Alma Guillermoprieto fala sobre feminismo latino-americano e empoderamento — Gama Revista
Mulher: o que falta?
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Sariana Fernández

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Conversas

Alma Guillermoprieto: 'As batalhas que as mulheres ganharam são definitivas'

Premiada jornalista mexicana reflete sobre o feminismo hoje no cenário latino-americano, as conquistas e os caminhos das mulheres para mais liberdade e poder

Isabelle Moreira Lima 07 de Março de 2021

Alma Guillermoprieto: ‘As batalhas que as mulheres ganharam são definitivas’

Isabelle Moreira Lima 07 de Março de 2021
Sariana Fernández

Premiada jornalista mexicana reflete sobre o feminismo hoje no cenário latino-americano, as conquistas e os caminhos das mulheres para mais liberdade e poder

“Será que é possível ser feminista sem ser ativista? E será que é possível ser ativista e feminista sem ser ativista do feminismo?”

O questionamento é feito pela mexicana Alma Guillermoprieto, aos 71 anos, a si própria. Alma passou os últimos 40 anos contando histórias de mulheres. Jornalista consagrada, foi responsável por coberturas tão importantes quanto tensas na América Latina, como o massacre de El Mozote, em que 900 camponeses foram mortos pelo exército de El Salvador em dezembro de 1981. Conseguiu chegar ao local um mês depois, auxíliada por rebeldes, e teve acesso à única sobrevivente, Amaya Ruffino, cuja história contou na revista Piauí quando a salvadorenha morreu em 2007.

Na época de El Mozote, Alma era correspondente do Washington Post, mas também escreveu para o jornal inglês The Guardian e foi chefe da sucursal da revista americana Newsweek por anos. Publicou ainda ensaios em outras publicações consagradas como a New Yorker e a National Geographic.

É também autora de dez livros de diferentes temáticas, muitos deles centrados em crises políticas, como a do México, retratada em “Día de los Muertos” (Flash, 2018), em que usa o exemplo do cartel de Sinaloa para falar da dominação do país pelo tráfico de drogas; outros tratam da dança, sua primeira profissão, como o que publicou sobre a experiência de dar aulas por seis meses em estúdios sem espelho na Escola Nacional de Dança de Cuba. Em comum, todos eles trazem vozes femininas como protagonistas.

Alma não estudou as autoras clássicas do feminismo, não é uma teórica e nunca se identificou como feminista. Com o advento do #metoo, teve uma primeira reação de incômodo: por que aquelas mulheres reclamavam tanto do que tinha acontecido a elas? Isso era absolutamente normal, afinal, sempre aconteceu, à própria Alma inclusive, diversas vezes. Mas então teve um estalo: e por que não? Por que elas (e Alma) tinham que aguentar caladas?

Ficou inquieta e, para pensar melhor, começou a escrever. O exercício virou o livro “Será que sou Feminista?”, que é lançado agora no Brasil pela Zahar. Em 120 páginas, ela prende a atenção do leitor numa linha de raciocínio ao mesmo tempo divertida e dolorosa, iluminadora e generosa. Fala de experiências pessoais, de marcos do movimento, de momentos históricos e de Marielle Franco, clara opositora ao retrocesso social e de costumes que vivemos hoje.

“Tentei escrever um livro que falasse exatamente contra a violência. As mulheres, que não passaram os últimos 20 mil anos fazendo guerra, podem oferecer uma estrada alternativa para mudar o mundo. A violência é circular e a não-violência é um caminho”, afirma na entrevista a Gama, direto de Bogotá.

As mulheres, que não passaram os últimos 20 mil anos fazendo guerra, podem oferecer uma estrada alternativa para mudar o mundo

  • G |Para quem você escreveu esse livro?

    Alma Guilhermoprieto |

    Normalmente, quando escrevo, penso em mim. Mas neste caso eu pensei em você. Eu queria escrever um livro que não fosse teórico ou complexo, que idealmente fosse curto. Escrevi para mulheres jovens latino-americanas muito especificamente, porque temos uma cultura em comum e eu queria ser compreendida. E, ao mesmo tempo, queria um livro que os homens pudessem ler. Isso era importante para mim.

  • G |E o que você ouviu deles?

    AG |

    Tenho oito amigos com idade entre 30 e 77 que leram, e a resposta foi boa. Eles meio que disseram “eu entendo mais agora depois de ler”, não se sentiram alienados. Eu não queria dizer “meu estuprador é você”.

  • G |No livro, você fala que não queria ter filhos, que tê-los roubaria sua liberdade. É uma afirmação muito forte, mesmo depois de tantos anos do advento da pílula. Você sente algum tipo de choque nas reações a essa afirmação?

    AG |

    Sim absolutamente. Tanto nas mulheres quanto nos homens, a reação é de um constrangimento até físico — tem um pulinho. Ainda hoje nós mulheres continuamos sendo amarradas a essa ideia de que, se não temos um filho, não contribuímos com o mundo. Mas já há muitos filhos no mundo, não precisamos de mais. Eu não sou a única a pensar assim. Nos países onde a pílula existe livremente, cerca de 50% das mulheres não querem ter filhos.

