Gastronomia de coleta, direto da natureza selvagem
Atrás de novos sabores e texturas, o novo (velho) hábito da coleta de espécies selvagens leva mais chefs a explorarem plantas não convencionais, cogumelos gigantes e até trufas brasileiras
“Os cozinheiros têm um papel maravilhoso de provar que algo que sai da floresta tão amargo pode ser branqueado, refogado e servido”, diz o agrofloresteiro e botânico autodidata Jorge Ferreira. Atrás de novos sabores e texturas, o novo (velho) hábito da coleta de espécies selvagens leva mais chefs a explorarem plantas não convencionais, cogumelos silvestres (inclusive gigantes) e até trufas brasileiras. É por meio de vivências com agricultores/coletores, cozinheiros e pesquisadores que algumas variedades perdem o caráter intocado para adquirir status de comida.
“A gastronomia prova que esses ‘matos’ podem virar pratos lindos e nutritivos, fartos e acessíveis. Pode estar no prato de um grande chef, mas é a mesma erva que brota na calçada da minha rua e no terreno baldio do vizinho”, pontua Jorge sobre as PANC (Plantas Alimentícias Não Convencionais), que não faltam no cardápio do Banana da Terra, da chef Ana Bueno, em Parati. Foi ela uma de suas primeiras parceiras para uma gastronomia forager – focada na coleta de elementos selvagens – na Mata Atlântica. É por conta do branqueamento citado por ele no início do texto (técnica de cozimento muito rápido) que a tapioca de urtiga com salada de PANC não falta no menu do restaurante – as mesmas plantas aparecem no pesto de ora-pro-nobis do nhoque, no agrião do mato da rabada e em outros pratos, de acordo com a disponibilidade.
Os ganhos são mais biodiversidade no prato e a preservação das espécies, além de aumentar a renda dos produtores familiares
Para Ana, o uso desses vegetais espontâneos deve se pautar não só no potencial gastronômico, mas na preservação do ambiente e nas pessoas do lugar: “É um passo importante abrir as portas do provar, para que isso seja também reconhecido pelas pessoas daqui. A gente passa pela mata e muitas vezes não reconhece o alimento”. O fungicultor e coletor de cogumelos silvestres Bruno da Silva, de Marsilac, distrito da capital paulista, divide opinião parecida. “A minha ideia com a coleta é mostrar que as pessoas daqui também podem fazer, basta o conhecimento. E a gastronomia é um outdoor, que pode popularizar isso tudo”, afirma, mas alerta que há quem adote os produtos apenas em nome das tendências, sem se preocupar com os produtores e o seu território: “Se você encontra algo especial, muitas pessoas aparecem só por interesse”.
Para a autora do blog Come-se, Neide Rigo, ainda que parte do interesse pelas PANC e cogumelos possa vir do modismo, muitas espécies acabam sendo incorporadas na dieta, trazendo autonomia na escolha da comida. “Os ganhos são o aumento da biodiversidade no prato e no campo, e a preservação das espécies, além de aumentar a renda dos produtores familiares.”
Giuliana Nogueira
Trufas brasileiras e cogumelos gigantes
“Precisa ser atencioso e curioso, ler bastante, caminhar muito na floresta e fazer uso de três sentidos constantemente: visão, tato e olfato. O paladar, só quando você já tiver realmente conhecimento”, fala Jorge sobre a identificação dos fungos comestíveis. Costumeiramente associados a caráter venenoso ou alucinógeno, alguns cogumelos do mato vêm aos poucos pleiteando lugar nos cardápios dos restaurantes. “É realmente trabalhar com a condição da natureza”, diz o chef Ygor Lopes, do Aê Cozinha, em São Paulo (SP). No último outono, ele utilizou o Porcini e o Lactarius deliciosus, fornecidos por Bruno da Silva, em pratos como o arroz de cogumelos com castanhas, ramas de brócolis e o premiado queijo Tulha, da Fazenda Atalaia. A raridade estimula os diferentes usos na cozinha – na frigideira ou na churrasqueira, em carpaccio ou caldos, secos ou in natura. Segundo ele, todo o esforço compensa: os pratos feitos com os selvagens “carnudos, perfumados e de sabor intenso” gozam de ótima aceitação.
