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Isabela Durão

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Reportagem

Um guia para quem odeia o verão

Em tempos de aquecimento global e temperaturas recorde, quem nunca se deu bem com o calor precisa lidar com verões cada vez mais quentes

Leonardo Neiva 07 de Janeiro de 2024

Um guia para quem odeia o verão

Leonardo Neiva 07 de Janeiro de 2024
Isabela Durão

Em tempos de aquecimento global e temperaturas recorde, quem nunca se deu bem com o calor precisa lidar com verões cada vez mais quentes

O jornalista e gerente de mídias sociais Otávio Oliveira, 35, sempre se sentiu mais confortável no frio. Entre as coisas que o incomodam no verão, estão o suadouro que surge ao andar apenas alguns metros sob o sol intenso, as rodelas de pizza que se formam invariavelmente debaixo dos braços e a impossibilidade de escapar do calorão na maior parte das situações.

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“Parece que o mundo inteiro é um pouco pior no verão”, pontua o jornalista, que vive em São Paulo. Apesar de não se declarar exatamente um fã do frio, especialmente quando este alcança temperaturas próximas de zero, considera que se proteger dele costuma ser mais fácil. “Prefiro botar um moletom, uma blusa, um cachecol, do que ir na esquina de chinelo e em dois minutos ficar suado.”

Mesmo passando longe de ser sua estação favorita, Oliveira também enfrenta dificuldade para escapar das pressões que geralmente acompanham esses três meses que concluem e iniciam todo ano aqui no Brasil. Afinal, ao contrário do que ocorre com ele, pesquisadores apontam que o verão traz estímulos para o nosso corpo e mente que induzem a maior parte de nós a nos sentirmos mais dispostos e felizes.

No caso de Oliveira, a pressão dos amigos para se divertir nessa época, assim como a noção de que as ondas de calor devem se tornar cada vez mais frequentes, vêm sendo motivos de constante ansiedade.

Parece que o mundo inteiro é um pouco pior no verão

“Meus amigos frequentam bastante o parque Augusta [em São Paulo], mas não consigo ir. Gostaria de estar lá com eles, fazer um piquenique, andar na Paulista, mas fico mal só de pensar no deslocamento”, conta o jornalista. “E a existência não vai melhorar a partir das ondas de calor deste ano. Vamos precisar nos divertir, viver nossas vidas, trabalhar e nos deslocar para outros lugares, apesar desse enorme desconforto.”

Oliveira faz parte de uma gama considerável de pessoas que, mesmo antes dos atuais recordes de temperatura, nunca curtiram os efeitos do verão. E não somente em relação ao clima, mas a quase tudo que engloba o período. Ou você nunca conheceu alguém que detesta ir à praia, reclama do trânsito, da areia, do excesso de turistas… em resumo, de quase tudo que envolve uma simples decisão como viajar ao litoral? Tem até quem, secretamente, cometa o maior dos sacrilégios: torcer para chover na viagem, para refrescar e não precisar passar os dias se abrigando debaixo do guarda-sol.

Segundo pesquisas sobre o tema, a maioria das pessoas prefere o tempo quente ao frio. Mas, se você se sente deslocado por não curtir essa época como boa parte dos seus amigos, saiba que a sensação também é perfeitamente normal. De acordo com o psicoterapeuta e professor de psicologia Armando Ribeiro, especialista em gestão do estresse, cada organismo recebe as temperaturas e variações climáticas de maneira distinta. Ou seja, a reação às temperaturas é única para cada pessoa.

Isso ocorre tanto por conta de fatores genéticos, relacionados à composição dos tecidos corporais, à capacidade de transpiração e à produção de hormônios de estresse térmico, quanto por questões ambientais. No segundo caso, a lógica é que pessoas mais expostas ao calor ou frio intenso ao longo da vida se tornam mais tolerantes a temperaturas extremas.

“O corpo dessas pessoas passa por um processo de adaptação chamado aclimatação. Durante a aclimatação, o organismo produz mais hormônios que ajudam a regular a temperatura corporal, como a aldosterona e a vasopressina”, explica Ribeiro.

