Primeiro diretor Yanomami fala sobre cinema e Marco Temporal — Gama Revista
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Marília Senlle

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Depoimento

Morzaniel Iramari: "Nós estamos morrendo ainda. Existem invasores trabalhando na terra Yanomami"

Primeiro cineasta Yanomami, ganhador de dois prêmios no Festival de Gramado deste ano, luta por visibilidade e proteção ao seu povo

Em depoimento a Emilly Gondim 03 de Setembro de 2023

Morzaniel Iramari: “Nós estamos morrendo ainda. Existem invasores trabalhando na terra Yanomami”

Em depoimento a Emilly Gondim 03 de Setembro de 2023
Marília Senlle

Primeiro cineasta Yanomami, ganhador de dois prêmios no Festival de Gramado deste ano, luta por visibilidade e proteção ao seu povo

“Em 1986, Davi Kopenawa, líder do povo Yanomami, começou a lutar pelos direitos Yanomamis. Em 1991, ele conseguiu demarcar nossas terras. Quando vieram oficialmente demarcar, muitos jornalistas e repórteres com câmeras vieram gravar Davi.

Eu, Morzaniel, tinha 6 anos, não conhecia câmera e nem sabia que aquilo fazia imagens e filmes. Então, eu olhava aquelas pessoas que estavam entrevistando Davi Kopenawa Yanomami, com curiosidade. Na época eu não sabia nenhuma palavra em português, não tinha nenhuma experiência. Eu olhava aquelas câmeras grandes que os jornalistas carregavam enquanto as pessoas dançavam e faziam cerimonial e não fazia ideia do que aquelas coisas faziam.

Até que depois, outro repórter de São Paulo veio. Ele era jovem, e trouxe TV e câmeras. Ele gostou muito dos Yanomamis, fez amigos e se apaixonou por nós. Então, quando ele se apaixonou, começou a juntar meus parentes para caçar na mata e eu fui acompanhar. Na caçada, nós sentamos e eu fiquei ao lado dele. Aí ele começou a mostrar e falou ‘ei você aqui, preste atenção nas imagens que eu acabei de filmar’.

Eu perguntei: ‘isso é filme? Imagem? Nós estamos aqui sentados como eles estão lá dentro da máquina? Como elas conseguem capturar a imagem? Como?’. Eu fiquei pensando muito sobre isso.

 ‘Mãri Hi – A Árvore do Sonho’ (Morzaniel Iramari)

Depois de uns quatro anos eu conheci a cidade pela primeira vez. Acompanhei meu pai em Boa Vista e ainda não falava português. Meu pai voltou para a aldeia e eu fiquei sozinho. Lá encontrei camêra que revelava, hoje não tem mais dessa. Comprei a câmera. Eu nem tinha ideia de onde revelar, só comprei.

Não tinha noção de plano geral, plano fechado, plano aberto, eu não tinha isso, não tinha estudado, eu só queria tirar fotos. Aí depois que eu comecei a fotografar não parei até minha câmera quebrar.

Nunca mais esqueci a câmera. Sonhava sempre. Esse era meu sonho, usar câmeras grandes como a dos jornalistas. Acordava e pensava: ‘eu estava com câmera, por que? Cadê minha câmera?”. Eu queria ser fotógrafo Yanomami e me perguntava ‘será que eu vou aprender? Eu vou aprender!’.

Na época, o governo fez um projeto chamado ‘Pontos de cultura’. Veio um fotógrafo, ele trouxe tevê, câmeras, vídeos em fitas, tudo para mostrar e ensinar dois Yanomamis. Eu comecei a ver eles com câmeras e questionei ‘por que eu não estou com câmera? Eu tenho muita vontade de aprender, por que eles não estão me dando? Por que eles não estão me ensinando?’.

Aí, eu cheguei perto e falei: ‘vocês estão pegando imagem?’
O fotógrafo respondeu: ‘tô filmando’
Eu: ‘E como vai ser depois?’
Ele: ‘Depois vamos fazer filme’
Eu: ‘Como filme? O que é filme?’
Ele: ‘Filme é imagem, depois eu vou colocar o vídeo para vocês assistirem. Aqui tem televisão?’
Eu: ‘Sim, aqui tem televisão’
Aí ele botou primeiro o seriado estadunidense “Filho de Geronimo” (1952) sobre a guerra contra indígenas nos Estados Unidos. Aí que começou a entrar na minha cabeça: Para que eu vou fazer filme?
ele falou: ‘Você vai defender seu povo, os Yanomamis. Se você fizer isso, é cinema.’
eu: ‘Cinema?’
ele: ‘É, você vai fazer filme para mostrar a realidade dos povos Yanomamis para as pessoas.’
Eu me senti preocupado.

Em 2009, aqui em Boa Vista, os diretores me convidaram para uma oficina de audiovisual. Eu não sabia o que era audiovisual. Eles falaram que eu ia aprender a tirar foto. Eu não conseguia responder, só pensava ‘Será? Será que eles vão me dar camera?’.

Quando chegou o dia, eu fui muito feliz. Na hora da aula tinha várias câmeras na mesa. Eu fiquei impressionado ‘Tudo isso de câmera?’, eram todos os modelos que poderia imaginar. O professor começou a falar assim: ‘Agora, Morzaniel, você vai receber seu kit’. Eu não conseguia falar. Foi naquele momento que eu consegui pela primeira vez pegar uma câmera para mim, com as mãos tremendo, porque eu tinha muitos sonhos. Até hoje tenho muitos sonhos. E este foi o primeiro a ser realizado.

