Bateu uma nostalgia?
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Reportagem

Pra que tantos remakes e continuações?

Aposta crescente do cinema, da TV e de grandes marcas na nostalgia engaja mais público, mas também traz riscos e pode levar ao fracasso

Leonardo Neiva 16 de Fevereiro de 2025

Pra que tantos remakes e continuações?

Leonardo Neiva 16 de Fevereiro de 2025

Aposta crescente do cinema, da TV e de grandes marcas na nostalgia engaja mais público, mas também traz riscos e pode levar ao fracasso

Das dez maiores bilheterias do cinema mundial em 2024, oito foram continuações de grandes blockbusters, um foi uma prequel — sequência que se passa antes da obra original — de um desenho muito querido e a última, uma adaptação de um dos musicais mais aclamados da Broadway. Embora a lista em si não seja nenhuma surpresa — é natural que franquias bem conhecidas do público acabem atraindo mais gente —, a falta de sequer um longa original indica que apostar no passado é hoje uma das grandes tendências do audiovisual.

Além das inevitáveis continuações, a indústria de cinema vive outra história de amor com seu passado: os remakes. Em 2024, alguns de seus principais representantes foram filmes como “Twisters” e “O Corvo”, que ressuscitaram obras queridas da década de 1990, assim como “Nosferatu”, readaptando um clássico do terror que, assim como seu protagonista, já conta mais de 100 anos de idade.

Os atores Brandon Lee (esq.) e Bill Skarsgård na versão original e no remake do filme “O Corvo”  Miramax Films / Filmnation Entertainment

Para este ano, podemos esperar mais do mesmo. A Disney deve trazer às telas adaptações live action de “Branca de Neve” (1937) e “Lilo & Stitch” (2002). A aclamada franquia de animação “Como Treinar o Seu Dragão” (2010) é outra que vai ganhar uma versão em carne e osso. Além de mais uma formação do Quarteto Fantástico e de um novo Superman, devem estrear nos cinemas um remake do longa de ação “O Sobrevivente” (1987), estrelado originalmente por Arnold Schwarzenegger, e duas novas versões de Frankenstein.

“Essa onda nostálgica nos produtos da mídia e na cultura pop começou há uns bons dez anos, mas se intensificou muito nos últimos cinco”, reconhece a professora da pós-graduação em comunicação da Unip Clarice Greco, especialista em estudos de fãs e cultura pop. “No sentido mercadológico, é um lugar seguro. O remake faz uso da nostalgia na segurança de que as pessoas vão querer assistir algo famoso, que já fez sucesso, mas dando chance da obra respirar, se atualizar e também inserir debates contemporâneos.”

A professora de cinema da ESPM Marcela Soalheiro classifica essa nostalgia como um reencontro com personagens e arcos narrativos bem conhecidos, que gera conexão imediata. “É uma sensação de conforto e bem-estar”, reforça Soalheiro, que pesquisa adaptações audiovisuais. Mas trata-se também de uma experiência que não dispensa conflitos. “Ao mesmo tempo, tem uma certa fricção. É um encontro meio ansioso, porque a gente não sabe exatamente como vai ser dessa vez.”

Ou seja, a comparação pode levar tanto a uma sensação de prazer quanto de insatisfação — até porque estamos lidando com produtos queridos pelo público. “A gente acha que a indústria aposta no que é certeiro, mas ela também está apostando no controverso”, resume Soalheiro. É daí que surgem as ondas de haters e fãs indignados com alguma produção que mexeu com seus grandes ídolos da ficção.

Para Greco, essa tendência também passa por uma mudança na forma como a indústria visualiza o espectador de entretenimento. “Se antes era muito focado na juventude, hoje o público jovem adulto ou mais maduro tem relevância na televisão e no cinema.”

“Nos anos 90 e 2000 a gente se envolvia muito com a cultura pop. Então, essa está sendo uma geração mais nostálgica”, acrescenta Greco. Por outro lado, as gerações mais novas também vêm sendo alimentadas com novas versões desses produtos, principalmente por meio dos pais e familiares. Ou então acabam redescobrindo essas produções por meio das redes sociais.

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Saudades do que não vivi

“Hilda Furacão” (1988) foi uma minissérie da Globo sobre uma jovem socialite que escandalizou a sociedade dos anos 1950 e 1960 ao se tornar prostituta. Grande sucesso na época, a novela voltou aos holofotes bem recentemente, em 2023. Depois de uma entrevista em que a atriz Laura Linney cita Rodrigo Santoro, usuários gringos começaram a buscar cenas antigas do ator. Foi aí que ressurgiram imagens dele como Frei Malthus na minissérie, que rapidamente viraram meme lá fora e reavivaram o interesse pela produção.

