Como a guerra entre Rússia e Ucrânia é noticiada na internet — Gama Revista
Como falar de guerra?
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Mariana Simonetti

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Reportagem

Viu o último post sobre a guerra?

O conflito Rússia versus Ucrânia é onipresente na internet, mas quais os perigos da mistura entre armas e curtidas?

Daniel Vila Nova e Manuela Stelzer 13 de Março de 2022

Viu o último post sobre a guerra?

Daniel Vila Nova e Manuela Stelzer 13 de Março de 2022
Mariana Simonetti

O conflito Rússia versus Ucrânia é onipresente na internet, mas quais os perigos da mistura entre armas e curtidas?

O primeiro veículo de imprensa a noticiar o fim da Segunda Guerra Mundial no Brasil foi a Rádio Tupi, munida de informações da Associated Press. A população carioca, no entanto, só foi celebrar o fim da batalha dois dias depois, quando o tradicional programa Repórter Esso confirmou a informação. Mais de 75 anos depois, a notícia de um novo conflito bélico chega ao Brasil – só que dessa vez não é um prestigiado veículo de imprensa que informa as novidades, e sim um perfil de rede social especializado em fofocas de celebridades e na cobertura do reality show Big Brother Brasil.

O perfil Choquei, que conta com mais de 1,4 milhões seguidores no Twitter, foi um dos primeiros a noticiar a invasão russa à Ucrânia. A mudança súbita na postura editorial, aliada a uma série de informações divulgadas pelo perfil que carecem de fontes confiáveis, chamou a atenção dos internautas, e o assunto se tornou um dos temas mais comentados no Twitter brasileiro. O Choquei, entretanto, não foi o único a se aventurar nas explicações sobre o conflito. Influenciadores digitais, como a apresentadora Rafa Kalimann, também deram seus dois centavos sobre a guerra que havia acabado de eclodir. A postura de tais produtores de conteúdo foi criticada por parte do público, que enxergou como uma tentativa barata de gerar engajamento com um tema delicado.

Cada vez mais, as redes sociais se tornam parte fundamental da maneira com que conflitos são percebidos ao redor do mundo. Na Ucrânia, influenciadores digitais estão gravando e postando vídeos que detalham o passo a passo da invasão. O embate chegou a ser apelidado de “guerra TikTok”, tamanha a presença do assunto na rede social de vídeos curtos. Se por um lado a exposição pode conscientizar o público sobre o que está acontecendo do outro lado do mundo, a natureza das redes sociais faz com que o imediatismo na hora de passar informações confiáveis seja potencialmente problemático. “Cada vídeo do TikTok é um pequeno retrato de um curto momento na linha do tempo, muitas vezes sem qualquer outro contexto”, afirmou o jornalista David French em entrevista à CNN.

Em meio à busca por engajamento e a incerteza e o medo do público, produtores de conteúdo buscam equilibrar informações e responsabilidade na hora de falar sobre conflitos e guerras. Gama conversou com quem navega no espinhento mar da cobertura política e buscou entender como uma guerra é noticiada na internet.

Com grandes poderes…

Se a máxima de que assuntos como política, futebol e religião não devem ser discutidas ainda existe, o engajamento do Google quando o assunto é política é a prova de que é hora de revisar a sabedoria popular. Sabrina Fernandes, doutora em sociologia e criadora do canal Tese Onze, que reúne mais de 400 mil no YouTube e traz análises sobre sociologia e política no contexto mundial, vê essa mudança de paradigma como positiva, mas ainda existem motivos para se preocupar.

Ao encarar o engajamento político da mesma forma que o engajamento de fofocas de celebridades, cria-se um nível de trivialidade para assuntos sérios. “É a normalização de um assunto que não pode ser normalizado”, afirma Fernandes. Em situações tão complexas quanto o embate de Rússia e Ucrânia, o cuidado de criadores de conteúdo deve ser redobrado. “Não há como falar sobre esse conflito sem trazer um contexto histórico aprofundado sobre os dois países.”

