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SemanaPor que muitos pais somem?
Além do fator de gênero, a desigualdade social e o racismo tornam essa questão — tão urgente no Brasil — ainda mais complexa
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SemanaPor que muitos pais somem?
Além do fator de gênero, a desigualdade social e o racismo tornam essa questão — tão urgente no Brasil — ainda mais complexa
A escolha do ator trans Thammy Miranda como um dos divulgadores da campanha de Dia dos Pais da Natura deixou a polarizada internet brasileira em polvorosa na última semana de julho. Além de dar visibilidade a um tipo de paternidade que subverte o padrão heteronormativo e cisgênero, o episódio fez muita gente trazer à tona os alarmantes números sobre ausência paterna no Brasil.
Ao contrário de Thammy e de outros personagens em que a ação publicitária apostou, um enorme contingente de homens desaparece dessa função — por isso, as redes sociais foram povoadas sobretudo por duas cifras: 11,6 milhões de mulheres do país são mães solo, segundo dados do IBGE, e 5,5 milhões de crianças brasileiras não têm o nome do pai na certidão de nascimento, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça.
5,5 milhões de crianças brasileiras não têm o nome do pai na certidão de nascimento
A seguir, especialistas ouvidos por Gama expõem uma série de razões culturais, históricas e sociais que ajudam a explicar o afastamento sistemático dos pais das famílias brasileiras.
O modelo patriarcal de sociedade
A estrutura patriarcal e machista da sociedade é o amplo pilar sobre o qual a questão da ausência paterna se edifica, diz Daniel Costa Lima, psicólogo, ativista e consultor nas áreas de gênero, masculinidades e paternidades. “[Essa mentalidade] coloca, de uma forma muito forte, que a responsabilidade e o cuidado são algo do feminino, das mulheres.”
De fato, as estatísticas brasileiras confirmam que essa é uma carga que recai majoritariamente sobre os ombros das mães: de acordo com o IBGE, 86% das crianças brasileiras com menos de quatro anos as têm como primeira responsável. “E a falta de empatia dos homens com as mulheres é mais um fenômeno do patriarcado: não reconhecer a importância do trabalho gigantesco que é cuidar de uma criança”, completa o psicólogo.
Designar sistematicamente o lugar do cuidado às mulheres — o que ficou mais evidente durante a quarentena imposta pela pandemia de Covid-19 + — abre espaço para que os homens possam ter outras prioridades. Ou seja, muitos pais somem simplesmente porque podem tomar a decisão de se afastar do ambiente doméstico, em corpo, alma ou ambos, sem sofrer muitas consequências. “Os homens conseguem priorizar a vida acadêmica ou profissional em detrimento da família. É um privilégio muito grande poder dizer que são dispensáveis e é muito raro ver uma mulher fazer esse movimento”, avalia Lima.
A presença paterna é, portanto, tratada como algo periférico e os pais, como um elemento secundário no processo de educação das crianças, observa Luciano Ramos, historiador e consultor em masculinidades e paternidades do Instituto Promundo Brasil. “A sociedade naturaliza o sumiço dos pais. Nunca se pergunta ‘cadê seu pai?’, a pergunta é sempre ‘cadê sua mãe?’ ou ‘onde é que a mãe estava que não viu isso?’”, diz.
A ausência de vínculo com os filhos
Ao abandonar a esfera de cuidado dos filhos, os pais deixam de criar vínculos afetivos com eles, o que tanto facilita seu desaparecimento quanto reforça os papéis de gênero, fechando um grande ciclo de ausência. “Na educação dos meninos, muitas vezes a gente não valoriza e não estimula a condição de que o homem também pode ser um cuidador”, diz Michéle Mansor, gerente nacional dos programas da ONG Aldeias Infantis SOS. “É como se a gente, desde muito cedo, dissesse para os meninos que eles não têm essa responsabilidade. Você vai gerando homens que não cuidam, em um círculo vicioso muito complicado.”
