Courtney Novak: “Machado era diferente de tudo que eu já tinha lido”
No Brasil para festival literário, influenciadora apaixonada por Machado de Assis elogia literatura brasileira e defende hábitos de leitura mais globais
No Brasil para participar de uma sequência de debates sobre literatura, a influenciadora e escritora norte-americana Courtney Novak (@courtneyhenningnovak) acabou entabulando uma conversa com um juiz enquanto esperava o elevador do seu hotel. Embora tenha começado com as tradicionais amenidades, o papo acabou enveredando por um caminho inevitável: a obra de Machado de Assis.
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O motivo para isso não é difícil de entender. A Booktoker — nicho no TikTok focado em livros — virou sensação no Brasil após fazer enormes elogios a “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, que ela chegou a chamar de “melhor livro já escrito”, se perguntando o que iria fazer da vida após terminar a leitura. E os usuários brasileiros, é claro, responderam à altura com centenas de milhares de likes e comentários. Hoje o vídeo reúne mais de 1,4 milhões de views e é de longe o mais visualizado no perfil da norte-americana na plataforma, tendo levado a obra a disparar em vendas na Amazon internacional.
Embora tenha proposto o desafio de ler um livro de cada país do mundo em ordem alfabética, os outros vídeos de Novak que mais chamaram a atenção no TikTok também têm um elemento em comum: o Brasil. Entre eles, um ranking em que a influenciadora coloca a obra machadiana no topo, registros de “recebidos” de fãs brasileiros e uma avaliação de “Dom Casmurro” — feita sob uma certa pressão — em que dá seu pitaco sobre a polêmica da traição de Capitu. Um spoiler: ela defende que a dona dos “olhos de cigana” é inocente.
“Foi um pouco opressivo, como se eu me sentisse indigna. Por que estou recebendo todo esse amor?”, conta a influenciadora a Gama. Antes disso, Novak já tinha tido uma experiência negativa com alguns seguidores. Sua leitura de “Ponte sobre o Drina”, do vencedor do Nobel Ivo Andrić, gerou uma verdadeira guerra nos comentários entre bósnios, sérvios e croatas, todos reivindicando a nacionalidade do autor. A influenciadora admite ter entrado sem querer num terreno pantanoso dos conflitos nos Bálcãs, que nem ela nem os usuários conseguiram explicar em muito detalhes.
Autora de livros sobre depressão pós-parto, maternidade e saúde mental, Novak tem formação em história, mas conta que a faculdade acabou distanciando-a, em vez de aproximá-la de leituras mais densas. Além dos vídeos curtos nas redes, ela vem registrando a experiência em seu blog pessoal — já foram 45 livros de diferentes países do mundo, e ela está apenas na letra D — e tem uma vaga ideia de escrever algo maior sobre o projeto no futuro.
Novak também já virou fã de Clarice Lispector e acaba de começar “Macunaíma”, inspirada pela proximidade de seu hotel da Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Apesar das distrações proporcionadas pelo público brasileiro, ela reforça que o projeto segue firme. “Disse a mim mesma que poderia trapacear se quisesse. Imaginei que faria isso com livros de mistério e séries de fantasia, mas acabei trapaceando com o Brasil”, confessa.
Uma ávida leitora desde criança, ela também tem inspirado os filhos pequenos a lerem e afirma que a experiência tem aberto sua mente para a arte produzida em outras regiões do mundo. “Acho que o mundo inteiro ficaria melhor se lêssemos mais o que escrevem ao redor do planeta.” No Brasil, ela divide uma mesa do Flimuj (Festival Literário do Museu Judaico de São Paulo) com Pedro Pacífico, o Bookster, no sábado (21) a partir das 19h, e ainda faz um bate-papo sobre literatura estrangeira na Biblioteca Parque Villa-Lobos no domingo (22), às 15h.
Na conversa com Gama, Novak, que está até tendo aulas de português, aborda também o poder das redes para influenciar a leitura, o livro como uma experiência individual e a forma como somos incentivados a ler em escolas e universidades.
Foi um pouco opressivo, como se eu me sentisse indigna. Por que estou recebendo todo esse amor?
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G |De onde surgiu a proposta pessoal de ler um livro de cada país do mundo? Você sempre leu bastante?