Eu nasci para pegar em câmera, para poder fazer os filmes do meu povo

Cresci pensando em câmera. Minha mãe é Yanomami, não fala português e nem conhece a cidade, então eu não contava nada para ela e nem para o meu pai. Os Yanomamis tem sonhos, eles sonham com a floresta, com a caça, com nossas tradições e nossos deuses. Mas, eu nasci para pegar em câmera para poder fazer os filmes do meu povo.

Em 2017, eu fui para São Paulo para a minha primeira mostra realizada pela prefeitura. Nós fomos mostrar o meu filme na periferia da capital, foi nesse momento que eu recebi muito preconceito, nas escolas e colégios. Já nas salas de cinema, não. Nestes festivais que estou passando não recebo nenhum preconceito, e se tiver as pessoas brigam com eles [os preconceituosos].

Eu sempre falo ‘Agora vou mostrar meu filme, do povo Yanomami. Não é para você ignorar e nem fazer preconceito, você tem que sentir, tem que se apaixonar e amar o povo Yanomami’.

 ‘Mãri Hi – A Árvore do Sonho’ (Morzaniel Iramari)

As pessoas têm valorizado isso. No Festival de Gramado, ganhei dois prêmios e tive a oportunidade de conhecer vários atores de novelas e filmes famosos. Todos eles pediam fotos comigo depois de verem meu filme, eles falavam: ‘Parabéns, continue defendendo seu povo com suas obras’.

Geralmente meu primeiro público é o meu povo, eles sempre assistem aos meus filmes e gostam muito. Mas este mais recente, o curta-metragem ‘Mãri Hi – A Árvore do Sonho’ (2023), que foi vencedor no Festival de Gramado, eles ainda não assistiram porque está com minha equipe, temos medo de vazar nas redes sociais, por isso estamos guardando. Mas meu povo me acompanha, eles sabem do meu trabalho.

Nos filmes, eu represento a Mãe-Terra que, para nós Yanomamis, continua viva. Porque nós estamos morando lá, estamos nos alimentando, fazendo caça, roçado, tomamos água, andando no mato numa boa e pescando.

As salas de cinema têm que conhecer mais dos Yanomamis

Eu continuo gravando filmes para continuar mostrando imagens do povo Yanomami. As salas de cinema têm que conhecer mais dos Yanomamis, que nós estamos morando lá e como nós vivemos. Nossa cultura, nossos costumes, nossas danças, aquilo que nos representa. Então, por isso continuo fazendo filmes. Para mostrar para o público nossa realidade. Não é para poder viajar e nem para ganhar dinheiro. Eu estou mostrando a imagem do meu povo para manter nossa vida como a dos nossos ancestrais.

O povo Yanomami está se sentindo muito triste e preocupado. Porque para nós, o Marco Temporal não é bom. Os exploradores não são bons, eles não trazem benefícios. Pelo que eu conheço do trabalho dos invasores, eles vão matar muito o povo Yanomami, vão destruir os rios, vão destruir a natureza. Vão matar nosso povo. Por isso, nós não queremos o Marco Temporal que está em votação em Brasília.

Eu sempre falo: meus filmes estão levando a história indígena, o nosso pedido de paz para vivermos sem perturbação e sem morte. O meu filme mostra que existe indígena morando nas terras. Eu espero que isso possa nos ajudar contra o Marco Temporal, a partir da conscientização. Porque o Marco Temporal não nos tratá educação, saúde, ou nossa vivência em paz no território demarcado. Na verdade, vão destruir mais a terra e matar mais Yanomamis.

 ‘Mãri Hi – A Árvore do Sonho’ (Morzaniel Iramari)

Quando o Bolsonaro assumiu como presidente e o governo exterior sumiu, passou a chegar muitas coisas erradas no território Yanomami. Mas, isso foi um processo que começou em 2016. Antigamente, nós não morria tanto dessa forma, só que o garimpo entrou na nossa terra e trouxe muitas doenças. Os grileiros trouxeram consigo a malária, gripes fortes e a doença diferente, a covid-19. Se os invasores não tivessem chegado perto, ninguém ia morrer desse jeito.

Eles também fizeram buracos grandes com maquinários e sujaram muito os rios. Por isso, nós começamos a morrer. Com a vinda deles também trouxeram bebidas alcoólicas, armas de fogo, prostituição e violência sexual. Por isso as mortes aconteceram e chegaram até o final das terras yanomamis.

Agora, em 2023, quando o governo Lula assumiu, o mundo pôde ver a crise que vivíamos. O Lula visitou a gente. Ele viu que aqui tinha muitos Yanomamis morrendo e garimpeiros na nossa terra. Ele fez promessas de tirar todos os invasores da terra Yanomami e ele cumpriu.

O Marco Temporal quer nos matar

Eu acompanhei pessoalmente o IBGE em todo o território Yanomami, de Roraima até o Amazonas. O governo começou a colocar vários médicos para cuidar do nosso povo. Com isso melhorou um pouquinho. Mas, até hoje não é suficiente. Nós estamos morrendo ainda. Existem invasores trabalhando na terra Yanomami.

O Lula quer resolver tudo, porém, ele não está conseguindo, o problema aqui é muito grande. No começo ele cumpriu a promessa, mas com o Marco Temporal [em julgamento no STF], os invasores retornaram, e nós ficamos doentes de novo.

Eu peço a vocês, não indígenas, para ajudar o povo Yanomami. Para vocês ouvirem o que temos a dizer, para vocês divulgarem no Brasil e para fora do Brasil a nossa realidade. Outros políticos querem acabar com o nosso povo Yanomami. O Marco Temporal quer nos matar. Não queremos Marco Temporal, é doença para nós. O povo Yanomami está vivendo na terra Yanomami e somos muitos, de Roraima até o Amazonas. Proteger nossa terra-mãe é nos proteger, é proteger o mundo.”