Mais ao sul do país, em Joinville (SC), o chef Willian Vieira é entusiasta da cozinha regional e além dos cogumelos, investe na coleta de algas e PANC praianas, da costa catarinense. Qual não foi sua surpresa quando encontrou o imponente Macrocybe titans crescendo em troncos apodrecidos em sítios da sua cidade! O cogumelo, segundo ele, não passa despercebido no tamanho (mais de 20cm) nem no sabor – amadeirado, com aroma de amêndoas –, mas precisa ser fervido três vezes antes de tomar os rumos de grelhados e consomês. Como professor, ele ainda se preocupa em desidratá-los para eventuais demonstrações em sala de aula: “A nossa função é tentar abrir os olhos das pessoas para que a coleta e o consumo virem algo cultural no Brasil, onde a gente tem uma abundância de variedades incrível”.
O imponente Macrocybe titans tem mais de 20cm, sabor amadeirado e aroma de amêndoas. É utilizado em grelhados e consomês
De mais rara incidência é o primeiro exemplar brasileiro da tão celebrada trufa. Encontrada em solo gaúcho pelo biólogo Marcelo Sulzbacher junto a um grupo de pesquisadores, a versão nacional da iguaria difundida no mundo todo vem sendo cada vez mais disputada por chefs de todo o país. “Os cozinheiros que trabalham com ingredientes frescos e de região ficam fascinados por isso”, lembra o chef sul mato-grossense Paulo Machado, que batizou a espécie de “sapucay” (o grito guarani) e já participou de caças a fungos comestíveis com Sulzbacher durante os Food Safaris, expedições que organiza, com foco no turismo e na gastronomia local.
Trazida da Flórida, nos Estados Unidos, a Santa Maria (RS), de carona nas raízes das nogueiras-pecã, a trufa da espécie Tuber floridanum não poderia ter outro aroma que não o de castanhas e, hoje, apesar de rara, já pode ser apreciada em alguns lugares de São Paulo, como a Tartuferia San Paolo, casa especializada em trufas, e no pastifício Shihoma Pasta Fresca. Com os cerca de três quilos da última temporada, o pesquisador–coletor ainda realizou eventos com chefs e fez testes de azeites, manteigas, sais e meles na própria empresa, a Terroir Sul. A próxima caça às trufas, a partir de outubro, deve ficar restrita aos especialistas, mas as expedições que envolvem coleta de cogumelos e “gastronomia e contemplação”, em suas palavras, acontecem o ano todo, e estão sempre levando Sulzbacher e sua bagagem sobre o Reino Fungi Brasil afora. A expectativa é que esse tipo de vivência cresça no pós-pandemia. “Serão cada vez mais valorizadas as atividades ao ar livre, em ambientes que tenham algo a mais a oferecer”, comenta Sulzbacher.
O rolê da coleta
O Entrevilas, em São Bento do Sapucaí (SP), é definitivamente um desses “microambientes” citados por Sulzbacher. No espaço, além de contar com restaurante, vinícola e hospedagem, o engenheiro agrônomo e cozinheiro Rodrigo Veraldi realiza vivências gastronômicas com foco nos orgânicos e nas espécies que crescem na mata e em meio aos cultivos, como frutos silvestres, PANC e cogumelos – esses últimos representam 15% dos produtos coletados. Recentemente, uma nova variedade de trufa também foi descoberta no altiplano, e identificada com a ajuda do pesquisador gaúcho. As primeiras coletas da espécie da Mantiqueira, ainda indefinida, foram tímidas – cerca de 20 unidades –, mas o pesquisador já se preocupou em transformar algumas delas em esporos para uma futura inoculação.
O conhecimento é adquirido por vivência, respeito, atenção, leitura e diálogo
Não só as trufas, mas os outros fungos comestíveis e as plantas espontâneas que brotam nas terras do Entrevilas só compõem as invenções culinárias de Veraldi porque têm seus espaços respeitados, por ele e pelos colaboradores. “A floresta vai ser preservada, mas primeiro precisamos conhecê-la”, diz Jorge Ferreira ressaltando que ela não precisa ficar intacta para ser preservada; pelo contrário, pode e deve ser manejada de maneira consciente e em expedições responsáveis. “Esse conhecimento é adquirido por vivência, respeito, atenção, leitura e diálogo. Senão a gente deixa brecha para o outro lado, do extremo, que diz que ecologicamente a gente não deveria pegar nada da natureza.”
Engana-se o comensal que for a algum dos restaurantes citados em busca de pratos idênticos aos das semanas anteriores. É preciso “deixar um pouco pra natureza comer”, falou o chef Willian Vieira, sobre a disseminação dos esporos feita com frequência por ele e por outros apaixonados por cogumelos. Fica evidente que, antes de chegar à cozinha, a chave para essa gastronomia forager está no conhecimento e no respeito à natureza.