Além disso, perder o laço afetivo entre pai e filho significa privar os dois de uma série de benefícios que essa ligação pode trazer. “O afeto, a troca, o pertencimento, a identidade”, enumera Mansor. “O pai deixa de se saber coparticipante do desenvolvimento do filho, de reconhecer no filho semelhanças e diferenças, de vê-lo se tornar uma pessoa adulta, de fazer parte do presente dele, de vivenciar momentos com ele. Perder tudo isso é muito difícil para um lado e para o outro.” Porém, como a questão é pouco problematizada, muitos pais nem se dão conta do prejuízo emocional. “Se não crio vínculo, ir embora e não voltar mais não é um problema”, diz Luciano Ramos.
Quando você coloca que prover é a única função do pai, você deixa muitos à margem da possibilidade de ser pai ou de ser um pai responsável reconhecido socialmente
Ele explica que, nessa lógica que exime os homens do cuidado, caberia a eles apenas a responsabilidade financeira, única que pode ser cobrada legalmente — a famigerada pensão. Mas mesmo esse papel, muitas vezes, não é cumprido, e o fardo sobra, novamente, para as mães solo. Segundo dados de 2019 do IBGE, 48% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres. Em São Paulo, um levantamento da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) mostra que quase metade das casas com esse tipo de configuração são comandadas por mães ou avós que sustentam os filhos ou netos sem a presença de um parceiro.
A desigualdade histórica
Olhar para o passado do Brasil pode ajudar a explicar o sumiço sistemático dos pais — tanto da criação e da convivência com os filhos quanto da responsabilidade financeira, que a eles caberia legal e socialmente. “Se olharmos para o processo de colonização, vamos ver o histórico de violência sexual contra as mulheres indígenas e as mulheres negras escravizadas. Desde esse momento, já não sabemos quem seriam os pais: os homens brancos que estupravam essas mulheres, de forma geral, não se tornavam pais das crianças que nasciam dessa violência”, observa Daniel Costa Lima.
Ele lembra também que, antes da Lei do Ventre Livre (1871) +, a possibilidade de ser pai era negada aos homens negros. “Uma criança que nascia de pais escravizados era um produto dos escravagistas, e um produto não tem maternidade nem paternidade.” E, além disso, a escravidão acabou no Brasil sem nenhum tipo de reparação ou reinserção social dos negros, deixando um rastro de desigualdade que também afeta as paternidades.
Assim, quando se instituíram os papéis de gênero dentro dos núcleos familiares na virada do século 19 para o 20 — cabendo à mulher o cuidado da casa e dos filhos e ao homem ser o provedor —, nem todos os pais conseguiam responder a essa expectativa. “Não estou querendo desculpar os homens por sumirem e não assumirem suas crianças, mas é importante falar sobre esse processo também de uma perspectiva histórica”, diz Lima. “Quando você coloca que prover é a única função do pai, você deixa muitos à margem da possibilidade de ser pai ou de ser um pai responsável reconhecido socialmente.”
Se a cada 23 minutos um jovem preto é morto no Brasil, então a cada 23 minutos um homem preto não terá a possibilidade de paternar ou uma criança preta perderá a possibilidade de ter um pai
O sumiço de muitos pais pobres, então, está relacionado justamente ao papel que se espera deles em uma sociedade que só os responsabiliza financeiramente. “O que aconteceu, em um país de dimensões continentais, é que os homens foram atrás de dinheiro. No nordeste, eles saíam aos milhares do interior para procurar trabalho no sudeste ou na Amazônia, na mineração da Serra Pelada. Eles iam embora e às vezes voltavam para casa só uma vez por ano, porque eram pobres, estavam batalhando pela sobrevivência. Alguns mantinham contato apenas para mandar dinheiro, outros sumiam de vez”, explica o psicólogo.