Verão x Inverno

Seja nas redes sociais, numa mesa de bar ou no ambiente doméstico, qualquer lugar pode virar uma zona de batalha entre os defensores da estação mais quente do ano e os amantes da friaca do inverno. “Existe uma rivalidade meio besta, que a gente leva na brincadeira”, diz Oliveira. “Quando começa a temperatura intensa, já passo a mandar memes sobre o assunto para uma amiga.”

No entanto, o clima nos últimos anos pode estar tornando essa rivalidade não só vazia como fútil, na visão do jornalista. “Quando existem situações de calor extremo, como nesse final de ano, isso deixa de existir.” E fica complicado brincar quando nem todo mundo tem acesso a um ar condicionado, um ventilador ou a cobertores em períodos de temperaturas intensas. “Tanto os ‘caloristas’ quanto quem gosta mais do frio sabe que, numa situação extrema, deixa de ser saudável ficar falando disso em vez de pensar em formas de evitar que as pessoas morram.”

Ainda que o inverno hoje ainda seja responsável por mais mortes no mundo, especialistas acreditam que essa situação pode mudar no futuro

A diversão das viagens e das férias compõe apenas uma ínfima parte do período de calor que enfrentamos, especialmente quando as médias de temperatura estão cada vez mais elevadas no mundo. Mesmo numa cidade como São Paulo, onde os termômetros sobem consideravelmente menos que nas regiões Norte e Nordeste ou até na capital carioca, o calor excessivo afeta a rotina de trabalho e lazer com muito mais frequência do que o frio.

E, ainda que o inverno hoje ainda seja responsável por mais mortes no mundo do que o calor do verão, em especial nos lugares onde as temperaturas alcançam números negativos, especialistas acreditam que as mudanças climáticas e o aquecimento global podem acabar invertendo essa situação num futuro não tão distante.

“Claro que temos muito problemas com o frio. Mas este ano tivemos pouquíssimos dias com temperaturas abaixo de 10 graus, o que é muito desproporcional com o número de dias muito quentes”, lembra Oliveira.

O que vestir

O frio até tem lá suas vantagens. Uma pesquisa da revista estadunidense Scientific American revela, por exemplo, que, enquanto temperaturas mais baixas são melhores para o funcionamento da mente, o calor em excesso torna difícil pensar de maneira focada. E, quando se fala no clima, a crise também pode ser estética. Isso porque, para muita gente, o inverno é o momento de tirar os casacos, luvas, gorros e cachecóis do armário, num desfile cotidiano de moda que deixa para trás as camisetas, shorts e chinelos que são o uniforme do verão. “O inverno é ‘cool’, as pessoas se vestem melhor, tem todo esse folclore em torno do frio”, aponta Oliveira.

O jornalista também inventa moda, mas no sentido contrário. Ele se considera um pioneiro do uso de bermudas no dia a dia do escritório onde trabalhava alguns anos atrás. “Alguns setores ficaram mais flexíveis com vestimentas, veio um boom de startups, com uma cultura menos sisuda. Considero benéfico não só poder usar bermuda no trabalho, mas por flexibilizar a expressão pessoal.”

O período da pandemia e a ascensão do home office também significaram um passo importante para a libertação dos códigos de vestimenta profissionais — com exceção, é claro, daquela eventual troca de roupas para as reuniões por Zoom. Por outro lado, muita gente acabou tomando um choque de realidade com o retorno ao presencial, processo que Oliveira deve enfrentar em breve e que vem encarando com certo temor, não só pela questão da roupa.

“Vai ser um dos meus maiores sofrimentos”, considera. “Tem ar condicionado no escritório, mas levo uma hora para chegar no trabalho, então devo ficar esse tempo todo debaixo de sol, num Uber ou ônibus abafado. E nem todas as empresas estão dispostas a fazer concessões por conta do calor.”

O turista do contra

Se o litoral parece a resposta óbvia à pergunta “para onde viajar no verão?”, talvez deixe de ser assim nos próximos anos. Em uma coluna recente na revista Viagem e Turismo, a jornalista e escritora especializada no assunto Adriana Setti explora um fenômeno que tem ganhado força no setor nos últimos anos: a viagem para fugir do calor e de potenciais catástrofes naturais.

A tendência, segundo ela, ainda é muito mais forte no Hemisfério Norte — mas há respingos claros no Brasil. “Aqui, o principal medo das pessoas, mais do que a onda de calor, são as chuvas torrenciais”, afirma Setti, que é editora da plataforma Summer Hunter. O impacto da tragédia que aconteceu em São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, no início do ano, segundo ela, também tem feito com que os turistas evitem regiões com histórico de deslizamentos e alagamentos.

Com a possibilidade de chover ou de temperaturas de quase 50 graus, as reservas flexíveis de passagens e hotéis vão continuar sendo importantes

Outro ponto de atenção é a elevação do nível do mar, com muitas praias perdendo espaço de areia, e a água chegando a invadir a área urbana. “Frequento muito o litoral do Ceará, e ali o mar está avançando sobre as falésias, corroendo e derrubando cidades, com gente perdendo casas”, conta Setti. “Dá um medinho de se hospedar com o pé na areia, algo que já foi tão valorizado, mas pode passar a ser uma coisa temida em pouco tempo.”

Para quem já não curte o verão, buscar destinos alternativos em regiões de clima mais ameno pode ser inclusive uma forma de evitar inconvenientes, seguindo uma tendência que vem se fortalecendo em certas partes do mundo. Mas, mesmo que o turista prefira destinos típicos de veraneio, ainda é importante ter bom senso — não se expor ao sol em horários mais intensos, levar consigo sempre uma garrafinha de água etc. — e tomar certas precauções para que a viagem não vire perrengue antes mesmo de começar.

“O principal é, antes de reservar uma viagem, se certificar de como funciona o cancelamento”, diz a especialista. “Com a possibilidade de chover loucamente ou enfrentar temperaturas de quase 50 graus, as reservas flexíveis de passagens e hotéis vão continuar sendo tão importantes quanto na pandemia, coisas pelas quais vale a pena pagar mais caro já pensando no clima.”

Dicas para lidar com o calor

Para suportar o calor e manter a saúde em tempos de temperaturas extremas, independentemente da preferência por verão ou inverno, as recomendações tradicionais seguem valendo. Além do mantra eternizado na voz de Pedro Bial (“Nunca deixem de usar filtro solar”), atividades físicas como a prática de esportes ou o trabalho ao ar livre devem ser evitados, declara a médica de família e comunidade e pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados da USP, Mayara Floss.

O mesmo vale para aquela ida à praia com a intenção de torrar na areia, sem falar na importância crucial de se hidratar constantemente. “O mar até ajuda a aclimatar. Mas, se estamos numa onda de calor, às vezes a pessoa se esquece de beber água, acaba ficando só no álcool e ainda fazendo alguma atividade física… Isso tudo pode colocar o indivíduo em risco”, aponta a especialista.

A relação com o calor é também de políticas públicas. Ambientes muito quentes como as cidades, precisam ter mais árvores

Uma das principais sugestões de Floss é buscar ambientes mais frescos durante o dia, tanto dentro de casa, onde é recomendado abrir as janelas para ventilar apenas durante a noite, quanto fora — nesse caso, procurar espaços ventilados ou com ar condicionado, como lojas e shoppings. “Em outros países, já existem centros de aclimatação com ar condicionado, em que as pessoas vão para tolerar o calor”, explica.

A médica também recomenda auxiliar os mais vulneráveis, como crianças, idosos e pessoas com comorbidades. Para ela, no entanto, as autoridades públicas no Brasil têm tido dificuldade para cumprir o dever de amenizar o calor no cotidiano da população. “A relação com o calor é também de políticas públicas. Ambientes muito quentes como as cidades, por exemplo, precisam ter mais árvores”, afirma.

Além da falta de espaços públicos aclimatados, Floss enfatiza a necessidade cada vez mais urgente de treinar equipes médicas para atender casos de estresse por calor. “Já precisamos tratar o tema como um problema, para pensarmos desde em ações individuais até coletivas nesse mundo de mudanças climáticas, em que os impactos do calor serão cada vez mais comuns.”