O falso especialista tem de ser combatido, mas isso não significa que somente quem tem um PhD na área pode opinar sobre o assunto

A importância da responsabilidade, no entanto, não significa que somente especialistas possam informar o público. “O que existe é a necessidade de algum tipo de filtro. Se alguém com milhares ou milhões de seguidores quer participar do processo informativo, é necessário beber de fontes confiáveis.” Na internet, é cada vez mais comum a posição de tudólogo – a pessoa que sabe de tudo, capaz de discursar sobre as propriedades da vacina, os conflitos no leste europeu e as decisões de um árbitro de futebol. “O falso especialista tem de ser combatido, mas isso não significa que somente quem tem um PhD na área pode opinar sobre o assunto”, diz Fernandes.

Enquanto divulgadora científica e política, o objetivo dela é criar pontes entre o meio acadêmico e o público geral. “O alcance gigantesco desses influenciadores pode colaborar com a difusão do conhecimento, a grande questão é a responsabilidade com o que se está falando.” Como exemplo positivo, ela cita o streamer Casimiro. Conforme as notícias da invasão russa eram compartilhadas, Casimiro interrompeu a programação cotidiana de sua live e trouxe um especialista sobre o assunto para falar sobre o conflito. O professor de política internacional Tanguy Baghdadi explicou para mais 130 mil pessoas o contexto histórico por trás da guerra entre Rússia e Ucrânia.

Segundo o próprio Casimiro, a ação de chamar um especialista para uma conversa aconteceu quando ele notou que seus espectadores estavam falando sobre o assunto de forma desesperada em seu chat. “Quando as pessoas gostam e confiam no seu conteúdo, elas querem que você traga análises e informações sobre todos os assuntos”, fala Fernandes. Ela relata que, quando diz que não tem conhecimento o suficiente para produzir um vídeo sobre determinado assunto, seu público fica chateado. “É importante normalizar a ideia de que, às vezes, nós não sabemos o suficiente para abordar determinados temas. Nem toda análise precisa ser imediata.”

Imperialismo, poder e ideologia

Fora do território de combate, há uma guerra fria (e online) acontecendo entre Ucrânia e Rússia, que extrapola os limites dos dois países. Nessa guerra híbrida, como define o consultor de comunicação e professor de jornalismo, informação e sociedade da USP Dennis de Oliveira, a disseminação de informações, sejam elas falsas ou verdadeiras, apenas condena Vladimir Putin e define o conflito como um embate entre “mocinhos e bandidos”. “Isso pressiona a opinião pública para que ela incrimine um lado e seja a favor do outro – não por uma questão humanitária, como a princípio pode parecer”, explica o professor, que é também pesquisador na área de cultura popular e movimentos sociais.

A transmissão ao vivo é uma conquista das telecomunicações. Sua conversão à lógica e à estética do consumo de massa é um risco para a democracia

Segundo ele, a guerra expressa as novas formas que o imperialismo exerce seu poder – tanto de maneira direta, por métodos armamentistas, como pelo universo online. A pouca neutralidade das redes, aponta Oliveira, mostra quais são os mecanismos de influência desse imperialismo. “Os boicotes a qualquer informação que vem do lado russo, o bloqueio à rede Sputnik [veículos de comunicação estatal controlados e pelo governo russo], por exemplo, são demonstrações de que as redes não são neutras.”

Assim, a disputa ganha uma camada ideológica, que se expressa no tipo de cobertura de cada conflito. Na guerra na Ucrânia são compartilhadas à exaustão atrocidades causadas pelos ataques russos, um estilo de cobertura, segundo o pesquisador, muito diferente daquelas feitas em outros conflitos que acontecem inclusive paralelamente. “Veja, não defendo a atitude da Rússia, mas não vimos esse tipo de noticiário, que enfatiza o aspecto humanitário, na invasão do Iraque, da Sérvia, ou mesmo no atual bombardeio à Somália e ao Iêmen, porque foram ações militares protagonizadas pelo chamado Ocidente”, conta. “Essa mudança é ideológica, porque numa você quer enfatizar o aspecto humanitário e condenar o país que está invadindo, e na outra, você trata a guerra como meramente um jogo e a desumaniza.”