O caso, assim como os memes da “Nazaré confusa”, é um exemplo curioso de como as gerações mais jovens acabam se conectando com produtos que são nostálgicos para muita gente, mas que não faziam parte da vida delas até ali. “O que a gente vive hoje, que alguns especialistas chamam de ‘nova nostalgia’, é uma saudade que passa para muita gente que nem viveu aquela época”, conta a professora da ESPM e doutora em comunicação social com ênfase em estudos do consumo, Bianca Dramali. Em outras palavras, saudade do que a gente não viveu.

Para a docente, um dos motivos para o fenômeno é o mundo em constante mudança no qual vivemos. Isso faz com que, como consumidores, seja mais seguro investir em produtos testados e aprovados. “Se alguém já provou e gostou em algum momento da vida, é muito mais simples eu me jogar e experimentar”, diz.

E é aí que está a magia, na visão de Dramali. Usar uma máquina de escrever ou ouvir um disco de vinil pela primeira vez pode ser impactante para alguém da geração alfa, que nasceu a partir de 2010 e cresceu em um mundo inteiramente digital.

Já ouviu falar que, após uma longa e tenebrosa crise, as revistas impressas estão em alta? “Tem pessoas lendo revistas pela primeira vez e gostando. Ou sentando para assistir à TV de forma mais linear. Outro dia, uma aluna minha falou que tinha visto um telejornal pela primeira vez”, conta a professora. “O que é antigo para uma geração é novo para outra. E o novo sempre vendeu bem.”

A mente nostálgica

Quem nunca se emocionou ao lembrar de pratos e doces que fizeram parte da infância e hoje não existem mais ou são bem difíceis de encontrar? Como aquelas balas de coco enroladas em papel que você encontrava em toda festa de família algumas décadas atrás. Ou doces como o Dadinho, a paçoca Amor, o chocolate Surpresa, aqueles refrescos bem duvidosos, embalados num plástico em forma de carro ou telefone celular, que as crianças encontravam em qualquer mercado…

Prova do interesse nesse tipo de conteúdo é o sucesso de perfis dedicados a sentimentos nostálgicos, com milhões de seguidores, como o Canal 90, o Nunca Te Pedi Nada e o Nostalgia — um dos precursores nesse nicho, que depois deu uma guinada para um conteúdo mais histórico.

Não à toa, temos visto grandes marcas reviverem, mesmo que momentaneamente, produtos que marcaram época. No início de 2024, tivemos o badalado retorno do McFish. Agora, em janeiro, a Nestlé acaba de relançar o amado chocolate Surpresa, sucesso nos anos 1980 e 1990 que trazia dentro da embalagem um card com algum animal emblemático da fauna brasileira.

Um estudo realizado ao longo de sete décadas por pesquisadores das universidades de Columbia e Harvard apontou que a nostalgia tem um poder imenso: o de transformar o passado. Como nosso cérebro tem a rara capacidade de apagar marcas negativas conforme o tempo passa, a distância vai distorcendo a realidade e transformando-a num universo próximo da perfeição, sempre melhor do que o atual. Por isso tendemos a valorizar muito mais alguma coisa depois que ela ficou para trás.

A professora de marketing da Mackenzie, Mariana Munis, aponta que o ser humano toma cerca de 90% das decisões de forma inconsciente. “Quando fala de nostalgia, de memória de longo prazo, a gente aciona o cérebro límbico, que atua no inconsciente”, revela Munis, que é especialista em comportamento do consumidor.

Mesmo sem percebermos por que, são essas lembranças que geram sentimentos positivos e nos levam a investir em algum produto ou serviço. É um fenômeno que funciona também na arte. A especialista exemplifica com o disco mais recente do cantor Bad Bunny, “Debí Tirar Más Fotos”. “Todo mundo na vida já perdeu um cachorro, uma pessoa próxima, ou viveu um amor que não volta mais”, diz Munis. “Foi essa nostalgia que ele usou no álbum.”

Proust também já demonstrou lá no início do século 20 o poder que um aroma ou sabor tem de nos transportar para o passado, através de um simples chá com madeleines que serviu de pontapé inicial para as lembranças que compõem sua obra-prima “Em Busca do Tempo Perdido”. Embora o mercado geralmente reproduza essa nostalgia embalada em pacotes para uma massa de consumidores, há casos raros em que uma marca aposta na experiência individual.

Dramali relembra o caso de uma mãe que sentia saudades do perfume usado pelo filho morto recentemente de covid. A Boticário então produziu algumas unidades do perfume especialmente para ela. “É o poder do fabricante de recriar o tempo, que tem um apelo muito forte”, afirma a professora.

Vale tudo?

Poucas coisas foram tão capazes de capturar a atenção, traçar retratos de uma época e até influenciar comportamentos no Brasil quanto as telenovelas. Em meio a uma crise de audiência e uma queda acentuada no impacto das novelas, em meio à ascensão dos streamings e das redes sociais, nada mais natural que uma emissora como a Globo se volte para seu passado de glórias.

