CV: Celina Hissa
A designer e empresária é dona da Catarina Mina, marca expoente da moda sustentável que vende peças no Brasil e no exterior e movimenta dezenas de artesãs do Ceará
Celina Hissa, 39, é criadora da Catarina Mina, que produz bolsas, roupas e acessórios de palha, renda e crochê feitas por artesãs do interior do Ceará. Em quase duas décadas de trabalho, a empreendedora cearense fez da marca uma incubadora de projetos de capacitação, gestão, resgate e valorização de artesanato em diversas partes do seu estado. Suas peças conquistaram fashionistas, figuraram em colaborações com marcas como Osklen e Água de Coco, apareceram em feiras e desfiles na Europa e lhe renderam prêmios como o ECOERA, da revista Vogue.
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“Artesanato não é só sobre o produto, é sobre tudo o que tem por trás”, conta ela. “Valorizar esse conhecimento movimenta uma cultura e gera renda e empoderamento para mulheres e comunidades.” Um QR Code anexado à etiqueta de cada peça conta um pouco da história dessas pessoas, que são parte de projetos como o Olê Rendeiras, que Hissa articulou com artesãs de Trairi (CE). Além disso, desde 2015, a marca trabalha com custos abertos: o site explica item por item quanto do preço de cada peça vai para remuneração da artesã, materiais, impostos, gastos com marketing, frete, etc.
Valorizar o conhecimento do artesanato movimenta uma cultura e gera renda e empoderamento para mulheres e comunidades
“Essa iniciativa vem na intenção de mover quem compra a pensar como funciona a cadeia de moda e que tipos de vida e pensamentos incentivamos com nosso consumo.” Recentemente, a marca passou a fazer parte da plataforma Nordestesse, um coletivo de moda e cultura que valoriza a região.
Publicitária, designer e mestre pela Universidade Federal do Ceará (UFC) em modos de produção coletiva, Celina Hissa sempre quis trabalhar com criação. Antes e durante a fundação da Catarina Mina, trabalhou em agências de publicidade como diretora de arte e fez cenografia e stands para peças de teatro e empresas. Em 2013, reuniu seus talentos em uma exposição no Museu do Dragão do Mar, em Fortaleza, com peças que trabalhou com artesãs de diferentes cidades e tipologias.
A Gama, ela falou sobre suas motivações e desafios.
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G |O que te trouxe até aqui?
Celina Hissa |Sempre gostei de arte, de criação, de coisas manuais. Tanto que o que eu queria mesmo era fazer design de produto, mas não tinha faculdade disso em Fortaleza. Mas eu tinha isso de querer entender a serviço de quem eu estava criando, era uma coisa que me angustiava na publicidade. Criar é fácil, a questão é o que que você movimenta quando está criando. Eu já gostava dessa temática de sustentabilidade há tempos, só não tinha o repertório para entender a sua real importância. Eu sou ariana, acho que muita coisa eu fui fazendo de maneira intuitiva e só fui entender mesmo mais para frente. Já meu interesse em artesanato surgiu muito por estar no Ceará mesmo: é um estado em que você convive muito com isso, aqui tem tear, crochê, renda de bilro, filé, bordado, peças de palha de bananeira… É muita coisa que merecia uma valorização maior. E nesse processo descobri que eu gostava muito de trabalhar com grupos e desenvolver coisas que eram desafiadoras.
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G |Qual sua missão na sua profissão?
CH |Repensar os laços entre designers, artesãs e consumidores. E fazer a renda chegar a lugares onde ela não chegaria com o artesanato. Eu não consigo criar sem ter uma função, e, como designer, eu entendo isso não só na funcionalidade do objeto, mas nessa parceria com as artesãs. É de dentro para fora, pensar o que a comunidade precisa antes de tudo. E eu disse “consumidores” porque eu acredito na questão política do consumo, de entender que, quando você consome, você está movimentando a cadeia de alguma forma. Um dos pontos fortes da marca hoje justamente é a forma como ela conseguiu comunicar a sustentabilidade. A valorização de quem faz, de entender quem está por trás de cada peça. A gente entende cada vez mais que isso está no nosso escopo, porque se valorizamos o trabalho do artesão e ele próprio o consumidor começa a pensar sobre isso quando comprar uma bolsa nossa, e ele vai começar a refletir quando está comprando outras coisas também.
