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ConversasMaya Eigenmann: "O caminho para educar é a conexão, não o autoritarismo"
Neuropedagoga e educadora parental fala sobre a educação positiva, método que propõe um vínculo mais respeitoso e igualitário entre pai, mãe e filhos
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Maya Eigenmann: “O caminho para educar é a conexão, não o autoritarismo”
Neuropedagoga e educadora parental fala sobre a educação positiva, método que propõe um vínculo mais respeitoso e igualitário entre pai, mãe e filhos
Métodos tradicionais de criação dos filhos, pautados pela hierarquia, em que pai e mãe mandam e a criança obedece — de preferência sem dar um pio —, têm ganhado companhias mais gentis, como a educação positiva, que visa transformar a relação entre adultos e crianças em um vínculo mais respeitoso e igualitário. Maya Eigenmann, neuropedagoga e educadora parental, explica que trata-se de uma abordagem estruturada nos pilares: teoria do apego, ciência do desenvolvimento humano, inteligência emocional, desenho original do ser humano e estudos sociais. Essas áreas, unidas, dão base para entender as necessidades emocionais, comportamentais e biológicas das crianças, incentivando o acolhimento e o respeito mútuo.
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O método, consolidado no Brasil em 2019, é construído sobre princípios que rejeitam o autoritarismo e incentivam a conexão. De acordo com a especialista, a educação positiva — também chamada de educação respeitosa, educação consciente e educação saudável —, propõe que os mais velhos, pais e responsáveis, em vez de “dominar” a criança, compreendam o que está por trás de comportamentos e emoções, regulando as próprias atitudes para guiar esse ser imaturo e em desenvolvimento com empatia e segurança.
“O primeiríssimo passo é entender que a mudança começa com o adulto. Quando a gente entende que o caminho para educar é a conexão, não o autoritarismo, o adulto vai ter que fazer um esforço para trabalhar as suas explosões e os seus gritos”, diz.
Não dá para dar conta sempre, até porque a gente está numa sociedade anti-família e antinaturalista, é muito difícil dar conta
Apesar de ser uma proposta empática e acolhedora, algumas vezes o modelo enfrenta críticas, especialmente de quem acredita que esse tipo de educação seja permissiva demais ou que dê voz excessiva aos pequenos. Para Eigenmann, essa é uma interpretação equivocada, já que a educação positiva não retira limites, mas os estabelece de forma compassiva.
“Criança tem que ter voz, sim. De onde tiramos a ideia de que ela tinha que ser silenciosa?”, questiona. E complementa: “Conseguir sustentar o limite, ao mesmo tempo em que você controla as suas emoções e acolhe o que a criança está sentindo, é difícil. Dá muito mais trabalho do que mandar, gritar e do que soltar, igual os permissivos fazem.”
Em entrevista a Gama, Maya Eigenmann, autora dos livros “A Raiva não Educa. A Calma Educa” e “Pais Feridos. Filhos Sobreviventes — E Como Quebrar este Ciclo” (Astral Cultural, 2022 e 2023), cita ainda os benefícios da educação respeitosa e elucida como os pilares da técnica podem ser aplicados no dia a dia.
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G |Em linhas gerais, o que é a educação positiva?
Maya Eigenmann |É uma área de conhecimentos multidisciplinares que foi consolidada e estruturada em 2019 por duas mulheres brasileiras, a pediatra Juliana Franco e a especialista em sono e apego seguro Lívia Praeiro. Elas reuniram conhecimentos de várias áreas e consolidaram o formato da educação positiva, estabelecendo cinco pilares: teoria do apego, ciência do desenvolvimento humano, inteligência emocional, desenho original do ser humano e estudos sociais.
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G |Como esses pilares são definidos?
