Luara Calvi Anic
Filhos: da barriga pra cabeça
Quando me vi enfiada naquele hospital eu tive enjoo, tontura e uma sensação ansiosa de preocupação. Criar um filho e mantê-lo vivo e saudável é braçal, emocional e caro
Não me considero uma mãe experiente. Tou nessa há nove meses. Mas sinto que posso dar minha primeira impressão: é um negócio extremo. Primeiro no quesito amor. Quando vejo uma mulher que acabou de parir, lembro imediatamente do jeito que eu olhava para minha filha quando ela nasceu. Chorava e ria, chorava e ria, chorava e ria. Era meu corpo meio em pane, indo de um extremo a outro tentando encontrar alguma expressão que desse conta daquele sentimento novo, que eu não conhecia.
Depois tem o fator cansaço: hoje, olho para as mulheres com seus bebês e penso “como ela deve estar cansada”. Lembro da minha infância e ouço a voz da minha mãe repetindo “cansaaaaaada”. Há séculos as mães estão exaustas – umas mais do que outras. Mas todas cansadas a partir de seus próprios parâmetros e condição social.
Eu e meu companheiro passamos cinco dias, entre eles o domingo de Carnaval, no hospital com nossa filha, que ainda é uma bebê. Ela teve uma infecção e foi internada. Hoje está bem melhor. Não vou esquecer dessa experiência porque, no meu caso, é a mais dramática que vivi relacionada a ela. Dizem que filho sai da barriga e vai pra cabeça. Verdade.
Quando minha filha nasceu meu corpo tentou encontrar alguma expressão que desse conta daquele sentimento novo
Quando me vi enfiada naquele hospital eu tive enjoo, tontura e uma sensação ansiosa de preocupação que tinha origem nos meus pensamentos. “Peraí que eu preciso sentar”, eu dizia cada vez que entrava uma médica pra dar o boletim do dia. É que minha criatividade paranoica imaginava os piores desfechos.
Criar um filho e mantê-lo vivo e saudável não é trabalho fácil. É braçal, emocional e especialmente caro. Não à toa há países em que existe um desconto no imposto de renda para quem encara essa tarefa. Na pandemia ficou mais evidente essa falta de apoio. Uma reportagem do New York Times apontou uma diminuição do interesse dos pais em terem mais filhos depois do período de isolamento. Nesses tempos de escolas e creches fechadas os pais daqui e de lá tiveram certeza de que estão sozinhos nessa.
“A nova percepção de quão pouco a sociedade valoriza as crianças e os pais – especialmente as mães – além do discurso da boca para fora foi um grande impedimento”, disse uma das entrevistadas sobre a desistência de ter um segundo filho. Essa mulher teve de pedir as contas do emprego porque não havia meios de ter qualquer ajuda com a criação. Foi mais uma no imenso número de mulheres que têm de abandonar seus postos e sonhos. No Brasil não é diferente: quase metade das que saem de licença-maternidade perdem o emprego depois de dois anos.
A pesquisadora e jornalista Bianca Santana escreveu um texto para a Gama em que falava desse tema e da realidade exaustiva das mulheres negras especialmente. “Mulheres negras limpam a casa da patroa no turno do trabalho mal remunerado e a própria casa nos momentos de descanso e lazer”, escreveu. Ela menciona a pesquisa “Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia“, que apontou que 50% das brasileiras passaram a cuidar de alguém durante essa fase: das crianças, de um idoso ou de pessoas com deficiência.
Criar um filho e mantê-lo vivo e saudável não é trabalho fácil. É braçal, emocional e especialmente caro
Oportuno falar do filme “A Filha Perdida”, que talvez seja a produção mais recente sobre o tema da maternidade – e também sobre cansaço das mães? A esta altura você já deve saber que é a história de uma mãe que vai embora. A personagem criada pela escritora Elena Ferrante está claramente exausta. No filme, diferentemente do livro que o originou, é bem mais ela que toca o dia a dia de duas meninas ao mesmo tempo que tenta focar no trabalho. Quando vejo a cena dessa jovem mãe fechando a porta para viver esse sabático da vida familiar eu entendo e me pergunto: se houvesse naquela casa uma tentativa de divisão de tarefas, para que ambos tivessem um tempo pra si, será que ela tomaria tal atitude?
Há uns anos, trabalhei numa revista feminina tradicional e lembro que sugeri que investigássemos uma tese que eu tenho: mães separadas e com guarda compartilhada devem ser mais felizes. Só assim para, em muitos casos, viverem uma real divisão de tarefas. A ideia não foi aprovada, mas se eu escrevesse hoje a personagem principal da matéria seria uma amiga que, no processo de separação, deu tchau para as crianças, pegou mala, glitter e um bom cropped e foi para o Rio curtir seu primeiro Carnaval carioca.
Eu disse a ela que lembrava da minha primeira vez ali, quando entre suor e muito suor (e ainda sem filhos), eu falei: “Uau, como é que eu não fiz isso antes”. Foi duro meu Carnaval hospitalar e fiquei com saudade do fervo, claro. Mas me senti feliz por essa amiga e também com o desfecho da minha primeira vez num PS pediátrico. Saí de lá com minha pequena recuperada e na torcida por carnavais mais carnavalescos.
Luara Calvi Anic é jornalista, editora-chefe da Gama revista, onde coapresenta o Podcast da Semana. Foi livreira, editora de cultura e comportamento da ELLE e de outros títulos da Editora Abril, repórter da Trip/Tpm e colaborou com Folha de S.Paulo e Marie Claire. Atualmente, cursa mestrado em ciências da comunicação pela ECA-USP
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