CV: Alessandra Montagne — Gama Revista
Divulgação/Anne Claire Heraud

CV: Alessandra Montagne

À frente de três restaurantes em Paris, chef brasileira luta contra o desperdício de alimentos e vem chamando a atenção na concorrida cena gastronômica da cidade

Leonardo Neiva 01 de Novembro de 2022

Durante a infância e juventude passadas na cidadezinha mineira de Poté, de pouco mais de 16 mil habitantes, Alessandra Montagne, 45, nem imaginava que um dia chegaria a chefiar não apenas um, mas vários restaurantes em Paris. Aos 22 anos de idade e sem grandes perspectivas de emprego por aqui, a chef dos parisienses Nosso, Dana e Tempero decidiu pegar um avião rumo à sede da Torre Eiffel, onde foi morar com a mãe. E nunca mais voltou. “Quando cheguei em Paris, foi surreal. Me apaixonei pela cidade, foi amor à primeira vista”, conta. Por lá, teve a oportunidade de cursar gastronomia na escola Médéric, o que lhe deu bagagem para finalmente abrir o próprio empreendimento em 2012: o restaurante Tempero.

Com uma gastronomia que mistura influências desde a culinária francesa até a brasileira e asiática, e reconhecida por chefs como Alain Ducasse, que coleciona 21 estrelas Michelin ao longo da carreira, Montagne estará entre os convidados do congresso Mesa SP, que acontece de 3 a 5 de novembro no Memorial da América Latina. Este ano, um dos maiores eventos de gastronomia do Brasil também reúne nomes como Janaína Rueda, Alex Atala e Bel Coelho numa edição que discute os caminhos da cozinha afetiva.

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Antes mesmo de ter qualquer formação na área, Montagne já costumava cozinhar para amigos e família, que sugeriam que ela pensasse em transformar a atividade num trabalho. No Brasil, ela chegou a vender coxinhas que fazia para juntar dinheiro. “Mas eu nem pensava em ousar ser chef no país da gastronomia”, revela. Só que a ideia foi fincando raízes até se transformar em um curso de gastronomia e outro de confeitaria. Depois de passar por cozinhas comandadas por chefs como William Ledeuil, do Ze Kitchen Galerie, e Adeline Gattard, do Yam’Tcha, Montagne juntou todas as suas economias para abrir o então pequenino Tempero. “Fui pegando confiança aos pouquinhos. Do dia em que abri até o que vendi, o restaurante esteve sempre cheio.”

A venda do Tempero foi justamente para inaugurar uma casa maior, o Nosso, em 2020. Pouco após abrir as portas, no entanto, ela teve que fechá-las com a chegada da pandemia. O restaurante passou praticamente um ano e meio fechado, acumulando gastos. “Tem que ter resiliência, não adianta chorar nem espernear. Se está fechado, está fechado. Não tinha mais dinheiro, restaurante nem trabalho.” Além de precisar equilibrar as contas, ela aproveitou esse tempo para participar de projetos sociais, cozinhando para quem passava fome, e também para se reconectar com a natureza.

Essa conexão motivou a mineira a lutar contra o desperdício de alimentos em seus restaurantes, chegando até mesmo a eliminar as lixeiras de sua cozinha para obrigar a si mesma e seus colaboradores a aproveitar ao máximo os ingredientes. “Uso o talinho de coentro para fazer um pozinho e jogar numa bochecha de boi confitada. Fica uma delícia. A pele da maçã vira uma compota ou vinagre.”

Hoje à frente de cinco restaurantes — além dos já citados, ela acaba de abrir mais dois estabelecimentos menores também em Paris –, a chef precisou enfrentar também alguns desafios familiares ao longo de sua trajetória. Quando foi a Paris, precisou deixar o filho pequeno no Brasil. Mais tarde, lutou durante quatro anos para conseguir levá-lo à França. “Fiz o que, na época, me parecia o melhor para nós dois, e graças a Deus deu certo. Aliás, não tinha opção de não dar certo, porque deixei muita coisa para estar aqui.”

Atualmente casada com um francês, com quem teve uma filha, Montagne é defensora da valorização dos produtores locais e conta que a felicidade por alimentar é o que a move em sua profissão. No entanto, ainda tem dificuldade para lidar com críticas negativas sobre sua comida. “Fico doente”, diz. Para ela, com trabalho duro é possível alcançar até mesmo o que parece impossível. “Cheguei aqui com 22 anos. Neste ano, fiz 45. Já vivi mais tempo na França do que no Brasil.”

Em conversa com Gama, Montagne também fala sobre a importância das pequenas ações para lidar com a crise ambiental e a responsabilidade do chef pela felicidade de seus colaboradores.

  • G |O que te moveu a trilhar esse caminho da gastronomia?

    Alessandra Montagne |

    Sempre amei cozinhar. Sinto uma felicidade que não sei explicar quando dou comida para as pessoas, é uma coisa tão forte. Quando alguém não gosta, nem leio os comentários porque fico doente. Vai além da gastronomia. Faço trabalho voluntário na França porque tem muita gente necessitada, muitos refugiados chegando de barco. Uma vez por mês, vou lá fazer comida para eles. É uma chance incrível estar na posição em que estou, então não posso deixar de retribuir à vida o que ela me deu. Hoje escolho o restaurante aonde ir e o que comer, é um privilégio do qual às vezes a gente esquece. Na crise sanitária, fiz um trabalho com outros chefs para dar comida aos estudantes, os primeiros impactados aqui porque não tinha mais onde trabalhar. Hoje sinto uma necessidade cada vez maior de alimentar.

  • G |Quais lições você tirou do período da pandemia, que acabou fechando tantos restaurantes tradicionais?

    AM |

    Foi terrível. Tinha vendido o Tempero, meu restaurante pequenininho, para comprar o Nosso, quando o governo fechou tudo por conta da pandemia. Comecei a gastar meu dinheiro para pagar a reforma e o aluguel do restaurante fechado. Tem que ter resiliência, não adianta chorar nem espernear. Se está fechado, está fechado. Não tinha mais dinheiro, restaurante nem trabalho. Quando você sabe que pode perder tudo, começa a viver com o essencial. Passei a investir em projetos sociais, ajudar mulheres em dificuldade. Entrei numa escola de naturopatia e fiquei mais em contato com a natureza. Foi uma chave que virou na minha cabeça. Fui me dando conta de que tinha até sorte de lidar com esse tipo de problema, um restaurante fechado. Quando você vê gente morando na rua, seus problemas viram pequenos.

  • G |Como você lida com a questão do desperdício nos seus restaurantes?

    AM |

    Na minha cidade, a gente colhia o que plantava. Quando você planta, não joga fora o que colheu. Você sabe o tempo que demora para nascer uma salada ou seu feijão. Na França, quando entrei na escola e nos restaurantes onde trabalhei, vi que tinha muito desperdício. Então comecei a pensar em como usar as coisas que sobravam. Aos pouquinhos, fui fazendo com que no meu restaurante ninguém jogasse nada fora. Não tenho lixo na cozinha, o que obriga as pessoas a pensarem no que fazer com as sobras. Com a parte verde do alho-poró, dá para fazer uma quiche. Uso o talinho de coentro para fazer um pozinho e jogar numa bochecha de boi confitada. Fica uma delícia. A pele da maçã vira compota ou vinagre. O que não dá para utilizar a gente coloca no lixo compostável, e o fazendeiro leva embora para usar na terra.

  • G |Qual foi a importância da formação acadêmica para trabalhar com a gastronomia?

    AM |

    Sou uma pessoa que gosta de ver como se faz, e depois faço do meu jeito. Não tive oportunidade de ir para a faculdade no Brasil, mas aqui pude ir a uma das melhores escolas de gastronomia da França. Queria saber qual a base da gastronomia francesa. Depois, fiz da minha maneira, mas sempre usando o que aprendi. Num creme inglês, por exemplo, se coloca 220 gramas de açúcar. É muito! Eu ponho 70 e fica maravilhoso. Também não coloco tanta gema de ovo e, em vez de baunilha, uso uma ervinha do mato que descobri na aula de naturopatia. O açúcar não é bom para o corpo. Não digo para não comer, mas podemos comer menos.

  • G |Você teve um mentor nessa trajetória?