  • G |Esse estranhamento é algo localizado então? Não existe na Europa?

    AG |

    Lá as mulheres têm a real possibilidade de escolher. É um pouco trágico que tantas pessoas que querem ter filhos agora não consigam e, ao mesmo tempo, as mulheres que não querem tenham que ter porque não existe aborto legal ou acesso à pílula. A saúde pública da mulher não considera a decisão sobre o próprio corpo.

“Estatura normal demais? Bunda grande demais? Bunda chata
demais? Pele muito branca? Pele muito escura? As cirurgias, os
saltos, a moderna depilação genital, as dietas martirizantes, as
cintas que são um tormento: a moda, a dor e o controle andam
sempre de mãos dadas”

  • G |No livro você escreve sobre o tormento do ideal de beleza. É fácil entender e concordar com isso. Por que então ainda caímos no conto da moda e dos padrões?

    AG |

    Eu também caio! Como falo no livro, é muito difícil conciliar o desejo de ser livre com o desejo de ser desejada. Essa é a contradição para as mulheres que, como nós, vivem no cosmopolitismo, no mundo muito mais liberal. Esse conflito é muito forte.

  • G |Desejar ser desejada hoje parece algo quase proibido. O que você acha?

    AG |

    A Chimamanda [Ngozi Adichie, escritora nigeriana] diz que é uma “girlie feminist”, que gosta de se vestir para ela mesma. Que bom, se ela o diz… Mas é verdade também que eu tenho um gosto por coisas bonitas, brilhantes. E isso existe independentemente de ter um homem na minha vida ou não. Agora, quando entramos na área de dor, da mutilação ou da mudança mais radical dos corpos, aí é realmente algo feito para ser oferecido aos homens e é também uma maneira por meio da qual o consumo e o capitalismo vendem mulheres para os homens. “Esse é o tipo de mulher que você tem que desejar.” Quando eu morava no Rio, eu me lembro da loucura, mesmo nas favelas, das mulheres que diziam que queriam tirar uma gordurinha do peito para por na bunda. A modificação do corpo das brasileiras é uma coisa doida.

  • G |Pensei menos nas cirurgias plásticas, e mais nas dietas malucas. No fundo, a gente sabe que não faz sentido, mas continua caindo nessa ideia.

    AG |

    Me mostra uma mulher que não tenha feito uma dieta doida? Não existe. Todas caímos nessa porque todas vivemos assediadas pela publicidade. É uma atmosfera condicionante do nosso corpo, de nossa autoapresentação.

  • G |Você é uma escritora, uma jornalista, mas também foi bailarina. Como ter uma profissão em que o corpo era sua principal ferramenta mudou sua ideia de feminilidade e feminismo?

    AG |

    Sempre tive muita noção das contradições: se você é uma bailarina profissional você tem uma enorme liberdade de fazer seu corpo dizer coisas, falar. Mas, por outro lado, você tem a disciplina corporal mais feroz e dolorosa. Então essa contradição é o que as mulheres vivem precisamente: o corpo tem a capacidade de aceitar e receber prazer e ao mesmo tempo tem que se disciplinar constantemente. Sempre tive noção dessa dualidade.

  • G |Você acha que o seu trabalho de jornalista, que inclui situações de perigo, poderia ser feito por uma mulher que não era uma feminista?

    AG |

    Eu conheço muitas mulheres, feministas ou não, que foram tremendamente atraídas pela ideia de combate, por uniformes, por rifles. Muitas se juntaram à guerrilhas, meninas de 15 anos que entrevistei e diziam “a guerrilha veio à minha cidade e eu vi aquelas mulheres usando camuflagem e segurando rifles e disse ‘quero ser como ela’”. Vejo que é o poder que atrai. Você olha para homens com armas e pensa em poder. Quanto ao meu trabalho, o que o difere do de outros repórteres da minha geração é que, mesmo que eu não estivesse consciente sobre o feminismo, eu sempre quis saber como as mulheres vivem. Homens e mulheres jornalistas ignoraram 50% da população — as mulheres — em suas reportagens. Isso só mudou nos últimos dez, 15 anos. Inconscientemente, éramos todos sexistas.

“Discuto comigo mesma o tempo todo a respeito do #MeToo, estou atenta ao mau uso que se pode fazer de um instrumento maciço como esse, mas apesar de seus perigos, sua existência e seu feito são motivos de grande alegria para mim: permitiu que milhões de mulheres, finalmente!, ganhassem coragem para denunciar ataques pelos quais antes se sentiam culpadas”

  • G |Quando você acha que se conectou mais ao feminismo?

