O PF brasileiro vai mudar? — Gama Revista
Como a crise climática afeta o seu PF?
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Isabela Durão

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Reportagem

O PF brasileiro vai mudar?

Com as mudanças climáticas prejudicando o cultivo e aumentando preços de alimentos como o arroz, a refeição diária do brasileiro pode estar com os dias contados

Leonardo Neiva 14 de Julho de 2024

O PF brasileiro vai mudar?

Leonardo Neiva 14 de Julho de 2024
Isabela Durão

Com as mudanças climáticas prejudicando o cultivo e aumentando preços de alimentos como o arroz, a refeição diária do brasileiro pode estar com os dias contados

As enchentes que, entre abril e maio, atingiram o Rio Grande do Sul, estado que responde por 70% da produção de arroz no Brasil, geraram o temor do desabastecimento e encarecimento do produto no mercado nacional. Entre o fim de 2023 e início de 2024, o excesso de chuvas chegou a reduzir a produtividade da safra de feijão no sul e sudeste do país. E as mudanças climáticas afetaram nos últimos tempos a produção e elevaram os preços do tomate, alface e da batata inglesa em parte do território brasileiro.

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Arroz, feijão, batata, tomate, alface… A combinação faz parte do dia a dia de boa parte dos brasileiros e pode ser pedida em qualquer restaurante como prato feito (ou pelo carinhoso diminutivo PF). Mas, como indicam as notícias recentes, praticamente todos os ingredientes que compõem a nossa refeição básica de todos os dias podem estar ameaçados.

Não se salva nem mesmo a carne bovina — cuja produção já é uma das principais responsáveis pela emissão de gases do efeito estufa, com impacto significativo para o meio ambiente. Um estudo recente da consultoria Orbitas projeta uma queda de até 25% na produção da carne no Brasil até 2050. Nesse caso, como resultado das respostas do governo, dos consumidores e do setor privado às mudanças climáticas ao longo das próximas décadas.

Embora a relação possa não parecer tão óbvia, esse efeito inicial das alterações do clima na alimentação já é visto como um dos principais impactos do problema para nossas vidas num futuro próximo. No caso, olhando não apenas para o nosso umbigo aqui no Brasil, mas a nível global.

O aquecimento global e a ocorrência de temperaturas extremas deve gerar inflação e aumentar os preços dos alimentos em até 3,2% ao ano, de acordo com um estudo recente realizado por pesquisadores da Alemanha. Afinal, quando foi que a laranja ficou tão cara e o azeite virou artigo de luxo nas prateleiras dos supermercados? Boa parte desses aumentos acentuados de preços vem sendo atribuída às mudanças no clima, que afetam os padrões de cultivo de uma grande parcela dos alimentos — algo que já vem chamando a atenção inclusive de bancos centrais de países no mundo todo.

E não há exatamente uma previsão de mudança desse prognóstico. Até porque a expectativa é que as temperaturas globais neste século subam até 2,9ºC, segundo a ONU. “A gente tem visto nesse ambiente de mudanças climáticas uma variabilidade muito maior nas condições de plantio, colheita, nas condições climáticas para o universo agro”, explica o economista Felippe Serigati, pesquisador do Centro de Agronegócios da FGV. “Então, tem regiões em que determinados fenômenos climáticos, como El Niño ou La Niña, deixam o tempo mais seco ou mais chuvoso do que a média.”

Como o universo agro depende de ciclos biológicos associados a essas condições climáticas, diz o especialista, isso afeta diretamente os produtos e a qualidade do que é extraído das lavouras e pastagens. Apesar da variação, o economista frisa que ainda não chegou a faltar no país nenhum desses produtos básicos da nossa alimentação. O que tem se alterado até o momento são os preços, que podem aumentar de um instante para o outro. Mas que não dependem apenas da produção nacional, e sim de uma série de fatores globais.

“Por que o arroz estava caro no final de 2023 e início de 2024? Os grandes produtores de arroz do planeta, o Leste Asiático e a Índia, devido ao El Niño, tiveram uma quebra na safra, demandando um volume maior de arroz do resto do mundo. Em resposta a esse risco, a Índia reduziu as suas exportações, e a disponibilidade do produto no mercado internacional ficou menor”, conta Serigati.

Menos frutas e verduras

Embora enchentes e secas sejam naturalmente negativas para todos os cultivos, a professora de nutrição da USP Aline de Carvalho lembra que mudanças no clima podem tanto aumentar quanto reduzir a produtividade, dependendo das características de cada alimento. O problema é que hoje no país praticamente não temos ferramentas que avaliem os locais e como ocorrem essas anomalias climáticas, aponta Carvalho, que pesquisa alimentação sustentável e sistemas alimentares. A lacuna traria uma maior dificuldade na hora de planejar desse cultivo.

“Conversei com uma nutricionista escolar que compra os alimentos da agricultura familiar. Ela comentou que, esse ano, não conseguiu comprar diversos produtos por falta de chuva e, num outro momento, pelo excesso”, narra a nutricionista.

Quando um alimento está muito caro, seja por necessidade ou para reduzir o impacto nas economias, é natural que a pessoa busque substitui-lo. “Ela pode trocar um tomate para salada por um Débora, que talvez esteja mais barato”, exemplifica Carvalho. “E, se mesmo aquele produto for mais caro, ela vai tentar trocar por algum outro vegetal, como uma cenoura.” É mais ou menos como passar a usar óleo em vez do caríssimo azeite ou substituir a carne bovina por frango.

A grande questão é quando não há recursos suficientes nem para substituir um alimento ou ingrediente. Nesse caso, produtos que já são marca da nossa maneira de comer, a exemplo do arroz, feijão ou tomate, podem ser sumariamente cortados da alimentação diária, com consequências para a nutrição e a saúde.

“A gente viu isso bastante na pandemia”, lembra Carvalho. “Aí acabam verdura e legumes, alimentos que têm uma densidade calórica menor. A pessoa provavelmente vai escolher arroz, feijão, macarrão, que vão dar muito mais energia, e ela vai conseguir distribuir melhor para a família do que frutas, verduras e legumes, que têm nutrientes importantes.”

Por isso, as mudanças climáticas têm potencial para impactar muito mais profundamente a população mais pobre, que já vive em situação de fome e insegurança alimentar — o problema atinge 27,6% dos lares brasileiros, segundo o IBGE.

Cortar frutas, verduras e legumes das refeições deve levar a uma redução no consumo de vitaminas e minerais, aponta a nutricionista. Por outro lado, diminuir o consumo de carne pode não ser um grande problema. “O brasileiro come muita carne. Então, se a gente reduzir, não vai ser maléfico em termos de qualidade nutricional”, ela afirma. Porém, caso a ingestão de proteínas já seja baixa, a mudança também pode gerar problemas.

Uma outra preocupação é que, como em muitas partes do mundo, as pessoas comecem a substituir alimentos in natura por ultraprocessados, aqueles que passaram por intensas modificações pela indústria. No caso, o fato de esse tipo de comida ainda não ser tão barata aqui no Brasil acaba sendo positivo, diz Carvalho. “Senão, as pessoas acabam escolhendo esses alimentos, que vão ter muito mais gordura e menos nutrientes do que os in natura. Seria duplamente pior.”

Racismo ambiental

O historiador Walmyr Junior, mestrando em ciências da sustentabilidade pela PUC-Rio e pesquisador do tema, aponta que a falta de acesso a uma alimentação adequada e a insegurança alimentar sempre existiram na favela carioca Kelson’s, no Complexo da Maré onde nasceu e cresceu. Nessas regiões, segundo ele, já é muito mais comum consumir alimentos industrializados e frituras, que, além dos preços mais em conta, também têm um preparo mais rápido e gastam menos gás.

“Existe um vácuo na educação alimentar da comunidade”, frisa o historiador, para quem é preciso apresentar alternativas de alimentação e levar um conhecimento nutricional para as favelas. Não visão dele, não faz sentido pensar num futuro em que as emergências climáticas devem afetar o consumo nas comunidades se essa alimentação já está comprometida hoje. “A emergência climática que encarece os alimentos já impacta a vida dessa população. A galera não está comendo embutido porque é melhor, é porque é mais barato.”

Segundo Junior, esse processo deve só intensificar a injustiça e o racismo ambiental nas comunidades. O professor é ativista pela formação de hortas domésticas e comunitárias que possam abastecer essas populações. Na Kelson’s, inclusive, coordena a Horta Comunitária Maria Angu, um projeto de expansão da PUC-Rio que fornece alimentos orgânicos como mamão, alface e beterraba para creches locais.