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G |Você vive para trabalhar?
CH |Eu sou mãe, tenho um filho de quatro anos. E às vezes é difícil separar o tempo direito, ir à academia. Eu acho que a gente misturou muito as coisas com o celular, essa possibilidade de trabalhar de qualquer canto. E eu gosto muito de criar, eu faço com prazer, mas às vezes vem uma culpa de não estar reservando um lugarzinho para cada coisa.
Criar é fácil, a questão é o que que você movimenta quando está criando
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G |Como você vê transições e recomeços na vida profissional?
CH |Em 2009, depois que eu já tinha começado a marca, pedi para o meu chefe na agência de publicidade para trabalhar só meio período. Mesmo depois de sair totalmente, eu continuei fazendo freelas como diretora de arte até 2015. Então eu nunca tive uma ruptura muito forte, foi uma transição aos poucos. E na Catarina Mina fui eu que fiz o logo, o site, eu me entendo como diretora de comunicação também. Hoje eu vivo outras transições, de sair um pouco do criativo e entender mais de gestão, por exemplo.
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G |Como é trabalhar nessa lógica coletiva, de grupo?
CH |Nos grupos artesanais tem muita vontade de compartilhar, elas têm muito prazer em ensinar e ver aquele saber ser passado por gerações. E no Ocidente a gente tem muito essa coisa de olhar o conhecimento como uma coisa que tem valor monetário: esse saber é meu e, quando eu passo, eu cobro. Nos grupos, eu vejo isso de outra forma, o conhecimento aparece como algo mais coletivo. Além disso, é interessante porque eu venho desse lugar onde a criatividade é muito individual,eu gosto de pensar sozinha às vezes, mas eu também gosto muito de criar em grupo. Para fazer isso, é preciso criar estruturas em que se preserva a autonomia e as diferenças, mas se valoriza o trabalhar em grupo com um mesmo objetivo. E isso não é fácil, tem desafios em como colocar a hierarquia, por exemplo.
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G |Quais seus principais desafios em trabalhar com artesanato?
CH |Uma vez eu ouvi do filho de uma artesã: “A gente não quer projeto com artesanato porque isso não dá dinheiro, as nossas mães trabalham com isso há muito tempo e não levou a lugar nenhum”. Então um dos maiores problemas é a descrença de que o artesanato pode ser uma fonte de renda. Por isso, sempre que a gente chega a uma comunidade, o primeiro desafio é fazer aquilo gerar impacto financeiro, fazer o grupo volta a acreditar que é possível sim ganhar dinheiro com artesanato. E aí precisamos entender a capacidade produtiva do grupo – e cada tipologia artesanal tem seus desafios nesse sentido, uma peça de renda de bilro, por exemplo, pode demorar até 15 dias para ser feita. E para a gente entrar nessas etapas de gestão e conseguir atuar em todos esses lugares, a gente precisa de apoio, de captação de verba, eu estou sempre trabalhando com essas ideias. Precisamos de mais parceiros para movimentar o artesanato, mas há desafios – trabalhar com grandes marcas, por exemplo. Muitas vezes é difícil porque elas vêm com projetos muito prontos e não entendem o tempo e o dinâmica do artesanato.
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G |Como lida com momentos de desânimo?
CH |É uma montanha-russa, realmente, porque os últimos anos não foram fáceis. E não só por causa da pandemia, mas pelo crescimento da marca e esse desafio de trabalhar com grupos e virar gestora de uma equipe. Cada projeto novo é um compromisso que você estabelece com um grupo de artesãs, e aí vem a cobrança de atender essas demandas. Eu acho que eu lido com desânimo como muita gente lida, vou dormir achando que o mundo vai acabar, quero desistir de tudo, e acordo bem depois. Ajuda ter a equipe de mulheres incríveis que eu tenho comigo – somos 15 na marca hoje, fora as artesãs –, a gente se complementa muito. Então às vezes eu posso estar num dia ruim, mas tem outra pessoa da equipe superfocada.