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ReportagemComo a religião deve ser abordada nas escolas?
Para especialistas, instituições de ensino devem tratar o tema, complexo e delicado, como um fenômeno social, de forma laica, com equilíbrio, diálogo e respeito à diversidade religiosa
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Como a religião deve ser abordada nas escolas?
Para especialistas, instituições de ensino devem tratar o tema, complexo e delicado, como um fenômeno social, de forma laica, com equilíbrio, diálogo e respeito à diversidade religiosa
Em um país gigantesco, populoso e tão diverso quanto o Brasil, onde mais de cem tradições religiosas coexistem — não sem preconceitos ou guerras de narrativas —, a questão sobre como a escola deve abordar a religião com crianças e adolescentes volta ao centro do debate de tempos em tempos, suscitando discussões que vão além de um simples item do currículo. Os pontos em torno do assunto passam por dogmas, intolerância, respeito à diversidade, moral e a laicidade do Estado.
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Cenário posto, a pergunta central é: de que forma instituições educacionais podem tratar desses temas complexos sem deixar de lado o papel inclusivo da educação?
Segundo a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), as escolas públicas do fundamental têm a obrigação de oferecer o ensino religioso; a matrícula na disciplina, porém, é facultativa. E, além disso, o conteúdo deve prezar a pluralidade, sem proselitismo. Em 2017, no entanto, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) permitiu o ensino confessional, ligado a um credo específico, o que gerou controvérsias.
Já a rede privada tem autonomia para decidir como adentrar nessa seara — algumas até são vinculadas a determinadas religiões, como entidades católicas, adventistas, evangélicas e judaicas. Em ambos os casos, o desafio é imenso, e o mesmo: garantir que a multiplicidade e a liberdade de crenças sejam respeitadas, criando um ambiente de aprendizado vasto, que inclui todos os estudantes.
Religião, diversidade e respeito
A escola, como reflexo da sociedade, precisa ser um espaço de convivência respeitosa entre diferentes crenças, perspectivas de vida e culturas. É o que acredita José Antonio Miranda Sepúlveda, professor do programa de pós-graduação em educação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenador do Observatório da Laicidade na Educação. Para ele, a proposta de tornar o ensino, de fato, laico é justamente retirar ou minimizar o impacto da intolerância religiosa no ambiente escolar.
Prefiro dizer respeito religioso. As pessoas têm o direito de ter a religião que quiserem ou não ter religião nenhuma
Nesse contexto, Sepúlveda, inclusive, prefere não usar o termo “intolerância” porque a palavra geralmente é entendida a partir de um viés mais negativo, no sentido de aguentar ou suportar algo. “É uma coisa menor. Prefiro sempre dizer respeito religioso. Afinal, as pessoas têm o direito de ter a religião que quiserem ou não ter religião nenhuma”, afirma.
Conforme o docente explica, a dificuldade de colocar em prática o conceito da laicidade tem bases culturais históricas no país. “A escola foi organizada dentro do universo religioso, da formação jesuíta, das igrejas, das ordens religiosas que vieram para cá e passaram a controlar o processo educacional, principalmente no período imperial. Isso criou uma raiz forte e profunda. Tanto que, todas as vezes que o Brasil tentou retirar a obrigatoriedade do ensino religioso, muitos problemas surgiram.”
Lavini Castro, que leciona história nas redes pública e privada do Rio de Janeiro, além de coordenar a Rede de Professores Antirracistas, acrescenta que esse nosso passado ajuda a repelir tudo o que difere da estrutura judaico-cristã.
“Ensinamos sobre a reforma protestante, a era da cristandade, colocamos Jesus na manjedoura, falamos sobre o Natal, ou seja, tudo atrelado à religião. Mas, se a proposta for conversar sobre religiosidades indígenas ou afro-brasileiras, se você quiser trazer outras pautas religiosas, aí não pode, porque a escola é ‘laica’. É uma confusão danada”, comenta. Bagunça essa que dá lugar à intransigência.
Essas resistências são sintomas de preconceitos incrustados na sociedade que, consequentemente, contaminam o ambiente escolar. E a escola, de acordo com Castro, tem um papel crucial na promoção do respeito à diversidade e no combate à intolerância religiosa por meio de projetos político-pedagógicos que abordem diretamente o racismo religioso e a discriminação contra certas religiões, como as de matriz africana.
“Apresentar dados estatísticos e históricos, contextualizar a colonização, fazendo uma fala para sensibilizar os alunos que têm religiões diferentes, para que aprendam a conviver de forma harmoniosa, é essencial”, frisa a professora.
Assuntos cristãos têm espaço, entretanto, se você quiser trazer outras pautas religiosas, aí não pode, porque a escola é ‘laica’
Desafios do cotidiano escolar
Mas, educadores e educadoras enfrentam dificuldades, tanto dentro quanto fora da sala de aula. Roseli Fischmann, professora emérita da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), aponta que, no ensino médio, período em que “os debates tendem a ser mais interessantes e complexos”, o preparo docente deve ser maior.