ME |A teoria do apego é uma visão biológica e antropológica de como se dá o vínculo de um bebê com seu adulto cuidador primário. Na maioria dos casos, é a mulher quem cumpre esse papel, mas ele não está relacionado ao gênero, e a teoria mostra como esse vínculo seguro é saudável. A ciência do desenvolvimento humano olha para a neurociência, para a fisiologia e para a biologia, e serve como um alinhamento de expectativas para entendermos, por exemplo, que é natural uma criança fazer mais birra aos dois anos. A inteligência emocional foca traumas, emoções e a repressão emocional. O desenho original do ser humano é a base da nossa espécie. Ao contrário do que a sociedade diz, não nascemos com más intenções. Somos interdependentes, sociais e igualitários, mas nos perdemos. Uma prova é quando um recém-nascido chora sem medo, sem vergonha. Ele está com fome e chora. Já os adultos pedem desculpas ao chorar. O desenho original visa preservar essa originalidade para que as crianças não se tornem adultos como nós, reprimidos. O pilar dos estudos sociais enfatiza os recortes sociais, de gênero e raça, considerando, por exemplo, o trauma racial, uma violência direcionada à comunidade negra, assim como as violências do patriarcado, do machismo e da homofobia. Consideramos tudo isso porque, de fato, um adolescente LGBT passa por mais violências na sociedade do que um adolescente cisgênero.
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G |De que forma esses pilares se refletem na prática?
ME |Segundo a teoria do apego, é preciso estar disponível para o bebê o máximo possível porque ele depende completamente de um adulto. Com a ciência do desenvolvimento, percebemos o amadurecimento. Vamos saber que um bebê não compreende a palavra não e, por isso, você precisa encontrar outra forma de explicar as coisas, respeitando essa imaturidade. A inteligência emocional fala sobre as minhas sombras. Quando vejo o bebê chorando e me desespero, sem conseguir acolhê-lo, tenho de pensar o que isso diz sobre as minhas emoções.
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G |E como entra o recorte social nesse contexto?
ME |O recorte social vem para enxergarmos o contexto da família, especialmente a relação dual entre mãe e bebê. Compreendemos, por exemplo, que a mãe e o bebê precisam ser cuidados e protegidos. Eu digo mãe porque, estruturalmente, é ela a quem o bebê se apega. O discurso não é para sobrecarregar mais as mães, mas a realidade é totalmente desequilibrada, nociva e tóxica para as mulheres. Vivemos em uma sociedade predadora e anti-família, em que com quatro meses do bebê a mãe precisa voltar ao trabalho. Há políticos que falam que a família está acima de tudo, o que é mentira. Para eles, é dinheiro acima de tudo.
Descobri que existe um caminho de educar sem autoritarismo, com igualdade
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G |Você costuma dizer que a educação positiva salvou os seus filhos de você. Por quê?
ME |Eu vivia na dinâmica clássica da educação tradicional: uma mãe ditadora. Por um lado, quando os meus filhos faziam birra, eu achava que o certo era que pai e mãe deveriam mandar, e a criança tinha de baixar a cabeça. Por outro lado, eu via o meu descontrole emocional, a forma como eu gritava e me desesperava. Eu vivi esse cenário na infância e sabia que era doloroso, não queria replicar o modelo, mas não conseguia fazer diferente porque, nesse caso, força de vontade não é suficiente. Quando encontrei a educação positiva, descobri que existe um caminho de educar sem autoritarismo, com igualdade. Isso fez uma revolução na minha cabeça e fui me aprofundando, entendendo que ser abundante na relação com os nossos filhos é uma necessidade vital para as crianças, que precisam de relacionamentos abundantes para se tornarem pessoas seguras.
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G |É possível conciliar a aplicação da educação positiva em casa com a educação tradicional da maioria das escolas? A criança pode ficar confusa com diferentes tipos de respostas a emoções e comportamentos?