Violência e racismo
Migrar em busca de melhores recursos não significa apenas corresponder ao papel de provedor esperado dos homens — muitas vezes, o trabalho do pai é a fonte de sobrevivência básica dos filhos. E, nesse sentido, outras questões que assolam as famílias mais pobres podem agravar a ausência paterna. “São homens que não têm acesso à licença paternidade, que quanto mais pobres, mais longe do trabalho vivem e mais tempo gastam em jornadas gigantescas”, diz Lima. Ele observa que, em muitos casos, exercer uma paternidade afetiva e presente não é uma escolha. “Apenas o desejo não resolve, o que acontece é que existem outros fatores que impedem os homens negros, pobres, da classe trabalhadora a fazer isso. Você pode até querer, mas não conseguir estar próximo.”
Para Luciano Ramos, esse impasse não só tem CEP nas periferias como também tem cor: quando pensamos nos pais negros, tanto a desigualdade de recursos quanto a violência são fatores decisivos para um sumiço “involuntário”. “Se a cada 23 minutos um jovem preto é morto no Brasil, então a cada 23 minutos um homem preto não terá a possibilidade de paternar ou uma criança preta perderá a possibilidade de ter um pai”, avalia o historiador. “As mulheres brancas ou pretas que têm filhos de pais pretos perdem a oportunidade de seguir com aquele homem dividindo os cuidados e as responsabilidades acerca do filho ou da filha preta porque existe esse sumiço involuntário.”
De acordo com o Atlas da Violência 2019, feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em 2017 mais de 65 mil pessoas foram assassinadas no Brasil — sendo mais da metade desse número jovens entre 15 e 29 anos. É uma cifra considerada endêmica pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e que atinge muito mais os homens, sobretudo negros e jovens, do que as mulheres. A chance de um homem entre 20 e 24 anos morrer por causas violentas no Brasil é 11 vezes maior que a de uma mulher com a mesma idade, segundo o IBGE.
A violência e a desigualdade também podem levar os pais à prisão, outro fator que deve ser considerado no debate sobre a ausência paterna, segundo Lima. Os dados mais recentes do governo sobre a população carcerária brasileira mostram que 96% dos presos são homens. “E não são brancos de classe média. Quando você faz trabalhos sobre paternidade e masculinidade com homens de comunidades de diferentes lugares do Brasil e começa a perguntar a relação deles com os pais, você vê a quantidade de homens que fala que o pai foi assassinado ou preso quando eram crianças”, diz o psicólogo. “Certamente isso é um motivo para alguns pais não estarem por perto.”
Agir preventivamente, educando as próximas gerações, e politicamente, com medidas que estimulem a presença do pai na vida do filho, são os caminhos que os especialistas consideram necessários para transformar a realidade da ausência paterna no Brasil.
Em termos práticos, garantir o apoio à Política Nacional da Saúde do Homem, que discute o pré-natal do parceiro em um âmbito familiar, e principalmente o direito à licença paternidade ampliada são alternativas mencionadas por Luciano Ramos. “As empresas também precisam estimular isso, porque muitos homens têm medo de perder o emprego, a possível promoção ou o prestígio. Não adianta dar a licença e não dizer como a empresa enxerga isso e como pode incentivar o pai a realmente tirar esses dias”, defende.
Tudo, no fim, se baseia em uma grande transformação da mentalidade — de preferência, desde cedo. “Temos que trabalhar com jovens que serão pais, para que eles possam desconstruir as normas rígidas de gênero e entender que o lugar do homem é também o do cuidado. Quando a gente trabalha com esses meninos numa perspectiva de prevenção, a gente começa a construir um novo modelo de sociedade”, diz o historiador.
É uma tarefa que pode começar de formas bem simples, como nas brincadeiras infantis. “Quando um menino brinca de boneca, ele está brincando de cuidar do seu filho ou da sua filha. Quando brinca de casinha, está brincando de cuidar da casa. Nós, adultos, é que definimos esses papéis [de gênero] e, quando a gente desfaz [a norma], ajudamos a formar um homem cuidador”, diz Michéle Mansor.
Ela também acredita que é possível transformar as atitudes de homens que já são pais. “Quando a situação [de abandono paterno] já está posta e a gente tem a possibilidade de mediar a relação entre pai e filho, mesmo que seja um vínculo rompido, é possível reconstruir a história tendo como ponto de partida o agora.”