Courtney Novak |Sempre fui uma leitora ávida. Não me lembro da vida sem a leitura. Era uma piada na nossa família, meus pais viviam brigando comigo: pare de ler, vá lá fora brincar. A ideia surgiu na minha cabeça alguns anos atrás. Começou com uma pergunta: quantos autores eu li de outros lugares do mundo? Comecei a pensar em todos os livros que li que se passavam em outros lugares. Mas fui procurar muitos deles e percebi que eram todos de autores americanos ou ingleses escrevendo sobre a Índia e a China. Até grandes escritores como Amy Tan nasceram nos EUA. E a ideia não me deixou em paz por dois anos. Quando comecei, estava convencida de que ia odiar e não passaria nem da letra A. Mas meu marido me incentivou e me apaixonei pelo projeto.
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G |Qual foi o primeiro livro que você leu? A experiência foi positiva desde o início?
CN |O primeiro era o Afeganistão, mas eu já tinha lido “O Caçador de Pipas”. Então comecei com a Albânia, “The Doll” [A Boneca, sem tradução para o português], do Ismail Kadaré que é “o cara” da literatura albanesa. E foi maravilhoso, me trouxe de volta ao ensino médio, quando eu amava uma literatura que era difícil, intelectual e fazia você pensar. Quando fui para a faculdade, meus professores tiraram isso de mim. Eu me formei em história e não gostava da maneira como ensinavam em grandes salas de aula, onde você tinha que escrever redações e adivinhar o que o professor achava que era a resposta certa. O livro me trouxe de volta àquele antigo amor puro pela literatura. Quando terminei, pensei: vou voltar ao Afeganistão. Precisava fazer isso direito, ler um livro de cada autor em ordem. E o Afeganistão foi incrível, uma coleção de contos de mulheres afegãs, a maioria delas usando pseudônimo porque poderiam ser mortas por escrever essas histórias. Isso abriu muito minha mente e minha alma para o mundo. Foi quando percebi que ia fazer esse processo para valer.
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G |Você teve fortes reações da Bósnia quando leu um livro de lá. Foi o primeiro lugar que realmente trouxe uma grande resposta às suas leituras antes do Brasil?
CN |Sim, a Bósnia foi a primeira. Na verdade, foram sérvios dizendo que o autor [Ivo Andrić, do livro “Ponte sobre o Drina”] tinha nascido na Bósnia, mas era sérvio. Eu postei o vídeo e saí para a pedicure. Quando voltei, vi que estava tendo uma briga por minha causa, com bósnios, croatas e sérvios revivendo todo um drama. Me disseram que eu não entenderia, que eles mesmos não entendiam, apesar de algumas pessoas dedicarem suas vidas a estudar o assunto. Então boa escolha, siga em frente.
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G |Imagino que nenhum outro país deu um retorno tão grande quanto o Brasil. Como você recebeu essa avalanche de reações?
CN |Primeiro foi assustador porque presumi que seria como a Bósnia. Mas minha irmã leu os comentários e disse: Courtney, eles te amam. Aí comecei a ler. Foi um pouco opressivo, como se eu me sentisse indigna. Por que estou recebendo todo esse amor? Depois de um mês, isso abriu meu coração. Pensei: apenas viva essa jornada, essa aventura. E tem sido realmente maravilhoso e acolhedor.
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G |Como você costuma escolher os livros que vai ler? Particularmente, qual foi o caminho até Machado de Assis?
CN |Com um país grande como o Brasil, há muitas escolhas, então fico um pouco obcecada. Leio todos os tipos de posts em blogs, listas do Goodreads e tento encontrar artigos escritos por pessoas daquele país, em vez de um jornalista do New York Times me dizendo o que ler. E o nome do Machado foi aparecendo. Quando li a descrição de “Memórias Póstumas”, descobri que era ele. Uma história contada por um morto, estou 100% dentro.
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G |Uma das coisas que atraíram a atenção dos brasileiros foi sua análise entusiasmada, chegando a chamar o livro de “melhor já escrito”. Hoje, como você descreveria essa primeira impressão da obra?
CN |Alegria. Ler aquela dedicatória, eu só… Estava preocupada que o livro fosse superestimado, porque os brasileiros viviam me dizendo que eu ia amar Machado, que ele era um tesouro nacional. Pensei: meu Deus, eles vão ficar tão decepcionados quando eu disser que achei só ok. E também ficava imaginando quão boa poderia ser uma dedicatória. E eu sentei, comecei a ler e fui simplesmente fisgada. Machado era diferente de tudo que eu já tinha lido, a coisa toda, o tom de conversa… Pode ser uma leitura tão leve, mas ele de repente cria uma visão tão estranha da humanidade. Você fica se perguntando: como ele conhece minha alma? E como seu senso de humor pode continuar tão atual mais de um século depois? É simplesmente notável.