As duas versões da personagem Juma de “Pantanal”, interpretadas por Cristiana Oliveira (esq.) e Alanis Guillen  Rede Manchete / TV Globo

Remakes de tramas de sucesso não são novidade, mas eles têm dado as caras com mais frequência nos últimos tempos, quando o canal se aproxima do seu aniversário de 60 anos. “Pantanal” (2022), “Elas Por Elas” (2023-2024) e “Renascer” (2024) são apenas alguns dos exemplos mais recentes. Em março, a emissora vai estrear uma de suas maiores apostas nesse sentido: a nova versão de “Vale Tudo”, novela de 1988 considerada por muitos a melhor de todos os tempos.

Um dos grandes desafios da adaptação é atualizar um texto muito ligado à época em que foi feito. “‘Vale Tudo’ foi a última novela a enviar os capítulos para a censura. A censura acaba no meio de ‘Vale Tudo'”, conta a jornalista e pesquisadora Ana Paula Gonçalves, autora do livro “O Brasil Mostra a Sua Cara” (Autografia, 2024), que fala sobre a realidade do país na época em que a novela foi ao ar.

“[A novela] pergunta o tempo inteiro: vale a pena ser ético no Brasil? Parece que estão desenhando o Brasil para a gente, o jeitinho brasileiro de querer se dar bem em tudo”, explica a pesquisadora. Devido também ao tema atípico, “Vale Tudo” construiu uma memória afetiva que atinge hoje até um público mais jovem, com acesso à trama pelo Globoplay ou em reprises no canal Viva.

Essas pessoas inclusive integram parte do coro de elogios e principalmente de críticas nas redes desde que a novela foi anunciada, e que miram desde a escalação de atores até mudanças significativas feitas no remake liderado pela autora Manuela Dias. Para Gonçalves, de uma forma ou de outra, essa é uma métrica do sucesso da proposta. “Eu acho que já está dando certo. Sabe aquela coisa: fale bem ou fale mal, mas fale de mim?”

Uma das preocupações, na visão da pesquisadora, é a potencial falta de liberdade do projeto, algo que os autores tiveram de sobra na versão original. Afinal, tem coisa demais em jogo para a emissora. “Os personagens eram politizados, num Brasil politicamente muito diferente de hoje”, lembra Gonçalves.

Mas tem como falar ostensivamente de política e agradar a gregos e troianos num país tão dividido? Ao mesmo tempo, como reeditar o impacto da versão original evitando o tema? “Estou muito curiosa para saber qual vai ser a abordagem. Ela [Manuela] pode colocar uma elite preconceituosa sem ir na política.” Ainda assim, Gonçalves considera válida a nova versão e acredita que a reedição da trama pode render bons frutos. “A questão de ‘Vale Tudo’, se vale a pena ser ético, ainda é tão recente, tão Brasil.”

Tiro certo

Hoje, uma das principais questões levantadas por quem torce o nariz para a onda de remakes e continuações é se esse é um sintoma da falta de criatividade contemporânea. Para Soalheiro, não é necessariamente o caso. A professora de cinema lembra que os primórdios dessa arte foram marcados por uma avalanche de adaptações literárias. E que os próprios remakes e continuações são um fenômeno antigo. “É um processo comum não só do cinema, mas da arte e de todas as formas de linguagem.”

Além disso, ela reforça que se trata de uma tendência de uma nova realidade de consumo, em que o público tem à disposição uma infinidade de conteúdos e está cada vez mais letrado neles. Na visão de Clarice Greco, mais do que falta de criatividade, a recorrência da nostalgia pode significar o medo de apostar no novo para um consumidor perdido em um mercado recheado de possibilidades. “Muitas delas acabam sendo ruins, então o espectador prefere ir no lugar seguro.”

Mesmo com o engajamento gerado pela nostalgia, ela não é sinônimo de sucesso. O novo “O Corvo” sofreu um massacre de crítica e público, além de ter dado prejuízo nas bilhetO filme “Twisters” (2024), remake do clássico de 1996, com boa recepção de público, crítica e um elenco cheio de estrelas não correspondeu ao que se esperava nas bilheterias. A nova versão do chocolate Surpresa, citada aqui, também não agradou aos fãs, com seu tamanho reduzido, qualidade questionada e cards em QR Code.

Especialistas em consumo reforçam que, para dar certo, é importante aliar nostalgia e inovação. Um exemplo de estratégia que conseguiu unir esses dois mundos, na visão de Dramali, foi o da marca de cosméticos e perfumes Granado. “Ela adicionou o emocional da nostalgia, não deixando de se atualizar para conversar com as gerações pela frente”, aponta a especialista. Munis vai por um caminho semelhante: “Tem que entender o momento, o mercado e as tendências. Será que esse produto ainda faz sentido hoje?”

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