Entrevista Antonio Silva Lima Neto — Gama Revista

Curriculum Vitae

CV: Antonio Silva Lima Neto

©Divulgação

À frente da luta contra o coronavírus no Ceará, o médico epidemiologista Antonio Silva Lima Neto já enfrentou alguns dos piores surtos de doença do estado e do país

Mariana Payno 01 de Julho de 2020

Duas dengues, uma infecção por zika e outra por um vírus menos comum, o citomegalovírus. Além disso, cinco testes para Covid-19 — por enquanto, todos negativos. Parece bastante para um só corpo aguentar, mas a verdade é que essa breve ficha médica é só um detalhe na extensa trajetória do epidemiologista Antonio Silva Lima Neto, que enfrenta agora a oitava crise à frente da Célula de Vigilância Epidemiológica da Secretaria Municipal de Fortaleza e como integrante do Comitê Científico do Consórcio Nordeste para o combate da atual pandemia.

Antes do coronavírus, ele monitorou surtos de H1N1, chikungunya, zika e dengue na capital cearense. Como médico epidemiologista, não cuida de pacientes, mas seu trabalho é tão importante quanto: consiste na chamada “resposta epidemiológica”, isto é, em analisar dados para guiar da melhor forma as tomadas de decisão do poder público em momentos como esses. O desafio agora é grande, já que o Ceará é um dos estados brasileiros mais afetados pela Covid-19, mas Lima tem boa bagagem para encará-lo. Médico formado pela Universidade Federal do Ceará, ele se especializou em instituições de renome: fez residência em Medicina Preventiva na Fiocruz; mestrado em Epidemiologia na London School of Hygiene and Tropical Medicine da Universidade de Londres — onde conheceu modelos do mundo inteiro para práticas de vigilância ambiental em saúde — e um recém-completado pós-doutorado na Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard.

Lima atuou como consultor do Comitê Estadual de Prevenção dos homicídios de adolescentes em Fortaleza

Nesse meio tempo, no começo dos anos 2000, Lima trabalhou também no Ministério da Saúde e participou da investigação da febre maculosa, da “doença da vaca louca” e das ameaças de guerra biológica, comuns naquela época logo após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. “O trabalho era investigar novas doenças e criar protocolos para ser desenvolvidos pelas respectiva áreas técnicas, além de acompanhar surtos”, conta. Já no cargo da Secretaria de Saúde de Fortaleza, até crise de segurança pública o médico enfrentou, como consultor de um comitê para prevenção de homicídios de adolescentes, parceria premiada da Unicef com a prefeitura da capital cearense e a Assembleia Legislativa do estado. “Vivíamos uma epidemia de homicídios muito grave, que foi também abordada sob o prisma da epidemiologia”, explica.

Mas, além de atuar ao lado do poder público nessas situações complexas, o médico também ocupa o outro lado da balança. Foi professor da Escola de Saúde Pública do Ceará no final dos anos 1990 — um momento em que o foco era a capacitação de profissionais para atuar no SUS — e hoje dá aulas no curso de Medicina da Universidade de Fortaleza. “Não sou puramente um pesquisador, também estou no olho do furacão. Não consigo conceber a academia sem o serviço público e não me sentiria confortável em abandonar nenhum dos dois”, diz ele. Esse trânsito, tão essencial nos tempos em que a ciência é constantemente negada por governantes, também preparou o epidemiologista para a luta contra o coronavírus.

Na época em que trabalhava no Ministério da Saúde, Lima implantou um modelo de vigilância de doenças tropicais nos estados da Amazônia Legal

A trajetória de Antonio Silva Lima Neto foi acertada, mas também cheia de casualidades — o que é, irônico, segundo ele, para quem trabalha em uma área em que a prevenção é palavra de ordem e não se pode dar o luxo de contar com o acaso. “A medicina nunca foi uma vocação plena”, confessa. “Fui fazer a residência na Fiocruz porque uma tia me deu um folheto, o mestrado em Londres surgiu de uma reunião em que eu nem sequer ia. Para o Ministério da Saúde, fui só fazer uma entrevista e nem sabia para que área. Fui cair na área de doenças emergentes e investigação de surtos e foi aí que comecei a trabalhar com o que eu mais gosto, que é a epidemiologia.”

A seguir, o médico conta mais a Gama sobre esse caminho imprevisível que o levou a ser um dos grandes nomes no enfrentamento de uma das maiores pandemias da história e sobre o dia a dia nessa batalha.

O médico com colegas do mestrado em Epidemiologia Ambiental e Políticas na Universidade de Londres
  • G |Você está trabalhando agora no combate ao coronavírus no Ceará. Como está sua rotina?