    AG |

    Fiquei ciente numa idade muito jovem, mas foi o #metoo que fez com que eu me questionasse. Num primeiro momento, reagi, como muitas mulheres da minha geração, me perguntando: “Sobre o que elas estão reclamando? Nós tivemos que aguentar isso e muito mais, coisas piores. E se eu não protestei, por que elas se queixam tanto?”. Até que finalmente me bateu: por que elas deveriam aguentar? Por que eu aguentei? Não havia nenhum sentido. E foi por isso que digo no livro que, para ser uma feminista de verdade, você tem que começar com uma ferida própria. Do contrário, você não é honesta consigo mesma. E aí você pensa “Puxa vida! Todas essas coisas e eu nunca disse nada”. E isso é um processo doloroso, mas no final tremendamente libertador.

  • G |Como foi esse processo de resgatar sua própria ferida na memória?

    AG |

    Como uma repórter, eu estou muito acostumada a não pensar em mim mesma. Você está se sentindo mal? Bem, sinto muito. Se você precisa atuar em uma situação problemática ou perigosa, bem, você tem que ir porque é o seu trabalho. Quando eu tenho uma ideia de reportagem e não consigo parar de pensar, preciso escrever para ter mais clareza. Escrever este livro para mim foi um processo de descoberta.

  • G |É engraçado você mencionar o #metoo como um ponto de virada para você. Ao ler o livro, achei que ele a incomodava por ser fruto das redes sociais.

    AG |

    Expliquei, mas não o suficiente. No livro, digo que noto algo que me incomoda no #metoo e que não sei o que é, até que percebo que não é o movimento em si, mas todo o jeito de operar das redes sociais. Eu não gosto delas ponto final, porque acho que deixam as pessoas loucas. São potencializadores da loucura, da raiva, da autopiedade. A mentalidade de máfia é muito mais poderosa lá do que na vida real e é mais forte que a voz da razão, que fica muito pequena. Ela existe, mas o Trump foi presidente. E aí vocês têm o presidente Bolsonaro. É um fenômeno perigoso. Mas, se não fossem as redes sociais, o #metoo não existiria. Então é um paradoxo.

  • G |Como você vê a performance das mulheres mudar desde que foi uma repórter em El Salvador até agora, na era do #metoo?

    AG |

    Não há a menor comparação. As batalhas que as mulheres lutaram e ganharam são definitivas. Mesmo que agora, na quarentena, vejamos um retrocesso, não há retorno na consciência básica de que as mulheres são seres humanos e que, logo, podemos lutar contra o que está errado. O medo em relação à possibilidade da mulher lutar trouxe muitos avanços, mais do que a minha geração foi capaz de obter quando estávamos lutando simplesmente para sermos reconhecidas. Penso nos homens que fazem hoje mais trabalhos domésticos — achava que isso nunca aconteceria.

“É possível ser exclusivamente ou prioritariamente feminista? O que é mais importante, companheiras: o fim do mundo ou os problemas das mulheres?”

  • G |No livro, você fala que, no passado, cansou de ouvir a pergunta: o que é importante, o problema das mulheres ou a revolução? E agora a questão é salvar o planeta. Como resolver esse dilema?

    AG |

    Quando escrevo, tento não dar respostas, mas perguntas. Mas, desde que terminei o livro, não consegui parar de pensar nisso. E a resposta é simplesmente: nós temos que ter um papel igualitário na luta pelo planeta. Não é uma questão de quem vem primeiro, mas de sermos mulheres com poder para conseguir lutar por mudanças urgentes no mundo.

  • G |O que você acha da briga entre os diferentes feminismos?

    AG |

    Eu tenho duas posições contraditórias. Vejo que a luta de um setor de mulheres não é inimiga da luta de outras mulheres, com outras reivindicações. Lutar umas contra as outras é idiota, uma perda de energia imensa, um presente para os machistas. A outra resposta é que eu concordo muito com as feministas negras, indígenas e latinas dos EUA, que dizem que as mulheres brancas não estão lutando por elas de maneira igualitária e não deveriam dizer para elas como lutar. Eu concordo completamente.

  • G |Você acha que de alguma maneira as feministas brancas entendem isso?

    AG |

    Acho que particularmente nos EUA, onde o movimento de feministas negras tem ficado muito forte e tem representatividade em níveis muito altos, com a vice-presidente Kamala Harris, as mulheres brancas já receberam uma lição de alguma forma. Mas não sei se isso já aconteceu na América Latina.

  • G |Se você tivesse que explicar para um alienígena o que é uma mulher, o que você diria?

    AG |

    Eu diria que uma mulher é metade da espécie humana. À diferença do homem, tem dois peitos e um aparelho reprodutor capaz de portar uma criança. Diria que a mulher é tão necessária para a existência da humanidade quanto o homem. Somos as duas metades do que é possível.

*Os trechos em destaque que permeiam a entrevista são parte do livro “Será que sou Feminista?”

Produto

  • Será que Sou Feminista?
  • Alma Guillermoprieto
  • Zahar
  • 120 páginas

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