ME |Ela não fica confusa, simplesmente vai aprender onde pode ser mais autêntica, percebendo que na escola não há espaço para acolhimento. Não quero generalizar, vejo muitas professoras em um movimento bonito de acolhimento, mas é uma minoria. Quando a casa é um ambiente acolhedor e a escola, não, eu falo para as famílias que ainda bem que em casa é assim. Quantas crianças nem isso têm? Quantos de nós crescemos sem acolhimento nenhum, nem na escola nem em casa? E temos que lembrar que esse é um trabalho de redução de danos. Nós, adultos, lidamos com ambientes de trabalho desafiadores, mas chegamos em casa e podemos relaxar. Nossos filhos vão lidar com essas diferenças, como nós, só que eles terão mais habilidades para lidar com esse mundo. Eles saberão que em casa sempre serão bem-vindos, que é um ninho seguro. Vai ser um movimento diferente, mais saudável.
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G |Quais as possibilidades de aplicar a educação positiva dentro do contexto escolar?
ME |Há escolas que já adotaram a educação positiva. Outras estão buscando a educação positiva. E, mesmo que a escola não faça um trabalho 100% dentro do conceito, gosto de falar para as professoras que se formam comigo que o que elas estão fazendo é uma grande redução de danos. Talvez a escola toda não seja alcançada, mas aquelas 20 ou 30 crianças com quem elas têm contato diariamente serão beneficiadas. Cada família que escolhe a educação positiva é uma redutora de danos. Sabemos que não colheremos os frutos todos nesta geração, mas isso não nos impede de nos colocarmos em movimento.
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G |Como os adultos podem sair do chamado “adultismo” e adaptar as próprias atitudes e os seus comportamentos para aplicar a educação positiva efetivamente?
ME |O primeiríssimo passo é entender que a mudança começa com o adulto. E isso vai totalmente contra a visão tradicional que nós temos, na qual o adulto grita e a criança para. Quando a gente entende que o caminho para educar é a conexão, não o autoritarismo, o adulto vai ter que fazer um esforço para trabalhar as suas explosões, os seus gritos, abrir mão disso e falar: “Não quero mais me relacionar a partir do abuso, quero construir o respeito”. Para colocar em prática, o adulto vai precisar se aprofundar, fazer leituras, eventuais cursos, começar a se vulnerabilizar com as pessoas para criar novas conexões mais respeitosas. Os caminhos são vários, mas tudo isso só começará se o adulto entender que a mudança começa nele. Quando eu mudo, a minha criança consegue mudar também. Eu falo que o resultado da educação positiva se vê na reação do adulto. A criança continua sendo criança, ela continuará tendo comportamentos desafiadores porque ela é um ser humaninho com um cérebro que ainda não está maduro.
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G |Algumas pessoas criticam a educação positiva afirmando que o método é permissivo demais e dá muito poder de fala e de escolha à criança, que acaba entrando em debates grandiosos com os pais sobre assuntos banais do dia a dia ou a respeito de questões inegociáveis. Como você enxerga essas críticas?
ME |É uma pena achar que a criança tem que ter pouca voz. No mundo adulto, há vários exemplos de negociações que duram muito tempo. O Brexit levou quantos anos para acontecer? Então, essa fala é usada quando convém. Quando são assuntos importantes, achamos fundamental debater, mas para as crianças, tanto faz. Temos que entender que criança tem que ter voz, sim. De onde tiramos a ideia de que ela tinha que ser silenciosa? Agora, quando dizem que a educação positiva é permissiva, isso vem de uma dedução. Explico: conhecemos um modelo relacional hierárquico em que o adulto manda na criança, não conhecemos relações igualitárias. Por isso, o pessoal da educação tradicional escutou que o adulto não pode mandar na criança, e se o adulto não manda, a única outra opção é que a criança está mandando. E se a criança está mandando, é permissivo. Seria confortável se fosse mesmo permissivo, porque ser permissivo é a coisa mais fácil do mundo. Mas conseguir sustentar o limite, ao mesmo tempo em que você controla as suas emoções e acolhe o que a criança está sentindo, é difícil. A educação positiva dá muito mais trabalho do que mandar, do que gritar e do que soltar, igual os permissivos fazem. As críticas não me incomodam porque acho que toda mudança social vai gerar revolta em algumas pessoas.