Nas séries finais do ensino fundamental, a atividade dos professores exige cuidados especiais, sobretudo na escuta do que trazem os estudantes adolescentes, que estão começando a compreender que o mundo é maior e mais amplo do que os espaços que conhecem. Já nos anos iniciais do fundamental, segundo Fischmann, é importante se inteirar da realidade das famílias para não criar conflitos e, ao mesmo tempo, abrir perspectivas.
“Sucede que professoras e professores, lamentavelmente, estão longe de contar com condições de trabalho que permitam o desenvolvimento de todo o preparo que precisam buscar, não apenas de conhecimentos, mas das situações de vida das turmas com quem trabalham”, observa. Sem informações adequadas, o risco de reforçar estereótipos, em vez de combatê-los, é grande.
Portanto, para que o ensino religioso nas escolas promova efetivamente a diversidade de religiões e culturas, é primordial que os professores tenham não apenas uma sólida formação acadêmica, com cursos de extensão e disciplinas voltadas à laicidade e à pluralidade de credos, mas também uma vivência pessoal que reflita experiências cordiais, não autoritárias, em ambientes ligados a diferentes modos de crer — e de não crer.
Problematizamos com as famílias essas questões, mostrando que são expressões culturais, não dogmas
Doutora em psicologia escolar, Luciana Fevorini, diretora do Colégio Equipe, de São Paulo, conta de que maneira a escola em que dirige lidou em ocasiões delicadas, como quando mães e pais evangélicos demonstram resistência à participação dos filhos em atividades como as aulas de capoeira, frequentemente associada à religião. “Problematizamos com as famílias essas questões, mostrando que são expressões culturais, não dogmas”, diz.
Em alguns momentos, a família entende e aceita, diz Fevorini. “Em outros, não, e a gente também aceita, respeita e tenta fazer com que a criança tenha algum tipo de participação que os familiares achem pertinente.”
Laicidade: princípio e prática
A laicidade é um princípio garantido pela Constituição Federal, mas, na prática, no dia a dia da escola pública, o conceito é usado de forma “confusa, errática e, muitas vezes, conflitante com o caráter laico do Estado”, explana Roseli Fischmann.
Uma das principais vantagens da laicidade na educação, para os especialistas ouvidos pela Gama, é assegurar que a escola não seja um espaço de imposição de crenças religiosas e, sim, um lugar de respeito, acolhimento e conhecimentos diversos. No entanto, a realidade muitas vezes se distancia desse ideal.
“Vejo a laicidade como um dispositivo político de respeito às manifestações religiosas e às não manifestações religiosas, na escola e na educação”, constata o professor José Antonio Miranda Sepúlveda.
Ele menciona que a laicidade, para alguns, é vista como alguma coisa referente ao ateísmo ou ao agnosticismo, uma antirreligião. “E a maior parte do tempo o meu trabalho é mostrar o contrário. Trata-se exatamente do instrumento que dá liberdade para que a pessoa tenha a religião que quiser.” É uma maneira de proteger as pessoas e suas religiões, principalmente as minoritárias, assim como quem não tem religião.
O que deve ser abordado é a estrutura das religiões como fenômenos sociais
Sérgio Azevedo Junqueira, pedagogo e especialista em ciência da religião, adiciona que a obrigatoriedade do ensino religioso no currículo das escolas públicas brasileiras, garantida pelo artigo 210 da Constituição, cria tensões. “O que deve ser abordado é a estrutura das religiões como fenômenos sociais”, defende.
Além de integrar o estudo da religião em disciplinas como história, filosofia e geografia, sempre com enfoque cultural e não dogmático, conforme os profissionais listam. Esse procedimento ajuda os estudantes a entenderem as conexões entre religião, política e sociedade. “A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) trouxe avanços ao propor uma abordagem que valoriza o conhecimento sobre as religiões como um fenômeno sociocultural”, analisa Junqueira. “Isso dá aos alunos ferramentas para compreender e interpretar o mundo ao redor”, completa.
“Não que o saber religioso não seja importante, mas a religião deve ser tratada na escola como uma manifestação sociológica, filosófica e histórica; e que faça parte das disciplinas — e não seja um conteúdo em si mesma para discussões sobre religiões específicas”, pondera Sepúlveda.
Até porque, explica, “é impossível falar sobre a história do Brasil sem falar dos jesuítas, assim como é impossível falar de filosofia sem citar a escolástica”. “Quer dizer, a religião já está presente na escola. O que precisamos fazer com isso é trabalhar para que o respeito seja garantido, sem que haja proselitismo religioso”, conclui o coordenador do Observatório da Laicidade na Educação.