Superexposição e banalização

Nas últimas semanas, não houve um único usuário que não tenha reagido, compartilhado, curtido ou comentado em uma publicação que falasse sobre a guerra na Ucrânia. O mundo se voltou para o conflito, e consequentemente, as redes sociais também. O problema é que a situação reúne “questões muito complexas para serem resumidas nos 240 caracteres do Twitter, por exemplo”, diz Dennis de Oliveira. “Existe uma complexidade de reflexão.”

As redes sociais funcionam como ondas.  Vai chegar um momento em que as pessoas vão parar de falar do conflito

Por mais que o mundo contemporâneo já tenha experimentado outros embates em sua história, Rússia versus Ucrânia é o primeiro com tamanha influência do universo digital. Tanto que os dois países e seus aliados tomam extremo cuidado com a imagem que passam na internet, por ela ser, de fato, uma arma poderosa e que influencia no andamento do conflito. O racismo relatado por ucranianos negros nos corredores humanitários, além de comentários preconceituosos de repórteres que noticiavam a guerra, por exemplo, foi algo muito falado, mas nem por todos.

Ainda que certos aspectos fiquem de fora, é nítido o espaço que o conflito conquistou nas redes e na vida das pessoas. Mas, de acordo com o doutor em geografia das relações internacionais e professor da Universidade Federal Fluminense Ricardo Luigi, a superexposição da guerra leva, muitas vezes, a uma banalização da batalha. “As redes sociais funcionam como ondas, então vai chegar um momento em que as pessoas vão se cansar dela, e parar de falar sobre isso”, explica. “Há uma tendência à naturalização de toda essa tragédia.”

Curtir ou não curtir, eis a questão

Uma vez dentro dos algoritmos, a guerra na Ucrânia passou a seguir a lógica binária, do curtir ou não curtir, que rege todas as interações entre usuários e publicações. “Isso dá margem a uma simplificação da compreensão do conflito, em que as pessoas acham que se trata de uma batalha do bem contra o mal”, conta Ricardo Luigi. “Quando na verdade, é um fenômeno extremamente complexo, um jogo de interesses geopolíticos e geoeconômicos que vai além da questão do sofrimento da sociedade civil.” Luigi afirma que, apesar do acesso à informação ser um ponto positivo das redes, tal informação acaba “não se transformando em conhecimento, vira apenas um conteúdo vazio”.

O conflito é um jogo de interesses geopolíticos e geoeconômicos que vai além da questão do sofrimento da sociedade civil

Há muitos perigos na cobertura de uma guerra pelas redes sociais. Como bem exemplifica o economista, sociólogo, jornalista, professor e pesquisador da USP Gilson Schwartz, “fazer uma live já é um lugar comum, faz parte dos nossos hábitos, e funciona tanto para um artista quanto para um terrorista prestes e degolar um prisioneiro”. O universo online e as transmissões ao vivo, em um contexto de conflito armado, tornaram parte do cotidiano compartilhar o vídeo de um homem que, enquanto gravava uma mensagem pedindo ajuda, registrou um prédio logo atrás de si ser atingido por um míssil.

A queda das Torres Gêmeas, em Nova York, inaugura o “teleshowrnalismo”, expressão cunhada pelo professor e jornalista José Arbex. “A transmissão ao vivo é uma conquista das telecomunicações. Sua conversão à lógica e à estética do consumo de massa é um risco para a democracia, para a justiça e para o enriquecimento da esfera pública.” Da Primavera Árabe ao sufocamento de George Floyd, muitos foram os eventos acompanhados pela mídia, em que, segundo o pesquisador, “as fronteiras da legalidade, da intimidade e da subjetividade foram apagadas sem maior responsabilidade”. E finaliza: “Nunca o ato de ‘compartilhar’ ficou tão perigosamente perto da perspectiva do ‘privatizar’ os olhares, as mentes e os corações”.