CV: Luciano Freitas
Sommelier-chefe do restaurante de alta gastronomia D.O.M. entrou no mundo dos vinhos graças a uma sensibilidade olfativa surpreendente e é uma das estrelas da nova fase da casa paulistana
O restaurante D.O.M., fundado por Alex Atala e o primeiro brasileiro a figurar nas listas de melhores do mundo e a abraçar ingredientes nativos brasileiros desconhecidos até de seus compatriotas como algo fundamental, chega aos seus 25 anos com um menu que homenageia o Nordeste. Para harmonizá-lo, uma seleção de vinhos quase toda composta por brasileiros de alta complexidade em combinações surpreendentes e deliciosas. Quem os escolheu foi o cearense Luciano Freitas, há 14 anos no D.O.M. e uma das grandes estrelas dessa nova temporada do restaurante.
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Nascido em Acopiara, a 360 quilômetros de Fortaleza, Freitas foi construindo a sua ética de trabalho muito cedo, ainda criança, quando ajudava a mãe a vender cocadas para complementar a renda da família. Dos quatro irmãos, era o mais novo e o mais destemido a enfrentar a clientela. A experiência o ensinou a ser vendedor, função que sente ocupar até hoje, como sommelier-chefe do D.O.M.
Foi essa mesma coragem que o trouxe a São Paulo em 2011, em busca de um futuro e a convite de um tio, que o deu o primeiro abrigo na capital paulista e que o introduziu na vida de restaurantes. O primeiro registro de trabalho de Luciano foi em uma hamburgueria. De lá, começou a trabalhar no D.O.M. “desembaraçando” o que fosse preciso para ajudar os garçons. Mas foi com seu olfato sensível e com sua memória afetiva que impressionou a sommelière Gabriela Monteleone, então chefe do serviço de vinho das casas de Alex Atala.
Depois de chamar sua atenção, ela começou uma campanha para que ele entrasse na brigada do vinho, coisa que aconteceu em 2014 e de onde Luciano não saiu mais.
No jantar de comemoração dos 25 anos do restaurante para a imprensa em que Gama esteve presente, Luciano recontou a história e fez com que Atala e Monteleone fossem às lágrimas. Estavam no local também os produtores dos vinhos escolhidos, todos reverentes ao trabalho do sommelier, que começou como faxineiro em São Paulo. Leia a seguir a entrevista em que Freitas conta a sua trajetória profissional e compartilha dicas para quem quer se iniciar na carreira de sommelier.
Como muitos nordestinos de família humilde, saí da minha terra natal em busca de oportunidades, pensando em família, em futuro
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G |O que te trouxe até aqui?
Luciano Freitas |Como muitos nordestinos de família humilde, saí da minha terra natal em busca de oportunidades, pensando em família, em futuro. Saí do interior do Ceará para vir para cá, para ficar na casa do meu tio. Meu primeiro trabalho foi em uma hamburgueria. Foi meu primeiro registro e comecei com faxina. De lá, fui para a cozinha. Da cozinha, para a salão. Fiquei como garçom por três anos e tive a oportunidade de conhecer o D.O.M. Meu tio conhecia o maître. Eu não conhecia o restaurante, mas só em saber que ficava fechado por dez dias no fim do ano, incluindo Natal, eu não pensei duas vezes, fui na hora. Fiz a entrevista e dois dias depois já estava trabalhando. Isso foi em 2011
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G |Como foi o começo nesse restaurante de alta gastronomia?
LF |Comecei como “desembaraceiro”: secava talher, fazia o couvert, o que saia da cozinha eu entregava para o garçom. Depois, passei a cumim, o ajudante de garçom. Eu não tinha relação alguma com os vinhos, não conhecia nada e só bebia vinho de mesa [feito com uvas americanas, diferentes dos vinhos finos, que usam as uvas viníferas europeias]. Mas o D.O.M. era muito pauleira, o jantar tinha espera, eram dois sommeliers e um ajudante. E, mesmo assim, era pouco porque havia muita harmonização. Na época, havia o à la carte. Era uma correria e eu gostava de ajudar. Acabei decorando os rótulos todos dentro da adega, mesmo não conhecendo as bebidas. Naquela época, a sommelière responsável era a Gabriela Monteleone, a quem eu dava um suporte. Um dia, ela me deu uma tacinha de vinho branco e falou “O que será que tu sente aqui?” Eu falei: “Posso falar mesmo, Gabi? É querosene, lamparina”. Foi uma memória afetiva de uns 20 anos atrás, algo que me lembrava da casa da minha mãe, onde não tinha energia à noite, era um breu. E não era lampião, que precisava de gás, era lamparina mesmo, pequena. O vinho era feito com a uva Riesling de Margaret River, na Austrália, da safra 2005, lembro até hoje. A Gabi ficou muito surpresa porque eu não conhecia, mas fui em cima das notas mais típicas dessa uva, o petrolato, a querosene. Alguns desses aromas são sutis e outros são muito puxados. Depois disso, eu comecei a me envolver no vinho.
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G |Você buscou formação?
LF |A Gabi teve que sair porque estava com muitos projetos fora. Para não trazer alguém para o restaurante, eles me pediram para ser assistente de sommelier. Eu topei mas disse que precisava fazer algum curso. Fiz a formação de sommeliers na Associação Brasileira de Sommeliers (ABS-SP) e as portas se abriram. Foram três módulos para os profissionais. Foi importante demais. Mas, antes disso, é bom falar que, cursando a ABS, eu estava em prática no restaurante, em serviço. Também fiz cursos de treinamento de brigada com a Gabriela Bigarelli (sommelière do Maní e da Casa do Porco Bar). Ela trabalhava na importadora World Wine e dava um bom suporte para a turma de restaurante.