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G |Você também fez muitos elogios à tradução para o inglês da Flora Thomson-DeVeaux…
CN |É uma ótima tradução. E ouvi dizer que há outra recente feita por um britânico, que dizem também ser boa. Não existe Machado demais, então talvez eu tenha que ler de novo. Mas ela [a Flora] fez um trabalho maravilhoso e trouxe notas de rodapé que realmente te ajudam a entender o contexto do que estava acontecendo naquela época no Brasil. Ele incluía várias referências no texto, e eu adoro que elas não fazem você se sentir idiota. Quando muitos escritores incluem esse tipo de coisa, parece que estão se exibindo. Sim, eu sei citar Homero e posso te fazer se sentir mal por não ter prestado atenção em Ovídio. Com Machado, só fiquei pensando: você é brilhante e não me fez sentir mal por isso. É um privilégio poder acompanhar o cérebro dele por um tempo.
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G |Apesar de estar sendo mais reconhecida, a obra de Machado ainda é pouco lida fora do Brasil. A resposta à sua avaliação do livro tem muito a ver com essa pouca visibilidade da literatura brasileira no mundo. Na sua visão, ainda existe um foco americanizado e europeizado na forma como se consome literatura?
CN |Não posso falar por outros países, mas sei que nos EUA é muito americanizado e limitado. Não estamos tentando ser assim, mas é o que as lojas e editoras nos vendem, e o que fomos levados a acreditar. Se está na lista de best-sellers do New York Times, é isso que você deve ler. De vez em quando, um livro de outro país se destaca, e nos sentimos bem conosco mesmos, como se nos déssemos um tapinha nas costas. Um livro é uma maneira muito boa de entender as pessoas. Eu sou formada em história. Você pode aprender sobre várias coisas que acontecem no mundo e enxergá-las como meras estatísticas. É muito fácil se distanciar emocionalmente. Li um livro de memórias, “Primeiro Mataram Meu Pai”, do Camboja. E realmente ouvir a história de como foi estar lá durante o Khmer Vermelho… Foi um genocídio, com crianças-soldados. Ler sobre o que aconteceu com aquela família muda sua alma. Acho que o mundo inteiro ficaria melhor se lêssemos mais o que escrevem ao redor do planeta.
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G |E do Brasil, você leu também “Dom Casmurro”, Clarice Lispector e mencionou até que pretende ler Jorge Amado no futuro. Como você descreveria a literatura brasileira até o momento?
CN |É tão refrescante, brilhante e original. Li um crítico que disse que parece que Clarice está praticando feitiçaria. E realmente é isso. Não é a escrita que ensinam na escola, ela está sendo 100% ela mesma. Eu escrevo e ouço podcasts sobre escrita. Geralmente há essas fórmulas sobre a jornada do herói e como você deve estruturar sua história. Na marca de 25% faça isso, na de 50% aquilo. E Clarice chega e diz: estou apenas escrevendo minha história. Ela está conectada a uma espécie de energia divina e é como se pudéssemos vivenciar isso com a pureza dela. Foi incrível.
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G |No momento você está em qual leitura?
CN |Agora estou de férias no Brasil, porque terminei as letras C. E, como estou no Brasil, comecei a ler outra coisa no intervalo [“Macunaíma”, de Mário de Andrade]. Me hospedei perto da biblioteca com o nome dele, então sinto que preciso lê-lo. Antes de partir para a letra D, primeiro preciso ler outro livro da Costa Rica, porque muitas pessoas reclamaram do autor que escolhi. Vou ter que fazer um vídeo pedindo desculpas. É um costarriquenho-americano que viveu em San José. Eu pensei que ele era costarriquenho, mas nasceu nos EUA e escreveu o livro em inglês. Foi um erro maravilhoso, porque eu amei o livro. Mas vou voltar atrás e ler um dos autores que as pessoas sugeriram.
Não acho que há nada que você precisa ler, na verdade, e sim o que desperta sua alegria e curiosidade
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G |Você já mencionou alguns, mas quais livros de outros países chamaram sua atenção ou fizeram você querer ler mais daquele autor? Por quantos países já passou?
