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SemanaEpidemia de exaustão
Especialistas da saúde dividem com Gama as principais reclamações dos paciente relacionadas a cansaço. De onde vem tanto esgotamento em tempos de confinamento e o que fazer para recuperar a vitalidade
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Especialistas da saúde dividem com Gama as principais reclamações dos paciente relacionadas a cansaço. De onde vem tanto esgotamento em tempos de confinamento e o que fazer para recuperar a vitalidade
Além de abalar o mercado de petróleo, cujos preços despencaram em abril, a pandemia de covid-19 está acentuando outra crise de energia. O cansaço, que já era queixa frequente nos consultórios, tornou-se ainda mais comum. Segundo pesquisa feita pelo Ministério da Saúde em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), 30,7% dos 2007 adultos entrevistados entre 25 de abril e 5 de maio disseram que estão se sentindo cansados e sem energia. Se antes o maior responsável era o estilo de vida frenético, com as pessoas isoladas em casa surgiram outros problemas.
Em levantamento realizado pelo Banco Original e a consultoria 4CO, 57% declararam estar mais cansados por causa do home office. + Horas seguidas diante do computador e o acúmulo de responsabilidades – pelos afazeres domésticos e o acompanhamento dos filhos nas aulas online, por exemplo –contribuem para a sobrecarga. Mas há outros fatores físicos e emocionais envolvidos.
Gama entrevistou especialistas para checar como essa epidemia de exaustão está se manifestando, quais as principais causas e como recuperar a força de viver.
Relógio desregulado
“No início da pandemia, o principal motivo das consultas era insônia, depois passou a ser ansiedade e agora é depressão”, conta o psiquiatra Frederico Porto, professor convidado da Fundação Dom Cabral, de Belo Horizonte (MG). “Os três quadros provocam cansaço, melancolia e desgaste emocional”. Trabalhos científicos, como o publicado na revista Nature em 17 de julho e o divulgado no periódico Frontiers em Psychiatry em 7 de agosto, que avaliou 18.147 italianos apontam o impacto negativo da pandemia na saúde mental. No Brasil, o percentual de deprimidos aumentou de 4,2% para 8,0% durante a quarentena enquanto os casos de ansiedade pularam de 8,7% para 14,9%, concluiu um estudo do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Para Frederico Porto, a principal causa de tanto mal-estar é a quebra da rotina: “A mudança no ritmo de vida interfere no nosso relógio interno. Nossas células estão programadas para produzir hormônios em certos horários. Com a quebra, o metabolismo se desajusta”. O psiquiatra acrescenta que todo esforço passou a ser mental. As pessoas ativas pararam de praticar esportes e mesmo os sedentários, trabalhando sentados o dia inteiro, andam cada vez menos. “A mente se cansa e o corpo não, daí a dificuldade para dormir”.
“No início da pandemia, o principal motivo das consultas era insônia, depois passou a ser ansiedade e agora é depressão”
Junte-se a longa exposição às telas: “A luz azul emitida pelos dispositivos eletrônicos influencia a fabricação de melatonina, o hormônio que avisa ao corpo que a noite chegou. Com a overdose de telas, o cérebro entende que é dia o tempo todo e não deixa desligar”. Até a síntese de cortisona, o hormônio do estresse, cuja produção cai à noite, é afetada. “Diante das telas, seus níveis permanecem altos, levando à insônia.
E assim as pessoas começaram a varar madrugadas e seu relógio foi ficando cada vez mais bagunçado”, diz ele a Gama. A privação de sono derruba a resistência, compromete a regeneração dos tecidos, acelera o envelhecimento, provoca fadiga, irritabilidade, queda da concentração. E se não bastasse, um estudo com 3890 pessoas publicado no The Lancet Psychiatry em 2017 demonstrou que a dificuldade para dormir não é sintoma, mas causa de ansiedade e depressão.