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G |Você teve um mentor?
LF |Muitos, vários do vinho. A Gabi Monteleone, que foi o primeiro suporte. Ela dizia “é o Ceará, a vaga é dele”, sempre bateu nessa tecla. A Gabriela Bigarelli me deu um suporte grande demais no início também, fazia degustações. Outra foi a Gabriele Frizon [sommelière e diretora comercial da Belle Cave], que me encontrava nas degustações em restaurantes, me deu um baita apoio.
Tento deixar o cliente confortável, faço de tudo para que entenda minhas explicações. Se ele não gostar, tudo bem, eu abro outra garrafa
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G |Várias mulheres, não é mesmo?
LF |Sim, tem mais, a Ivy Suda, eu não posso deixar de falar dela, eu trabalhei com ela nas pauleiras do restaurante. E também o João Pichetti, que foi quem eu auxiliei quando a Monteleone saiu. O Ricardo Santinho, que nem era sommelier na época mas conhecia demais de vinho. Tem muito conhecimento e é hoje um dos melhores Sommeliers de São Paulo.
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G |Quais são os principais desafios que você encontra hoje na sua área? E que maneiras você encontra de lidar com elas?
LF |Antes de tudo, eu sou um vendedor. Antes de vir para cá, meu pai trabalhava na roça e a minha mãe, de família humilde, para um complemento da renda, fazia bolo de milho, cocada, broa para vender. De três irmãos, eu era o único que não tinha vergonha de nada. Então lá eu fiquei conhecido como o Luciano das Cocadas porque eu saía com um caldeirãozinho onde minha mãe colocava as cocadas, e eu ia para a rua vender. Isso me ensinou a lidar com diversas situações e clientes. No D.O.M., a gente trabalha com vinhos naturais, é outra ideia de vinho. Eu tento deixar o cliente confortável, faço de tudo para que entenda minhas explicações. Se ele não gostar, tudo bem, eu abro outra garrafa, vou atender ao estilo que ele quer e está tudo certo. Hoje tenho liberdade para isso. Mas tem dificuldades, claro. Às vezes, no salão, a gente “nada” [jargão de restaurantes que se refere a serviço corrido e difícil], você quer dar conta, você corre, mas você nada. Tem noites que são terríveis e é inexplicável. São 30 clientes, mas parece que tem 60. Em outras, o serviço está redondo.
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G |Essa coisa do vinho natural, de não ser o que o cliente espera, é preciso ter jogo de cintura, não?
LF |Eu já fui vendedor, é a mesma situação de quando vendia minhas cocadas.
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G |Como sommelier, como é sua integração com a equipe?
LF |Escolher um vinho, passar por um processo de harmonização, não é só pegar e abrir uma garrafa, explicar. Há um processo de análise em relação à comida, a gente faz testes. Eu não faço tudo sozinho. Eu tenho a opinião da cozinha e também de sala.
A humildade é fundamental para entregar um bom serviço
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G |O D.O.M. é um restaurante muito consolidado, caro, chique. Você já passou por algum tipo de aperto com clientes que às vezes podem achar que sabem mais do que você?
LF |Já, já. Mas eu sou claro: se tem alguma pergunta que ele me faz, que ele faz direto e eu fico na dúvida, eu não vou tentar responder se eu não conseguir ser preciso na resposta. Eu peço um minuto e checo a informação. Mas às vezes o próprio cliente tem a resposta e tudo bem. Todo dia aprendemos alguma coisa. Mas isso é raro porque o nosso maior foco é a harmonização. Agora, temos alguns vinhos baratos no menu de 25 anos do D.O.M. que celebra o Nordeste do país. Para a sobremesa, usamos um vinho espumante de moscatel feito no Nordeste que é barato. Não faria sentido eu abrir um Moscato d’Asti, do Piemonte. Mas, se o cliente quiser, eu abro a garrafa. Mas isso é raro de acontecer.
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G |Para atuar na sua área, o que um bom profissional precisa saber? O que é preciso ter para ser um bom sommelier?
LF |Tem que ter humildade, acima de tudo. Tem que pesquisar, trazer referência, buscar conhecimento. É preciso também ter oportunidade. Se eu estou no D.O.M. hoje foi porque alguém me abriu as portas e acreditou em mim. O D.O.M. é uma escola para mim, eu deixo bem claro para os clientes, conto a minha trajetória, e eles ficam admirados. Alex Atala me deu essa grande oportunidade. A Gabi me indicou, mas passou por ele. Ele foi a oportunidade.
E aí você tem que acreditar em si também — isso só depende de você. Tem gente que breca, mas eu não pensei duas vezes quando fui chamado para o D.O.M. Mas a humildade é fundamental para entregar um bom serviço.
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G |E para quem quer entrar nessa área, o que você recomenda?
LF |Tem que conhecer todos os estilos de vinho, não adianta ficar só no que gosta. Só gosto de tinto, só gosto de branco, ou só gosto de uma uva. Tem que provar de tudo. É preciso estudar também. E não estou falando da formação, pode começar com os cursos das importadoras, cursos básicos. Isso melhora o serviço do garçom também.
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G |Qual é a sua missão na profissão?
LF |Dar o meu melhor enquanto eu estiver em serviço.
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