Arte do entorno
Artistas brasileiros têm buscado inspiração em cenas do cotidiano para suas pinturas — isso pode significar da representação de uma galinha caipira a uma caixa de leite
Quando uma galinha caipira começou a ciscar por alguns de seus quadros, por volta de 2012, o artista Fábio Baroli soube que era hora de deixar o Rio de Janeiro e voltar para sua Uberaba natal. Na época, o pintor vinha trabalhando com imagens de contexto erótico, óleo sobre tela, usando uma técnica que tomava como base fotografias, que ele mesmo tirava, para criar pinturas bem suas.
No entanto, a figura da galinha que pouco a pouco foi se esgueirando para dentro dos quadros do artista fez não só com que Baroli voltasse fisicamente para uma estadia prolongada na cidade mineira onde nasceu e viveu a juventude, como também desviou seu olhar artístico para temas muito mais próximos do lar.
“De repente, meu trabalho estava despertando para uma reconexão com a terra, com o caipira, com a cultura do campo”, conta. Embora tenha crescido num bairro da periferia urbana de Uberaba, seus pais vinham da zona rural, assim como os tios, que mantinham uma fazenda na região.
Esse retorno permitiu que o artista passasse a retratar em suas obras elementos cotidianos da cidade, como cenas de feiras de rua e festas religiosas, no que Baroli considera um estudo da cultura do matuto na contemporaneidade, em contato com o urbano. Ou, em suas próprias palavras, uma “antropomatutologia”.
Mesmo sem ter consciência disso, Baroli pode ser incluído em um movimento contemporâneo que corre informalmente e representa imagens, cenas e elementos do cotidiano brasileiro em pinturas que muitas vezes se assemelham a fotografias e tratam de questões regionais e de identidade.
Arte nossa de todo dia
De um pacote de bolacha Passatempo selado com arame ao senhor que adormece com a cabeça pendendo sobre a mesa de plástico do bar, o pintor de São Bernardo do Campo Rodrigo Yudi Honda ganhou fama nas redes sociais por pintar cenas reconhecíveis da vida na cidade.
Para Honda, as redes permitem uma relação mais honesta e horizontal entre público e arte, sem a necessidade de um curador ou expert para apontar o que é bom e o que não é. O risco, segundo ele, é que essa exposição torne o artista refém de likes e algoritmos, num ambiente onde o barulho, a extroversão e o apelo imediato costumam atrair mais atenção
Ele também rejeita o rótulo de pintor de imagens da periferia — “Já pintei muita coisa diferente, mas as pessoas levam para esse lado. Vou fazer o quê?” —, rechaça qualquer intenção sociológica por trás de suas obras — “Não sou engenheiro social, sou apenas um pintor” — e afirma unicamente seu interesse pelas coisas comuns.
“A partir do momento em que a gente começa a prestar atenção no entorno, nas pequenas coisas do dia a dia, percebe que há muitos elementos em comum no nosso imaginário. Acho que as pessoas se aproximam do meu trabalho não porque sou especial, mas justamente porque eu sou um cara comum.”
A pintura que olha para o entorno, baseada na observação do cotidiano é uma exceção na arte brasileira, diz o professor de história da arte da Unicamp e colunista da Folha de S.Paulo, Jorge Coli. Pelo contrário, a principal regra por aqui sempre foi se refugiar em um imaginário o mais distante possível da realidade.
“O indianismo, no século 19, é um bom exemplo. Ele excluiu o olhar sobre a realidade para fechá-lo num imaginário literário altamente manipulador, centrando-se num índio inexistente e criando o mito do ‘nobre antepassado’.”
Por causa disso, a representação dos índios escravizados e dizimados por pouco não foi excluída da representação artística no Brasil. Não fossem os artistas viajantes vindos do estrangeiro, que pertenciam a uma cultura muito diferente da local e tinham um olhar mais interessado nessas questões, nos restaria pouca ou nenhuma ideia visual de como era o cotidiano naquele período.
De acordo com Honda, mesmo hoje a maioria dos artistas está mais preocupada em usar suas obras para fazer discursos do que para representar experiências pessoais. “Eles falham em retratar o Brasil porque o Brasil não é um discurso.”
Apocalipse verde e amarelo
Pelas paredes de uma galeria de arte nos Jardins, em São Paulo, desfilam garrafas de cervejas nacionais, latinhas, copos e corpos apoiados sobre mesinhas de bar. No teto, um ser quase mitológico, metade cavalo metade policial militar fardado, aponta um fuzil para o centro de uma roda de pessoas, enquanto alguém toca uma trombeta que parece anunciar o fim do mundo.
As visões desse apocalipse à moda brasileira, expostas na Galeria Sé, são resultado de uma residência de três meses durante a pandemia do artista carioca Edu de Barros, que mora na Rocinha. No começo, a ideia era abrir uma mostra na galeria em março, mas os planos foram por água abaixo com o início da quarentena. Ao lado do amigo e também artista Raoni Azevedo, Barros decidiu morar de vez no espaço entre março e junho para delinear os afrescos que hoje cobrem o interior da galeria.
“Sempre fui muito para o centro do Rio e, nesse percurso, acabava absorvendo muitas experiências urbanas. Com isso, acabei criando minha própria liturgia, meus próprios símbolos. A pintura era uma forma de enxergar as coisas que via no dia a dia, objetos que hoje aparecem no meu trabalho, como cadeiras de bar e esponjas de cozinha. São elementos banais em que enxergo um potencial para dizer algo além.”
Conhecido como “profeta”, Barros integra a Igreja do Reino da Arte, coletivo criado por artistas da Rocinha que buscam alcançar o divino por meio do processo artístico. Entre eles, também está o pintor Maxwell Alexandre, que, representando cenas do cotidiano da comunidade, já expôs obras em lugares como o Museu de Arte do Rio (MAR) e o Museu de Arte Contemporânea de Lyon, na França.
Com grande influência religiosa por parte da família, Barros também cria esculturas e instalações usando objetos do cotidiano, como um arco-íris formado por cadeiras coloridas de bar e um brinquedo upa-upa infantil todo em dourado, que remete ao deus criado por Aarão enquanto Moisés estava longe, durante o Êxodo bíblico.
“Muitas vezes buscamos a espiritualidade e a religião numa igreja, um local considerado sagrado. O exercício que faço é tentar enxergar esses elementos divinos no dia a dia, buscando o sublime no cotidiano”, diz o artista formado em design pela PUC-Rio
Por uma pintura regional
Entre as exceções à arte hegemônica na história do Brasil, Jorge Coli aponta Almeida Júnior (1850-1899), mais conhecido por suas representações de tipos caipiras paulistas, como um dos destaques. Além de se inserir no contexto internacional da pintura naturalista, o artista nascido em Itu (SP) foi um dos principais ícones da arte regionalista do país. “Uma das grandes qualidades de Almeida Júnior é que ele vai além do pitoresco para criar figuras que contêm em si a violência latente e silenciosa.”
Admirador da obra do pintor, Baroli diz que ele tem sido uma de suas inspirações desde que voltou os olhos para temas rurais. Ao tentar representar a figura do homem do interior paulista, o artista teria sido um dos poucos a empreender uma busca legítima pela identidade nacional pela arte, sem depreciar o indivíduo retratado.
De acordo com o artista mineiro, o mesmo não pode ser dito de Monteiro Lobato, que representou o caipira no personagem Jeca Tatu, figura indolente, ignorante e preguiçosa… em resumo, um símbolo do retrocesso.
Uma das principais séries artísticas de Fábio Baroli surgiu justamente do preconceito de colegas e galeristas sobre seu retorno à cidade natal. E, claro, da galinha, que não o abandonou desde que começou a meter o bico em suas pinturas.
Com “O vendedor de galinhas”, o artista representa o animal em seus vários tipos, posando em diferentes posições, numa série que termina com a inevitável representação da degola pelas mãos de um casal de fazendeiros.
“Quando deixei o Rio, começou um burburinho de que largaria minha carreira como pintor para vender galinha em Uberaba. Teve gente que chegou a desistir de comprar obras porque achou que minha carreira estava tomando rumos duvidosos. Esse trabalho vem daí”, explica.
Baroli permaneceu em Uberaba até 2017. Formado em artes visuais pela Universidade de Brasília, hoje ele cursa um mestrado em poéticas visuais na USP. O interesse pelas cenas e tipos uberabenses, no entanto, não esfriou.
“Sou caipira e quero reafirmar isso. O grande problema é como falar desses temas hoje, como inseri-los na arte contemporânea. Confesso que às vezes fico perdido. Estou falando de regionalismo e fazendo pintura a óleo, tudo que é velho e antigo. Mas o que tento trazer é uma revisão da arte brasileira, e acredito que podemos sim usar meios antigos para criar coisas novas.”