“Precisamos questionar o porquê de o governo não investir na segurança alimentar de territórios favelados, uma necropolítica que configura racismo ambiental”, afirma Junior. “Não que vá resolver o problema, mas o incentivo à agricultura urbana poderia oferecer uma alternativa para a alimentação dos moradores.”

Culturas que se adaptam

Hoje, instituições como a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) já monitoram os riscos climáticos de alguns cultivos centrais, diz Giampaolo Pellegrino, que é pesquisador de mudanças climáticas globais na instituição. Por meio dos chamados zoneamentos agrícolas de riscos climáticos, que englobam de 40 a 50 culturas, a instituição vem avaliando o que pode ser plantado em determinadas regiões, dependendo das variações de temperatura, precipitação, geada etc.

“Só que ele olha para o passado. Qual é o risco das culturas diante do histórico?”, explica Pellegrino. “Então, a gente faz simulações no computador como se estivesse plantando. Ao longo de 30 anos, você vai simulando plantios e a probabilidade de ter sucesso ou não.”

A partir do experimento, a empresa projeta o futuro e o impacto que as alterações do clima devem ter nesses plantios. “Culturas como a soja, o arroz, o café e o milho costumam ser bastante afetadas e sofrem uma redução significativa”, afirma o especialista. Já produtos como cana-de-açúcar e mandioca, próprios para regiões tropicais, podem até aumentar sua área de cultivo.

Em relação à proteção dessas culturas em climas menos adequados, o pesquisador destaca a importância de práticas de cultivo como a rotação de culturas, a cobertura do solo ou a incorporação de matéria orgânica a ele — todas para lidar com um tempo mais seco e árido.

Hoje, a Embrapa trabalha também com técnicas da agricultura de baixa emissão de carbono, visando reduzir o impacto dessa produção no meio ambiente. Entre as ações, estão a recuperação de áreas degradadas, recomposição do solo, aprofundamento de raízes e manutenção de uma maior cobertura vegetal. “Tudo isso ajuda a preservar aquele solo e adaptá-lo a novas condições, tornando ele mais resiliente”, declara Pellegrino.

Cientistas vêm cada vez mais pesquisando e aplicando adaptações genéticas que permitam o plantio de certos alimentos sob novas condições climáticas. Em casos como o do café, produtores já recorrem a espécies antes subvalorizadas, como o robusta amazônico, que é adaptado às temperaturas mais altas, que devemos enfrentar daqui para frente. Um grupo de pesquisadores criou inclusive um cofre gigantesco para preservar sementes, pensando em como o clima deve mudar.

PF com V de vegetais

O economista e pesquisador Felippe Serigati, da FGV, lembra que, quando falamos em inovação na agropecuária, não se trata apenas de maquinário ou novas variedades genéticas. Novas práticas, como as apontadas por Pellegrino, e mudanças na gestão também têm efeito positivo. “Uma janela mais estreita para plantio e colheita pode fazer com que a atividade permaneça economicamente viável mesmo sob essas condições climáticas mais voláteis”, destaca.

A professora de nutrição Aline de Carvalho considera que o brasileiro hoje já consome poucas frutas, verduras e legumes em comparação com outros tipos de alimentos. “E vai reduzir mais ainda, porque devem ser os mais impactados [pelas alterações climáticas]. Legumes e verduras são muito mais suscetíveis a essa mudança de temperatura”, reforça.

Na visão da especialista, é trabalho do setor público fornecer as ferramentas para os agricultores seguirem plantando com variedade e permitir a distribuição e o acesso a valores razoáveis para a população, seja por meio de programas de aquisição desses alimentos ou projetos como cozinhas solidárias.

Caso seja necessário, por motivos de força, maior substituir alimentos no prato feito de todos os dias, a nutricionista recomenda dar preferência aos ingredientes de origem vegetal, se possível de pequenos produtores, deixando de lado produtos industrializados e o excesso de carne bovina — afinal de contas, uma das grandes vilãs do efeito estufa que ajudou a nos trazer à situação atual.

“A gente tem uma biodiversidade muito grande no Brasil, com muitas frutas e plantas, mas nossa dieta é muito restrita. Em termos de caloria, só nove alimentos compõem 60% de tudo que a gente consome”, avalia a nutricionista. Se ficar em dúvida, Carvalho sugere entrar no site do núcleo de pesquisa Sustentarea, que ela coordena, onde reúne receitas e cursos para facilitar essas adaptações.