Em depoimento inédito, Zé Celso fala de envelhecimento e finitude
Jornalista que o entrevistou há mais de duas décadas, quando ele tinha 65 anos, resgata fala do diretor de teatro, que morreu neste mês
“A morte é a única coisa certa que existe. Já fiz trabalhos em que coloco a morte, expus minha relação com ela no teatro. Acredito que, ao morrer, você se desagrega e suas partículas todas vão fazer parte do turbilhão da vida, que vai continuar sempre.
A vida é eterna.
Adoro a vida. Quero viver o máximo que eu puder, quero experimentar chegar, pelo menos, até os 90 anos. Será difícil porque tenho a saúde muito frágil. Mas quero ver. É muito bom quando você descobre que é capaz de ter tesão ainda, de ter amor. Há prazeres no corpo inteiro.
Na velhice, você se aproxima muito da morte. Muitas vezes, entro em cena e não me sinto bem. ‘Bom, então acho que vai ser hoje, este é meu último trabalho’, penso. Mas isso me dá vida: o fato de estar jogando com a morte.
Com o tempo você vai criando um outro corpo, que o ator chama de ‘corpo sem órgãos’. Na maturidade você compreende que sua vida física é extremamente importante e ela tem extensões pelo espaço todo. Seu cérebro se expande – inclusive por meio da tecnologia.
Tenho que viver e criar porque, se não vivo para isso, não tenho o que me segure
Como sou um artista – felizmente – que não sou unanimidade, pois sou visto como um louco às vezes, isso faz com que constantemente eu esteja passando por um processo de morte e renascimento a cada trabalho. Encontro toda a energia do mundo no teatro, que é um prolongamento da minha mocidade. Aqui me sinto uma criança: quando entro em cena não tenho dor alguma e me vem um poder muito grande da energia coletiva e da natureza.
Tudo isso faz com que você vá aprendendo a se comunicar e percebe que não depende exclusivamente de si mesmo. Você depende do ar que respira, daquilo que come, das pessoas com quem convive, enfim, da cidade onde se vive. E aí você não se conforma em sobreviver, que é muito pouco. É preciso desejar viver intensamente. É possível viver intensamente aos 65 anos.
Minha geração, que é a geração dos anos 60, que contribuiu muito para uma revolução de valores, para a compreensão da vida, da sexualidade, da política, do contato com as drogas, da sabedoria, das outras culturas, está inventando uma outra maneira de envelhecer.
Sou condenado à vida: tenho que viver e criar porque, se não vivo para isso, não tenho o que me segure. Vivo numa atividade de risco, que é o teatro e a cultura. Quando não estou inspirado, não consigo ir atrás de dinheiro. Tenho que me inventar a cada dia. Minha sabedoria vem da ignorância e da necessidade de aprender o que preciso neste instante para estar vivo e criar. A sabedoria é isso: consciência da ignorância.
Não existe a verdade; existem perspectivas de verdade. Uma coisa é certa: o movimento de estarmos vivos e constantemente em luta com a morte. Ao mesmo tempo, temos que nos apaixonar pela morte e ir com ela. É maravilhoso que ela exista, que haja limitação, que haja fim.
Tudo se transforma. Por exemplo, quero plantar as cinzas do meu corpo no teatro Oficina, porque dei minha vida a este lugar. Portanto, minha eternidade é a eternidade que desejo para minha obra. Pode ser que ela seja absolutamente esquecida, mas pode ser que, um dia, alguém a reproduza, assim como estou fazendo em relação ao Euclides da Cunha. Trabalho para a eternidade porque acredito que a eternidade é o aqui e agora.
Quero plantar as cinzas do meu corpo no teatro Oficina, dei minha vida a este lugar
Acredito nessa vida que o artista deixa, pois alguma coisa sempre fica do que ele experimentou, de geração pra geração. Você pode deixar alguma coisa. Nesse momento a gente está vivendo todas as vidas que já foram vividas, e as próximas dependem do que estamos traçando neste momento. E, assim, a vida vai ficando mais bonita de se viver. Mais intensa, mais bárbara.
Meu Deus é o teatro. O teatro liga eletricamente toda a humanidade, dando seu sentido original de multidão, experiência comum, sensualidade comum, as emoções mais fortes da vida, porque tem de trabalhar com emoções que toquem a todos, com as grandes paixões.