A reviravolta nos hábitos
“A covid-19 desestabilizou todo mundo. Tenho atendido muitas pessoas cansadas e desanimadas. Os meses de confinamento trouxeram enormes desafios emocionais, agravados pelo medo de como será o amanhã e como tudo vai terminar”, informa a endocrinologista Zuleika Cozzi Halpern, de São Paulo. Esse estresse pode ocasionar sintomas que se confundem com os do hipotiroidismo, quando a tireoide trabalha em ritmo lento, produzindo menos hormônios, o que acarreta sonolência, cansaço, queda de cabelo, pele seca, unhas quebradiças, intestino preso.
“A exaustão também decorre da mudança drástica nos hábitos. Estresse, alimentação desregrada e inatividade física”
“A exaustão também decorre da mudança drástica nos hábitos. Estresse, alimentação desregrada e inatividade física são uma combinação explosiva para ganho de peso”. A endocrinologista tem atendido pacientes que engordaram demais na quarentena. Os quilos em excesso exigem maior esforço do coração, dos músculos, dos vasos sanguíneos e ainda provocam apneia do sono, breves interrupções da respiração durante o repouso, ronco e dificuldade para entrar na fase mais profunda do sono. Resultado: mesmo dormindo a noite toda, o sujeito já acorda cansado. “É uma bola de neve, uma coisa potencializa a outra”.
Cardápio precário
“Antes da pandemia, os pacientes relatavam situações específicas de cansaço físico ou emocional. Agora, apresentam ambos. Sentem-se esgotados, sem disposição, desanimados, embotados”, conta a médica nutróloga Marcella Garcez, diretora da Associação Brasileira de Nutrologia. Para ela, uma explicação é a piora da alimentação, a preferência por produtos ricos em açúcar, sódio e gordura e pobres em nutrientes.
Estudo do Ibope feito a pedido do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), constatou que 59% das famílias com crianças e adolescentes mudaram seus hábitos alimentares na quarentena. Houve maior consumo de industrializados, como macarrão instantâneo, biscoitos recheados, enlatados, refrigerantes, comidas por delivery e fast-foods. A pesquisa, feita entre junho e julho, envolveu 1.516 entrevistas com adultos.
“O que acontecia só no fim de semana, nas festas e passeios, agora se repete de segunda a segunda. As famílias estão comendo como se estivessem em férias eternas”
“O que acontecia só no fim de semana, nas festas e passeios, agora se repete de segunda a segunda. As famílias estão comendo como se estivessem em férias eternas”, diz a nutróloga a Gama. A falta de nutrientes pode levar à anemia, causa comum de cansaço; já o excesso de açúcar e frituras, além de contribuir para a obesidade, ocasiona inflamação na flora intestinal que interfere na liberação de neurotransmissores. Mais de 80% da serotonina, responsável pela sensação de bem-estar, é produzida no aparelho digestivo. Na falta, sobrevém o desânimo. “Em fases de estresse, é comum buscar alimentos que tragam conforto, como um bolo que lembra da casa da vovó, mas que seja exceção e não rotina”, orienta a médica.
Dores que atormentam
“As queixas que mais tenho ouvido são piora das dores, cansaço e noites mal-dormidas”, conta a reumatologista Evelin Goldenberg, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Atividades benéficas à saúde, como treino na academia, massagem e fisioterapia foram interrompidas. E até mesmo tratamentos. “Alguns pacientes com enfermidades, como artrite reumatoide, que ataca as articulações produzindo dor, inchaço e rigidez, deixaram de sair de casa por medo do coronavírus, e pararam de ir à clínica de infusão receber os medicamentos biológicos, com isso a doença saiu do controle e voltou a incomodar”.
“Alguns pacientes com enfermidade deixaram de sair de casa por medo do coronavírus, com isso a doença saiu do controle e voltou a incomodar”
Fora isso, a reumatologista observa que o estresse está disseminado e, por conta dele, muita gente tem dormido mal e extrapolado na comida. “Em geral, as pessoas estão mais gordas, cansadas, sedentárias e tristes diante da percepção de perdas sucessivas: não pode mais jantar com amigos, encontrar a família, viajar. Sentem que a vida mudou pra pior”.
Os labirintos do estresse
“A maior parte dos relatos de cansaço que chegam no consultório estão ligados ao estresse emocional decorrente do isolamento social”, informa o cardiologista Ernesto Osterne, do Hospital Anchieta de Brasília (DF). Essa reação antiga, disparada quando o ser humano se encontrava diante de situações de vida ou morte, lança adrenalina na circulação, para deixar o corpo em estado de alerta. Aumenta a frequência cardíaca, a pressão arterial sobe, os músculos ficam tonificados. Passado o perigo, tudo volta ao normal. Mas quando a ameaça se estende, o estado de alerta se mantém, o que pode agravar diversos transtornos da saúde.
A maior parte dos relatos de cansaço que chegam no consultório estão ligados ao estresse emocional decorrente do isolamento social
“Hipertensos acostumados a tomar um comprimido à noite e outro de manhã estão precisando de doses maiores para manter a pressão arterial sob controle”, avisa o cardiologista. “Muitos descompensaram porque ganharam peso, perderam o condicionamento físico, abusaram do sal e, não raramente, esqueceram-se de tomar as medicações. É compreensível. Estamos enfrentando uma fase nova, que ninguém da nossa geração enfrentou antes. Mas da mesma forma que começou, um dia terá de acabar. Passado o impacto inicial precisamos nos preparar para voltar a ter uma vida ‘normal’, ainda que seja um pouco diferente”.
Para dar a volta por cima
Os especialistas ouvidos por Gama recomendam medidas que ajudam a recuperar a disposição:
- Evite flutuações: não importa a hora que for dormir, acorde sempre no mesmo horário. Isso ajuda a acertar os ritmos biológicos, ensina Frederico Porto.
- Movimente-se mais. Faça pausas periódicas de 3 minutos a cada 60 minutos de trabalho, sugere o psiquiatra. Levante, caminhe e alongue os músculos.
- Ainda não se sente seguro para voltar para a academia? Invista num programa de ginástica online, contrate um personal trainer ou vá caminhar ao ar livre, indica Evelin Goldenberg.
- Alimente-se melhor, reduzindo doces, gorduras e industrializados e preferindo verduras, legumes, frutas e carnes magras, orienta Marcella Garcez.
- Procure conversar com amigos e familiares, nem que seja por meio de encontros virtuais ou utilize o bom e velho telefone, propõe Frederico Porto.
- Coloque no seu celular um bloqueador de luz azul ou adote um programa como o f.lux, que reduz a quantidade de luz enviada para a tela do computador ao longo do dia, reproduzindo o que acontece na natureza, explica o psiquiatra.
- Se ainda sentir-se esgotado ou que está no limite, procure auxílio especializado, recomenda Zuleika Halpern. “Um médico capacitado indicará o caminho a seguir, inclusive a psicoterapia, se necessário”.
O cansaço pode estar por trás de aglomerações em praias e bares, festas clandestinas e outros comportamentos que deixam os especialistas perplexos. “Houve uma histeria coletiva, que acabou com os estoques de máscaras e álcool gel no início da pandemia, quando nem havia transmissão comunitária no Brasil e agora, com a média de 700 óbitos por dia, as pessoas saem sem máscara, descuidam da higiene e não observam o distanciamento. É como se elas tivessem cansado e decretassem o fim da pandemia por conta própria”, diz a Gama o infectologista Alexandre Naime, consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia. “O cérebro se confunde na avaliação do risco. Após seis meses de epidemia, a ameaça deixa de ser levada a sério e passa a ser considerada algo normal. O discurso antagônico dos políticos – um negando a gravidade da doença, outro defendendo medidas restritivas – estimula essa confusão. A chamada fadiga do cuidado leva a relaxar na prevenção. “Mas o vírus está presente e não é hora de vacilar”, insiste o infectologista. “Flexibilização não é o mesmo que normalização: usar máscaras, reforçar a higiene e evitar aglomerações continuam sendo essenciais”.