O que atletas nos ensinam sobre coragem e determinação

O curitibano Joel Kriger precisou de quatro tentativas para subir a montanha mais alta do mundo, vulgo Everest. Por problemas técnicos e de saúde, não conseguiu completar a escalada em 2013, 2017 e 2018. Mais tarde veio a pandemia e complicou a situação, dificultando treinamentos para uma empreitada que por si só já exige muita preparação física. Ainda assim, o montanhista, que trabalha com comércio exterior, conseguiu se desdobrar para manter o condicionamento físico. Comprou equipamentos caseiros, aproveitou a academia do prédio e a piscina de um amigo para não perder tempo durante o confinamento. Em maio de 2022, veio a recompensa. A caminhada ao pico da montanha, a 8.849 metros de altitude, finalmente deu certo e o curitibano se tornou o 31º brasileiro a concluir a façanha. E um pequeno detalhe: na época, ele estava com 68 anos de idade.

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Neste início de ano, a trajetória do brasileiro mais velho — e um dos dez com idade mais avançada no mundo — a conquistar o topo do planeta diz muito sobre resiliência e mostra de forma prática que não existe momento certo para começar. Isso porque, apesar de ter praticado natação dos 13 aos 18 anos, Kriger levou nas três décadas seguintes uma vida sedentária. “Infelizmente, no Brasil, a idade elimina a pessoa tanto no mercado de trabalho quanto em termos de produtividade”, considera o montanhista. “Tento dar o exemplo possível, de que nunca é tarde para começar. Mas quanto mais tarde, vai sofrer um pouco mais também.”

A jornada de Kriger começou aos 50 anos, quando um amigo o convidou para um trekking ao campo base do Everest, que fica a mais de 5 mil metros de altitude. A partir desse momento, o curitibano iniciou uma rotina envolvendo natação e treinos aeróbicos intensos. Até hoje ele costuma acordar às 3h30 da manhã – “já tenho até a chave da academia”, diz – e treina por cerca de quatro horas, divididas entre natação, corrida e pedaladas. Às 8h30, está de volta em casa e pronto para iniciar mais um dia de trabalho.

O currículo do montanhista não se resume apenas ao Everest. Depois de uma trilha inaugural em Machu Picchu, no Peru, Kriger, até então “um cara sedentário da cidade”, como se descreve, levou 19 anos para completar os chamados sete cumes — as montanhas mais altas de cada continente, que incluem o Aconcágua, nos Andes, e o Kilimanjaro, na Tanzânia. Ele foi apenas o nono brasileiro a completar o trajeto.

“Cada um tem o seu Everest. Se você quer andar 5 km por dia ou correr uma maratona, tem que ter um projeto, escutar seu corpo, começar treinando, se preparando e colocando objetivos”, declara o montanhista. “Não resolvi fazer o que faço do dia para a noite, mas sou persistente. Poderia ter desistido quando não deu certo. A vida nem sempre dá certo. Sofremos reveses todos os dias, mas não podemos desistir de viver.”

Continue a nadar

“Continue se movimentando, continue se movimentando, continue se movimentando.” Esse é o conselho simples e direto do corredor americano Roy Englert, 99, para pessoas de todas as idades que não sabem como ser mais ativas fisicamente. Em maio de 2022, ele participou do Jogos Nacionais Sênior nos EUA, ao lado de dezenas de outros atletas, como documentado pelo New York Times. Muitos deles acima dos 75 anos só começaram a praticar o esporte na faixa dos 60.

“Corra todos os dias, mesmo que seja uma distância curta”, disse ao jornal a atleta Yvone Aasen, 90, vencedora na categoria de 50 metros. “Não consigo correr muito agora, mas, mesmo quando não puder mais correr, continuarei andando.”

Mesmo deixando de lado a questão da idade, a prática de esportes costuma estar sempre associada com resiliência e determinação, características importantes em mais um começo de ano. Como prega uma frase famosa da série da Netflix “Bojack Horseman” (2014-2020): “Todo dia melhora um pouco. Mas você tem que correr todo dia, essa é a parte difícil.”

E, quando entram no papo os esportes radicais, a exemplo do próprio montanhismo, parece que o sarrafo sobe um pouco mais. Isso porque os riscos de acidentes e ferimentos graves se tornam maiores quando falamos de grandes altitudes, terrenos acidentados e atividades que exigem o máximo do corpo humano.

Um dos fatos que acabam encobertos pela façanha de Joel Kriger é que ele sofreu uma queda feia e fraturou algumas costelas justamente no momento em que descia a montanha. “Os maiores acidentes acontecem na descida, porque a pessoa atinge o objetivo, perde a concentração e pode ocorrer um desastre.” Embora tenha sido resgatado e levado ao hospital, o esportista se recuperou sem grandes problemas. “O objetivo tem que ser começar e terminar porque, assim como na montanha, não basta só subir. Tudo que sobe tem que descer.”