    AM |

    Várias pessoas me deram a mão. Hoje devo minha carreira a muitos chefs, que me reconheceram super cedo e me trataram como uma igual. Um deles é o Alain Ducasse, meu grande mentor, mas tem também o Yannick Alléno, o Romain Meder, a Adeline Grattard, o William Ledeuil. Devo muito a todos eles. Certa vez, o Alain me convidou para fazer um jantar a seis mãos no evento Le Repas Gastronomique des Français [promovido pela Unesco], com o Gérald Passedat, que tem três estrelas Michelin… Um reconhecimento e uma confiança incríveis e inesperados.

  • G |Quais têm sido os maiores desafios para o seu trabalho? É difícil apresentar a gastronomia brasileira numa cidade como Paris?

    AM |

    O importante para mim hoje é participar da economia do país onde vivo. Compro legumes de um produtor que está no máximo há 50 km do meu restaurante. Não faz sentido trazer coisas do Brasil para cozinhar aqui. Nosso mundo está se autodestruindo. Este foi o ano mais quente de todos os tempos na Europa. A natureza está se exprimindo de maneira violenta para a gente entender que existe uma urgência climática. Não vou salvar o mundo com minhas atitudes, mas, se cada um colocar uma gotinha, acredito que elas vão se transformar num oceano. Uma exceção é que não consigo ficar sem pão de queijo. Então escolho um produtor brasileiro e pago o preço justo. Aqui você acha farinha de pão de queijo a um euro. Eu compro a sete euros, porque sei que uma parte importante desse dinheiro vai para o produtor.

  • G |Ao longo da sua trajetória, você cometeu alguma falha que não cometeria hoje?

    AM |

    É muito importante cometer erros. Eu valorizo cada um dos meus. Há seis anos, empreguei um estudante de ciência política que largou tudo para virar cozinheiro. Ele entrou num serviço super difícil, à noite, com o salão cheio. O cliente pediu um filé mignon mal passado, e o menino errou o ponto. Comecei a brigar, e ele entrou em pânico. Aí saí para me acalmar, voltei, peguei no braço dele, falei que eu tinha cometido um erro gigante e a gente conseguiu terminar o serviço. Nunca mais gritei com um dos meus colaboradores. O menino agora é chef e hoje a gente ri disso, mas foi um erro grave. Eu tirei a confiança dele. Se não tivesse me acalmado, todo mundo ia perder: eu, ele e todos os clientes. Para ser um bom chef, também precisa aprender a trabalhar com as pessoas ao seu lado. Sou responsável pela felicidade deles. É minha culpa se alguém se sente mal ou sofre burnout.

  • G |Já chegou a enfrentar racismo ou machismo nesse mercado?

    AM |

    É raro ter problema com machismo ou racismo, mas quando acontece dói, né? Primeiro choro escondido, para ninguém ver. Depois respiro fundo e lembro que já vivi tanta coisa difícil que não vou deixar isso me derrubar. Vou lá e chamo a pessoa para conversar. Quando digo que foi racismo e que ela me ofendeu, geralmente a pessoa responde que não falou por mal. Mas quero que ela entenda que fez algo errado, para não repetir. Se eu só fizer cara feia, ele perde a oportunidade de aprender, e eu, de resolver de alguma forma. Gosto de falar as coisas, não fico com nada guardado no coração.

  • G |Que conselho você daria para os profissionais que estão começando agora, talvez vindos da periferia ou do interior, e que pretendem seguir carreira na gastronomia?

    AM |

    Primeiro, que tudo é possível. Depende da energia que a pessoa está disposta a colocar naquilo. Se eu consegui, qualquer um pode. Nasci em Poté, uma cidade pequena. Tive uma infância super feliz, mas simples. Nada nesta Terra indicava que eu estaria aqui hoje. Antes de subir no ônibus para vir embora, meu avô me pegou pelo braço e disse: ‘Nunca esqueça que boi em terra alheia vira vaca.’ Então, se eu tinha costume de responder, aqui devia ficar calada e obedecer. Falei que não ia ficar boazinha não, lembro até hoje. Mas o que ele quis dizer era que eu precisava fazer minhas coisas, trabalhar muito. Trabalhar mais que os outros para conseguir algo, porque não sou daqui. Talvez tenha seguido o conselho dele até sem me dar conta. Nada vem de mão beijada.

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