Depois de muita confiança exclusiva na ciência e na tecnologia, vivemos uma época que começa a valorizar o conhecimento arcaico, que vem com a própria história humana, pois o homem já foi muito mais forte do que é agora, muito mais poderoso. A natureza é cheia de preciosidades invisíveis e repleta de sentimentos perdidos ao longo da civilização. O homem arcaico tinha poderes que nós fomos perdendo: conexão com o clima, os elementos, os animais.
Por meio da civilização, o homem passou a acreditar que ele não tem poder algum, que o poder está nas estruturas que ele não entende. A função do teatro é redescobrir fisicamente o poder das pessoas juntas.
O velho não deve se contentar com o papel que a sociedade lhe dá. Acho que ninguém deve se aposentar de viver. Viver implica em exercer seu poder. Você pode se dar ao luxo de se tornar mais generoso. Não há maior poder do que o poder de dar. Não há mais aquele apego excessivo ao seu ego, à sua história pessoal, ao seu draminha, à sua novela, à sua vidinha. De repente, você vê que sua vidinha faz parte da vida de todo mundo, da natureza, e percebe que é uma vidona. Então passa a viver cosmicamente, socialmente, amplamente.
Euclides da Cunha fala que Antonio Conselheiro tinha a tranquilidade da humildade soberana. Eu procuro tê-la. Adoro ver as pessoas sentirem orgulho de serem o que são, em todas as idades. Não acredito na humildade ‘abaixar a cabeça’ porque não devemos nos escravizar. Exatamente por isso você procura ampliar o poder humano: sua presença diante da máquina, da engrenagem, da estrutura.
Mestre? Não. Sou muito ignorante, sou um artista que entra no jogo, passa e recebe. Não sou sábio, não acredito na verdade. Acredito na ação e na recepção.
Felizmente, há milhares de caminhos e verdades, todas relativas e maravilhosas, porque exatamente são misteriosas e desconhecidas. São adversidades biológicas: cada um de nós é um canto de uma sinfonia enorme do que é a vida. Uma parte mínima, mas imensa.”
Em 2002, fiz uma investigação sobre o papel da arte no processo de envelhecimento como parte de minha pesquisa final no curso de jornalismo. O resultado foi um livro fotográfico contendo perfis de 13 artistas de diversas vertentes. Entre eles, Zé Celso.
Para minha surpresa, consegui não apenas sua rápida autorização para fotografá-lo durante o ensaio de Os Sertões, mas também uma entrevista. Naquela tarde de sábado no Oficina, eu, com 22 anos, e ele, com 65, esperamos até que todos os atores e membros da equipe técnica deixassem o local após o ensaio. Zé Celso então pegou uma cadeira, posicionou-a no meio do corredor do teatro e solicitou que eu fizesse o mesmo. De frente para ele, expliquei que estava trabalhando em um livro sobre o processo de envelhecimento, entrevistando e fotografando pessoas que encontraram na arte uma bússola para atravessar esse momento com mais inspiração.
Ele ficou surpreso e, de certa forma, admirado, já que estava vivendo a transição do tempo de forma consciente, encantado pelo livro A Velhice, da escritora Simone de Beauvoir, que acabara de ler. “Senti que estava passando por mais um rito de iniciação quando fiz 60 anos, vivendo dores e prazeres. É bom saber que antes da gente outros artistas envelheceram e, apesar do sofrimento e da dor, conseguiram criar até os últimos dias”, disse.
Corta para 2023.
Após assistir a outros espetáculos do grupo, no dia 1 de julho fui ao Oficina mais uma vez, agora para ver “Mutação da Apoteose”, com direção de Camila Mota. Cinco dias depois, Zé Celso partiu, aos 86 anos.
Abri o armário, tirei as caixas de cima, encontrei meu livro. “Talvez esse depoimento possa servir a alguém um dia”, ouço Zé Celso dizer novamente.
Ana Peres é jornalista e estrategista de conteúdo. Trabalhou nas revistas TRIP e Tpm, estudou filosofia em Harvard e foi editora-chefe de branded content na Accenture. Hoje pesquisa futuros possíveis.