Para muitos atletas, ao contrário do montanhista, a entrada no esporte acontece já na infância, numa brincadeira que vira profissão e comprometimento para toda a vida. Não seria exagero dizer que Pedro Barros, 27, medalhista de prata no skate parque nas Olimpíadas de Tóquio, por pouco não nasceu já com um skate nos pés. “Se em algum momento da minha vida não tive o skate presente, não me lembro. Meu pai me levava para as pistas quando eu tinha um ano de idade”, conta o atleta catarinense, que recebeu o primeiro skate direto das mãos de Léo Kakinho, uma das maiores lendas da modalidade no país.

Como ficou claro para muita gente ao longo da estreia da modalidade nas Olimpíadas, o skate, além de um esporte, é uma ferramenta de socialização. “Quando você está em uma competição, quer ganhar, mas não significa que não pode torcer também pelo oponente. Ele é seu adversário, não seu inimigo”, considera Barros. Hoje, através de sua marca LayBack, o atleta tem implantado escolas de skate para todas as idades em diferentes regiões do Brasil e investido em projetos sociais para popularizar o esporte nas periferias. “Quando você está aprendendo a andar de skate, ele te desafia a cada dia e com isso você adquire conhecimento de diferentes formas. Muitas vezes o que falta é a oportunidade.”

Mares agitados

Em fevereiro de 2022, o surfista brasileiro Vinicius dos Santos, 32, pegou a maior onda de sua carreira na vila de Nazaré, em Portugal, que ganhou projeção mundial por suas ondas gigantes. Mas não ficou só nisso. De acordo com o oceanógrafo Douglas Nemes, a onda, que pode ter chegado à impressionante altura de 29,68 metros — algo próximo de um prédio de oito andares –, é também a maior já surfada por um ser humano. Hoje, o recorde pertence ao alemão Sebastian Steudtner, por uma onda de 26,21 metros em 2020. Apesar de ter ganhado as manchetes no mundo todo, porém, o atleta ainda aguarda o reconhecimento da World Surf League e do Guinness num processo que pode levar até mais de um ano. “Nunca sonhei em quebrar um recorde, e sim pegar as melhores e maiores ondas da minha vida. Nesse aspecto já me sinto muito realizado.”

Assim como no caso de Kriger, a jornada do atleta catarinense em direção ao topo do mundo foi longa e acidentada. Desde os três anos de idade, quando começou a surfar em Imbituba (SC), cidade natal dos pais, até as três temporadas trabalhando como salva-vidas na Praia da Joaquina, em Florianópolis, ele foi juntando dinheiro para partir em direção a mares mais agitados. Foi assim que acabou nas águas do Havaí, onde passou a surfar ondas cada vez maiores.

Mas pegar onda em lugares como o recife Pipeline, conhecido por seu alto risco, também cobra seu preço. “Sofri acidentes terríveis. Quebrei meu pé no meio, bati a cabeça, ombro, cotovelo e perna contra o coral em diferentes ocasiões”, lembra Santos. “Mas eu estava realizando um sonho de criança, de surfar a onda mais perfeita, disputada e mortal do planeta“, lembra. Mais tarde, em Nazaré, lesões na cabeça, joelho e tornozelo também acabaram se tornando bastante comuns.

Segundo o surfista, só o amor ao esporte e ao oceano pode levar atletas a perseguir ondas gigantes. Mas nada disso é possível sem um intenso treinamento físico e psicológico. “Para atingir o nível de ondas que estou surfando, tive que ter muita fé, apoio de alguns amigos e consistência. Nos preparamos a vida inteira para surfar o Everest das ondas gigantes”, diz.

Santos estava na praia e chegou a presenciar a tentativa de resgate do surfista e amigo Márcio Freire, 47, brasileiro que morreu após sofrer um acidente nas águas — a primeira ocorrência fatal no local. “Seu legado deixou um grande impacto na nossa comunidade. Ele provou que é possível pegar só na remada ondas tão grandes que antes só eram acessíveis usando jet ski. Eu ainda era um adolescente e conseguia me visualizar surfando uma onda assim.”

Voos mais altos

Uma das primeiras coisas que o paraquedista Leo Orsini, 49, deixa claro é que ele não faz saltos na montanha. Praticante do paraquedismo desde os 19 anos de idade, foi também um dos pioneiros no Brasil na prática do wingsuit. Para quem não sabe, trata-se de um macacão tecnológico com asas embutidas, usado por paraquedistas para voos de alta performance, já que reduz drasticamente a velocidade da queda. Orsini vem saltando com a roupa desde 1999, mais ou menos na época em que as primeiras ficaram disponíveis no Brasil.

Orsini sempre saltou de aviões numa modalidade diretamente alinhada ao paraquedismo. “Nunca fiz base jump de wingsuit na vida”, esclarece. A explicação é necessário porque as pessoas costumam confundir o esporte com o salto de wingsuit das montanhas, prática não regulamentada e constantemente associada a acidentes fatais, o que ainda gera preconceito em relação ao esporte.

Membro da equipe vice-campeã de wingsuit acrobático em 2014 e um dos poucos instrutores da prática no Brasil, Orsini tem toda uma vida dedicada ao esporte. No total, foram 9.650 saltos, mais de 5 mil deles no traje especial, sem nunca ter sofrido um ferimento. Para se iniciar no wingsuit, a norma é que o atleta precisa ter ao menos de 200 a 400 saltos anteriores de paraquedas. Treinando na modalidade, são pelo mais 500 saltos para finalmente pular com os trajes mais avançados. “A evolução é gradativa. O tempo em que isso acontece depende de cada um, se você tiver tempo, habilidade e dinheiro”, explica o profissional.

O custo para se especializar no wingsuit não é baixo. Segundo Orsini, é precio desembolsar algumas centenas de milhares de reais com equipamentos, treinos e voos. E, num país como o Brasil, onde a prática é incipiente, o retorno financeiro é baixo até mesmo para quem se torna instrutor. “Qualquer atleta de ponta se frustrou muito mais do que qualquer outra pessoa. Para evoluir, tem que bater cabeça várias vezes e brigar. Só isso que faz com que vários continuem saltando mesmo depois de 30 anos no esporte.” Além disso, o que faz do wingsuit o “esporte dos recomeços” é o fato de a tecnologia do macacão se atualizar com frequência, revolucionando a modalidade de tempos em tempos. “Quando você chega lá, seis meses depois o esporte mudou. A gente brinca que é uma modalidade cruel, porque você nunca vai atingir o ápice.”

O próximo Everest

Nascida e criada na periferia de Campinas, no interior de São Paulo, Aretha Duarte, 38, entrou em contato com o montanhismo já na vida adulta, enquanto cursava a faculdade de educação física. “Ali surgiu uma grande paixão”, conta. Porém, por ser um esporte caro, a jovem acabou optando por trabalhar na área para ter a chance de praticá-lo. Em 2011, ela começou como vendedora numa operadora de montanhismo. Com o tempo, se tornou guia de montanhas.

Mas foi só em 2019, ao se deparar com imagens do branquíssimo Vale do Silêncio, que o Everest despertou seu interesse. Uma viagem para o Nepal cancelada devido à pandemia acabou gerando uma promessa: quando finalmente fosse ao Everest, a paulista tentaria chegar não apenas ao vale, que fica a cerca de 6 mil metros de altitude, mas ao topo de tudo. Fisicamente pronta para a empreitada, só o que faltava era levantar a grana para a viagem e a escalada, que podia chegar a 67 mil dólares.

Pensando em juntar dinheiro, Duarte, que trabalhou como catadora de latinhas na infância e juventude, voltou a atuar em 2020 com reciclagem de materiais, desta vez para levantar recursos. “O trabalho era muito exigente, eu tinha que lidar com muita gente e um volume gigantesco de resíduos. Mas me sentia motivada, com vontade de seguir em frente e tentar.” Ela contou ainda com uma rede de apoio composta por familiares, amigos e desconhecidos que passaram a ajudá-la nas redes sociais. Um ano depois, finalmente juntou o suficiente para a viagem.

Foram mais de dois meses fora do Brasil e, apesar de problemas como um princípio de edema pulmonar e uma queimadura de córnea, a montanhista se tornou em maio de 2021 a primeira mulher negra latino-americana a chegar ao ponto mais alto do mundo. Embora tenha iniciado o projeto com uma visão de conquista individual, Aretha logo viu que não estava tão só quanto pensava. “Comecei a ser seguida por mulheres que queriam se iniciar no montanhismo ou na conquista de seu Everest. Percebi que estava representando pessoas negras e da periferia num esporte extremamente elitizado”, relembra.

Para completar uma jornada dessas, a montanhista reforça que é preciso primeiramente ter resiliência e clareza de propósito. “E tem que tolerar a adversidade. Você vive por dias sem lugar para dormir, falta de banho, um frio abaixo de -30 ºC, onde nem a comida é como a de casa.” Hoje Duarte também atua em projetos de preservação ambiental, busca patrocínios para suas próximas jornadas e sonha em instalar paredes de escalada nas periferias de todo o Brasil — empreitada que ela considera muito mais desafiadora do que o próprio Everest.

Antes de chegar ao topo da montanha, Joel Kriger também sofreu reveses, desde uma forte pneumonia até óculos de escalada quebrados por seus netos, que acabaram frustrando outras tentativas. Atualmente, ele treina para atravessar a nado os 33 km do Canal da Mancha, que separa a Inglaterra da França. Na primeira oportunidade, também não conseguiu completar o percurso. Caso chegue ao fim em sua próxima chance, marcada para agosto de 2023, alcançará mais um marco. Aos 69, seria o brasileiro mais velho e um dos atletas com mais idade no mundo a conseguir o feito.

“Minhas atividades me deram uma qualidade de vida muito boa. No Brasil, acima de 65 anos a pessoa é considerada dependente, o que considero um insulto. O que interessa não é quantos anos tenho de vida, mas se ainda sou produtivo.”