A dor e a delícia de se relacionar com um desconhecido
Se você já sofreu com a morte de um personagem, ficou com ciúme ou apaixonado por um famoso, pode ser que você esteja vivendo uma relação parassocial
Ela tem 137 milhões de seguidores, 19 músicas na lista Billboard Hot 100, cinco Grammys, 141 nomeações a prêmios — e é fã do Justin Bieber. Sim, essa é Billie Eilish, que em seu mais novo documentário “The World’s A Little Blurry”, lançado em fevereiro deste ano, relata também sua paixão pelo artista canadense. Mas atenção: na época do documentário ela ainda não o conhecia. Isso mudou depois que a artista recebeu uma mensagem e ligação dele, algo que nem em seus maiores sonhos adolescentes ela imaginaria que pudesse acontecer.
Antes de conhecer Bieber em carne e osso, Eilish compartilhava de um sentimento universal: “A sensação de proximidade que temos, via mídia, com pessoas ou personagens que, na verdade, estão muito longe de nós.” Essa é a definição que o professor e pesquisador Luís Mauro Sá Martino, autor de “Comunicação e Identidade: quem você pensa que é?”(Paulus, 2010), dá para o que chamamos de relação parassocial. O conceito, já com mais de 200 anos de vida, surgiu junto ao desenvolvimento da mídia e das primeiras personagens literárias no século 19, quando os romances de folhetim, uma espécie de antepassados das novelas, eram divulgados nos jornais. “Muita gente lia, e essa leitura dava ao povo da época uma sensação de proximidade, porque a história estava o tempo todo perto do leitor.”
Em tempos mais modernos, o conceito se mantém — e talvez até se intensifique. Durante a pandemia do novo coronavírus, o único meio de comunicação com o exterior eram as telas, fato que tornou o limite entre as relações reais e as estabelecidas via mídia muito mais tênue. Nesse contexto, até a turma de “Friends” (1994-2004), para quem passou a quarentena assistindo, começou a parecer mais próxima e íntima, quase se confundindo com um círculo de amigos reais. E essa é a verdadeira mágica por trás das relações parassociais: apesar de seu caráter unilateral, elas têm toda a intensidade de um relacionamento recíproco.
Por que isso acontece?
A psicóloga e doutora em ciências do comportamento Roberta Pohl diz ser uma questão de identificação. “Seja pela interpretação de situações e emoções reais que acontece no cinema, ou na fala direta de um apresentador em um programa de televisão, nos identificamos com o que está na tela.” Ela diz que essa identificação pode transcorrer de maneira contínua, o que caracteriza uma relação parassocial, ou de forma momentânea, isto é, apenas uma interação rápida.
Toda essa identificação só acontece porque a mídia existe, e é onipresente. A todo momento estamos rodeados de conteúdo sobre pessoas ou personagens, aumentando o estoque de informação sobre a vida daquelas personalidades, o que faz com que o público se sinta mais próximo a elas. Por mais óbvio que seja afirmar que essa relação é impossível e irreal, ainda mais com personagens fictícios, nem sempre a divisão é feita com tanta clareza pelo cérebro humano.
A nossa cabeça não vive nessa coisa chamada mundo real o tempo todo, vivemos também no imaginário, que é muito forte. Do ponto de vista da psique humana, é real aquilo que definimos como real
“A nossa cabeça não vive nessa coisa chamada mundo real o tempo todo, vivemos também no imaginário, que é muito forte”, explica Martino. “Do ponto de vista da psique humana, é real aquilo que definimos como real.”
Ele diz que o envolvimento com personalidades reais e também com ficção pode realmente ser intenso, causando extrema alegria, paixão ou sofrimento. É o caso, por exemplo, da morte de um personagem muito amado pelo público: a dor da perda se torna real, como se ele fosse parte da família ou um amigo íntimo. “A nossa cabeça não faz essa separação rígida, como a gente gostaria”, diz Martino.
O poder da identificação
Quem achava que a internet iria aproximar ídolos e fãs e até ditar o fim das relações parassociais, estava errado. “As redes sociais intensificam uma ilusão de proximidade”, explica Martino. Em tempos de stories e influenciadores, famosos não postam apenas o que é de interesse público — postam também a vida privada, algo que gera essa aparente, ainda que irreal, proximidade. “Mas o que não se pode perder de vista é que ele [famoso, influenciador] continua tão distante quanto eram o ator e a atriz de cinema 120 anos atrás.”
De acordo com ele, usuários podem acreditar que sabem mais sobre uma personalidade por acompanhar seus posts no Instagram. Por meio desse artifício, é como se os seguidores participassem da vida do famoso, afinal, eles veem o interior da casa, sabem qual é o prato favorito ou a roupa que mais gosta de usar. É difícil aceitar que não conhecemos aquela personalidade se ela envia um cartão de natal ou cria uma rede social apenas para interagir com os fãs, duas atitudes de Taylor Swift dos últimos anos. Mas mesmo no caso da cantora pop: não é possível conhecer realmente alguém via mídia, então a interação permanece no campo do parassocial.
É baseado nas relações parassociais que um artista é chamado para fazer propagandas. É mais provável que ele ganhe mais atenção do público em uma campanha
Com o advento das redes, por mais que seja ilusória a sensação de proximidade, os internautas conquistaram maior influência sobre a vida das personalidades online — para o bem e para o mal. “É baseado nas relações parassociais que um artista é chamado para fazer propagandas, por exemplo. Se há muita identificação com o personalidade, é mais provável que ele ganhe mais atenção do público em uma campanha”, explica Pohl.
Isso significa que artistas com um bom engajamento ou presentes em séries e filmes podem acumular maior índice de interações parassociais, e assim obter maior audiência em publicidade e, consequentemente, aumentar o faturamento. Marina Ruy Barbosa é um exemplo da fala da psicóloga: líder no ranking de famosos mais ativos na publicidade em 2016, a atriz havia acumulado, nos anos anteriores, aparições importantes em novelas e minisséries, como a produção “Justiça” (2016) e “Amorteamo” (2015), ambas da Globo.
Daí a virtude e, ao mesmo tempo, o mal da interação parassocial: “A sensação de familiaridade faz com que o público se sinta no direito de palpitar sobre a vida dos outros, no direito de se decepcionar”. De acordo com o pesquisador Luís Mauro Sá Martino, isso acontece tanto no universo da ficção, quanto nas redes sociais. No cinema, se traduz em fãs desapontados, que pedem por mudanças de roteiro caso este não seja do agrado. No âmbito das redes, é um pouco mais complicado: Martino diz que, a partir do momento em que o internauta conhece uma personalidade, mesmo que via mídia, expectativas são criadas, que podem ser frustradas no futuro — até chegar ao nível do cancelamento. Mas aí é outra fase dessa história.
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