CN |A China foi um destaque. Eu li “Cisnes Selvagens”, uma biografia da avó da autora, de sua mãe e dela mesma durante a Revolução Cultural. E a primeira frase é algo como “minha avó era uma concubina de um senhor da guerra.” Isso me fez realmente querer ler muito mais da China, porque um sétimo do mundo vive lá. É tão vasto e tão misterioso. Há muitos problemas entre a China e os EUA, e eles têm lá suas prisões. Com quase 1 bilhão e meio de pessoas, era de se pensar que houvesse uma reação à minha leitura desse livro, mas o TikTok não mostra meus vídeos para os chineses. O algoritmo me ouve falar sobre a China e esconde o que digo. Mas tenho uma lista inteira de autores aos quais eu quero voltar e ler mais de seus livros. Sei que passei por 25% dos países, e serão quase 50% quando terminar a letra D. Se não me engano, li livros de 45 países.
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G |No começo, a ideia era abrir sua mente sobre a arte que é feita em todas as partes do mundo. Dá para dizer que o projeto está sendo bem-sucedido?
CN |Foi bem-sucedido de maneiras que eu nunca imaginei. É por isso que eu penso que minha musa inspiradora sabe muito mais o que ela está fazendo do que eu. Fiquei questionando a ideia por dois anos, pensando que ia ser chato, e ela dizendo: espere só até chegar ao Brasil. Até a Bósnia foi interessante. Uma vez que eu aceitei o fato de que eles me odeiam, entendi que o problema não sou eu. Não é sobre mim, mas todo um trauma que aquela parte do mundo experimentou. Então não tirei os Bálcãs da minha lista de viagens. Agora tenho uma visão da Sérvia que eu não conseguiria nem mesmo em um livro. As reações nas mídias sociais acabaram adicionando uma camada inteira a esse projeto que eu não poderia imaginar. Mas não, não diria que é meu destino de viagem número um.
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G |O sucesso do seu vídeo ajudou a colocar “Memórias Póstumas” numa lista de mais vendidos da Amazon nos EUA. Como avalia esse impacto do seu trabalho e das redes para chamar atenção para essas obras?
CN |Não sou uma pessoa que chora com facilidade, mas fico emocionada toda vez que alguém me procura para dizer que está começando um projeto parecido com o meu. E as pessoas estão fazendo isso de maneiras diferentes, adoro ver essa criatividade. Tem gente lendo apenas mulheres ou fazendo um continente de cada vez. É simplesmente tocante e inspirador poder expor as pessoas a outros autores. Eu sou uma leitora ávida antes de ser escritora. Escrevo porque amo muito ler. E nunca me ocorreu que deveria compartilhar minha voz. Sempre me senti constrangida escrevendo ou postando TikToks, fazendo resenhas. Eu costumava ler a New Yorker e pensava: não consigo escrever desse jeito. E se eu errar? Agora percebo que não há interpretação errada, é como se cada um de nós tivesse uma experiência tão individual com um livro que todos deveríamos encorajar essas discussões que trazemos à mesa. E é isso que é tão interessante. Abraçar o debate é muito divertido.
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G |Ouvi dizer que você está aprendendo português… Sempre que fala de um livro ou autor brasileiro, você tem um engajamento enorme. Essa atenção do público brasileiro acabou tirando um pouquinho o foco do seu objetivo? Ou segue firme e forte?
CN |Eu falo um pouco português. Estou aprendendo [diz em português]. O Brasil é uma má influência no meu projeto, mas ainda segue muito forte. Disse a mim mesma que poderia trapacear se quisesse. Imaginei que faria isso com livros de mistério e séries de fantasia, mas acabei trapaceando com o Brasil, um país muito divertido para isso. Não acho que há nada que você precisa ler, na verdade, e sim o que desperta sua alegria e curiosidade. Claro que, na escola, você lê o que seus professores indicam, mas eles precisam fazer isso para mostrar aos alunos uma variedade de livros e permitir que digam: eu não gosto deste ou daquele. Deveríamos ter permissão para interagir com o livro e vivenciá-lo da maneira que quisermos.
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G |O que você diria para alguém que está começando a se interessar por outros tipos de leitura? Como iniciar essa jornada?
CN |Faça qualquer coisa que você se sinta impelido a fazer. Para mim, a ideia da ordem alfabética foi realmente um TOC interior. Mas, se você vai viajar para um determinado país, por exemplo, eu diria para começar por lá, porque isso enriquece muito a experiência. Comece por onde você se sentir chamado a começar.
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