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G |Como incorporar a educação positiva de modo que ela aconteça mesmo no meio de um surto da criança ou quando todos estão cansados?
ME |O foco sempre vai ser a redução de danos. Se estou percebendo que a criança vai explodir, e que eu também estou perto de explodir, preciso abrir mão da rotina e do limite, nesse momento, e focar no emocional. Às vezes, você não vai conseguir sair de cena para se acalmar. O ideal seria sair para tomar uma água e esfriar a cabeça. Quando não for possível, você vai ter que se regular, ao mesmo tempo em que regula a criança. Pode até acontecer de entrar em uma brincadeira de luta de almofadas. Você fala assim: “Eu estou com raiva, você também está. Bora descarregar isso?”. Levamos para esse lado pelo fato de não estarmos dispostos a abrir mão do respeito. Se está todo mundo cansado, e isso acontece aqui em casa também, talvez vai ser um dia em que você vai ficar menos disponível emocionalmente, mas está tudo bem, porque no dia seguinte você pode estar mais disponível. Não dá para dar conta sempre, até porque a gente está numa sociedade anti-família e antinaturalista, é muito difícil dar conta. Mas você pode se lembrar de todas as vezes que conseguiu dar conta e que esteve disponível para as suas crianças.
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G |Como pais que foram educados por meio da raiva podem observar essas atitudes e trabalhar para quebrar esse ciclo?
ME |A primeira coisa é identificar a sua raiva. Quando você está apertado para fazer xixi, você sente. Com as emoções é a mesma coisa. A gente só se desconectou do nosso desenho original. Por causa da repressão na infância, desaprendemos. Mas precisamos ficar atentos. Por exemplo, travar o maxilar, franzir a testa, o coração acelerar e os punhos cerrarem são eventuais sinais de raiva. Se você perceber um desses sinais, já é um alerta de que está subindo na escadinha da irritação e precisa ficar de olho para não subir demais e explodir. Enxergando os primeiros sinais, dê um passo para trás.
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G |Falar em educação positiva pode trazer culpa em pais que não conseguem aplicá-la. Como não deixar a culpa paralisar e transformar esse sentimento em ação ou em um processo de ajuste no modo de criar os filhos?
ME |Para a gente dar conta de oferecer para os nossos filhos uma infância do jeito que eles precisam, primeiro teríamos que ter recebido essa infância, segundo, precisaríamos viver numa sociedade centrada na infância e na família, com sistemas e políticas que favorecessem isso. Tendo isso em mente, vamos focar, de novo, na redução de danos. O que é possível fazer? O que você dá conta de fazer dentro desse cenário predador? Você trabalha das 8h às 18h, ou mais do que isso, e está sobrecarregado ou sobrecarregada. O que dá para fazer? Esse é o foco.
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G |Quais são os principais benefícios para crianças educadas sob a educação positiva?
ME |Meu filho tem nove anos e minha filha, sete, e eu consigo falar com eles sobre racismo, homofobia e a guerra na Faixa de Gaza. Falo sobre qualquer assunto porque eles sabem o que é respeito, eles vivem isso. O respeito que conhecemos na nossa geração é o medo. Não era respeito de verdade, porque respeito vem da admiração. Eu não queria que meus filhos crescessem com esse tipo de relação comigo. Então, o benefício maior é, de fato, esse respeito universal. É eles saberem que não podem ultrapassar o limite de outra pessoa, que o que eles acreditam jamais pode invadir o espaço dos outros e que eles também podem dizer não para quem invadir o espaço deles. São benefícios impagáveis. Quem me dera eu fosse uma mulher que soubesse sempre falar não quando tenho meus próprios limites atropelados e que eu tivesse crescido sabendo respeitar mais os limites de outras pessoas. Além disso, existe muito mais voz para os desejos da criança. Eu vejo as minhas crianças explorando os seus desejos e suas vontades muito mais genuinamente.
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