos 40 anos. “Hoje, são cerca de 200 indígenas, e todos pegaram covid-19. Eles nos receberam e eu fiquei fotografando de longe. Foi muito emblemático ver como conseguiram resistir a isso, uma comunidade com muitos idosos”, relata. “Tiveram que separar as famílias a uma distância de 50 metros cada, começaram a usar máscara dentro da floresta. Achei impressionante.”
Victor Moriyama
O fotojornalista paulistano Victor Moriyama esteve junto com a documentarista Fernanda Ligabue produzindo registros das queimadas durante o mês de agosto. Em 2019, ele passou dois meses na Amazônia, mergulhado em um especial para jornal The New York Times sobre o desmatamento após o primeiro ano do governo Jair Bolsonaro, e regressou a alguns dos lugares novamente em 2020. “É uma região bem complexa e perigosa, e claramente as pessoas sabem que a gente é de fora. Por isso não nos aventuramos muito por dentro, pela questão da violência, mas fomos a Castelo dos Sonhos e a região de Novo Progresso, que queimaram muito ano passado [no episódio que ficou conhecido como Dia do Fogo] e este ano estão queimando muito. É uma grande cortina de fumaça que nos acompanhou por quilômetros na estrada. Não sei nem como descrever isso, é assustador.”
“Tanto o cerrado como a Amazônia estão sob forte pressão do agronegócio e há um desrespeito total às leis. Vimos muitas queimadas em áreas de preservação ambiental, mesmo com a proibição federal de qualquer tipo de queimada por 120 dias. No município de Cláudia, no Mato Grosso, eu vi uma das cenas mais impressionantes da minha vida: um vendaval, uma tempestade de brasa, foi muito difícil fotografar. E as pessoas tentando apagar o fogo com seus próprios recursos. As queimadas continuam ocorrendo de uma maneira tão ou mais violenta do que ano passado.”
Marcela Bonfim
A fotógrafa paulista Marcela Bonfim registra, desde 2011, a história invisibilizada das populações negras na região amazônica, com foco no estado de Rondônia. São quilombolas, imigrantes barbadianos (vindos de Barbados, do Caribe) e haitianos. “As pesquisas e registros sobre as populações negras se concentravam nas especificidades e características das populações da região Nordeste — o que torna a pauta negra invisível em outras regiões brasileiras, principalmente no extremo norte amazônico”, conta na apresentação do projeto (Re)Conhecendo a Amazônia Negra.
Durante a pandemia, Marcela tem se dedicado ao livro “As Imagens (In)visíveis da Cor”, que deve ser lançado em 2021. No trabalho, a fotógrafa narra os caminhos percorridos pela Amazônia negra nestes nove anos de projeto e o que foi, para ela, se encontrar na imagem de uma barbadiana. “O processo da fotografia trouxe dignidade à minha cor e à minha imagem. E dá os créditos a quem eles devem ser dados: fala sobre uma presença que está aqui desde a construção do Forte Príncipe da Beira [aparato colonial de defesa militar feito por escravos negros]”.