    Antonio Silva Lima Neto |

    Está sendo bem difícil, mas faz parte da nossa profissão. Minha rotina começou a se intensificar com a primeira medida de isolamento em Fortaleza, a partir do dia 19 de março. Estou desde então trabalhando full time, porque temos que monitorar [os dados] sistematicamente. Temos que entender uma série de questões envolvidas, como desemprego ou pessoas sem casa, e tomar decisões que sejam muito acertadas, muito baseadas nos indicadores epidemiológicos e que não podem ser retardadas. E tem as repercussões na saúde mental, física. A maioria das pessoas que trabalham comigo testaram positivo [para o coronavírus] em algum momento.

  • G |Você tem medo de ficar doente?

    ASLN |

    Tenho medo de outras doenças, mas francamente de pegar o corona, não. Isso faz parte do nosso trabalho. Se você me perguntar se tenho medo de ter uma doença crônica, câncer, de morrer do coração… Tenho. Medo de pegar o corona, não. Talvez por causa do meu cotidiano. A gente que trabalha com epidemia, alguns têm mais medo, outros menos, uns se protegem com mais eficiência, outros com menos. Mas a epidemia é inerente ao dia a dia da gente. A nossa perspectiva [sobre ela] é diferente.

  • G |Como os profissionais da sua área podem lidar com a saúde mental neste momento?

    ASLN |

    Tem duas coisas que penso [ser necessárias] em epidemias. A primeira é a serenidade. Tem que estar sereno, olhar os dados com calma, com paciência. A segunda é que é muito importante que todos naquele ambiente de trabalho estejam se sentindo confortáveis, que todo mundo esteja numa boa, fazendo coisas juntos, na mesma sintonia. É um desafio, porque tem muitos dias de muito cansaço.

  • G |Além do cansaço, quais têm sido os maiores desafios para o seu trabalho?

    ASLN |

    Tem um desafio muito pessoal para mim: o descompasso entre o que o governo federal pensa que está acontecendo e o que a gente, que é tomador de decisão, tem que fazer. Isso é muito revoltante e quase incapacitante. Tenho colegas médicos negacionistas, a turma da cloroquina. Isso é muito desestimulante. Fora isso, não é fácil estar há 100 dias em isolamento social, é uma coisa que mexe com a cabeça da gente.

  • G |Este é um período em que a importância da medicina e da pesquisa ficou muito evidente. Como promover o diálogo entre a ciência, o poder público e a população?

    ASLN |

    Houve um abandono da ciência, e o negacionismo científico está muito entranhado, mais do que a gente imagina, ele tem capilaridades na população. Esse diálogo que tem que existir entre a ciência e a tomada de decisão, num momento tão crucial como este, tem sido sequencialmente negado pelo governo federal. Então estamos tendo que recuperar a credibilidade das instituições, porque a população acaba recebendo uma mensagem dúbia.

  • G |Qual foi o maior aprendizado da sua trajetória trabalhando com doenças infecciosas e que podem matar?

    ASLN |

    Que as epidemias são, por natureza, eventos que precisam de respostas com alta dose de evidência científica. As crenças podem ser importantes para a vida das pessoas, mas as epidemias só podem ser enfrentadas com muita evidência científica.

  • G |Que conselho você daria para os médicos que estão começando agora e que pretendem seguir carreira na sua área?

    ASLN |

    Minha trajetória é muito cheia de acasos. Não sou um exemplo de pessoa que planejou a carreira, então não sei dizer se sou um bom conselheiro. Mas, se for para dar um conselho, é: experimente coisas novas, esteja aberto, pronto para novos desafios. É importante ter curiosidade e também ter formação ampla, ler, conhecer história, exemplos. Está faltando leitura, viu? Leitura do mundo, não só leitura científica, mas Tchekov, João Guimarães Rosa, a história de Carlos Chagas. Sem isso, ninguém consegue ter uma visão ampla, porque não conhece a base. Sem a base é muito difícil fazer algo diferente, que não seja mais do mesmo.

  • G |Você se considera otimista?

    ASLN |

    Em relação ao Brasil, neste momento, sou muito pessimista. A gente não tem comitê de especialistas ou ministro da saúde. As análises são muito ruins. Agora, filosoficamente sobre outros aspectos, gosto de especular o que mudaria e pensar como as epidemias podem ter ajudado a desenhar a humanidade. Talvez esta esteja ajudando a redesenhar a geopolítica mundial, pode fazer o Trump a perder a eleição. Não vejo nada de bom nessa pandemia, apenas acho que ela pode redesenhar a geopolítica do mundo.

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação