Com que roupa eu vou?
Com a redução do isolamento social, crescem a ansiedade na hora de se vestir e o medo de voltar a ser julgados pelo olhar do outro
Acostumada a passar boa parte desse último um ano e meio de pandemia dentro de casa, a pesquisadora Caroline Pilger, 33, compartilhou há pouco tempo com sua terapeuta uma preocupação. Durante o cotidiano doméstico, hoje quase todo ocupado pela escrita de uma tese de doutorado, seu cardápio de roupas não passa de cinco combinações. A mais frequente, ela confessa, é a malha do bom e velho pijama. E, embora tenha se mudado recentemente, não chegou nem a tirar a maiorias das vestes de dentro das caixas. Não pretendia usá-las tão cedo.
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No período da pandemia, pintar os cabelos também não se fez mais tão necessário quanto antes e a prática de se depilar ficou mais rara — um problema ao sair num dia mais quente, sem poder botar uma calça curta. Mas contou à terapeuta que se viu obrigada a voltar a sentir o aperto do sutiã — sem o qual tem vivido por meses a fio — e de roupas menos confortáveis quando deixou sua casa num sábado de agosto, rumo a um jantar com os sogros.
“Outras mulheres também me relataram uma preocupação por ter engordado e agora começar a sair na rua”, conta Caroline, cuja tese trata da variedade de corpos femininos e da imposição de padrões de beleza. “Como mulher, meu corpo está sempre sendo controlado e vigiado.”
Jana Sabeth/Unsplash
Toda essa pequena jornada de retorno ao “normal” que começa a ser contada agora, num momento caracterizado pelo aumento da vacinação, queda no número de mortes por covid-19 e maior abertura, não é exclusividade da pesquisadora. Um sentimento parecido já vem sendo relatado por muitas pessoas em países que vinham lidando melhor com o vírus do que o Brasil. E ele ganhou até nome em inglês: post-pandemic wardrobe anxiety (em tradução ao pé da letra, ansiedade do guarda-roupa pós-pandêmica).
Por que preciso ter sempre as unhas pintadas ou estar sempre de maquiagem? A pandemia trouxe essas reflexões
De maneira geral, a expressão descreve esse estranhamento ao se arrumar para voltar a frequentar lugares antes habituais. O escritório, um restaurante, um parque, uma reunião familiar um pouco mais ampla. Sensação pela qual só passa, vale dizer, quem realmente se isolou de forma mais restritiva durante a pandemia.
Para Caroline, viver mais tempo longe do olhar dos outros fez com que muita gente percebesse que várias das preocupações diárias com estética tinham mais a ver com uma pressão estética da sociedade do que uma vontade própria. “Aí tu começa a se perguntar por que fazia esses procedimentos todos, por que passava por essa adequação? Por que preciso ter sempre as unhas pintadas ou estar sempre de maquiagem? Não que não possa, mas a pandemia trouxe essas reflexões.”
Essa pressão, ela diz, é sentida por todo mundo o tempo todo, mas acaba sendo maior para as mulheres, constantemente cobradas para se encaixarem em determinados padrões. “Quando está escondida das pessoas, tu começa a se libertar um pouco mais.”
Memes e gordofobia
Talvez você ainda se lembre deles ou até se depare com algum por aí. Lá no início da pandemia, pipocaram por toda a internet memes sobre como estaríamos ao final desse período isolados. E, invariavelmente, a previsão era sempre a mesma. “Eram edições de um corpo magro ao lado desse mesmo corpo, só que aumentado de forma grotesca no Photoshop. Ou então comparando uma pessoa magra a uma outra gorda, como se fosse um antes e depois da quarentena”, relembra Caroline.
A gordofobia é tão estrutural quanto o racismo. Em um momento sem precedentes na história, a maior preocupação era engordar
Para ela, a hora não era para isso, mas sim de as pessoas agradecerem por terem um teto sob o qual morar e comida na geladeira. “Para ver como a gordofobia é tão estrutural quanto o racismo. Em um momento sem precedentes na história, a maior preocupação das pessoas é com a possibilidade de engordar.”
O olhar da família
Depois de um ano em que foi impedida pela pandemia de viajar, a brasileira Anelise Ribeiro, 33, que vive em Lisboa, voltou ao país natal em agosto para visitar a família, aproveitando a tradicional folga em meio ao verão europeu. Muito ligada em moda e consumista declarada, os quatro meses de lockdown compulsório em Portugal, seguidos de um inverno rigoroso que também a manteve em casa, motivaram uma mudança forçada de hábitos.
Para usar dentro de casa, comprou dois conjuntos de moletom confortáveis. Apesar da vontade constante de sair, quando as regras começaram a afrouxar ela continuou usando roupas mais práticas e menos fashion mesmo fora de casa, porque não se sentia tão bem com as roupas que usava antes. Segundo ela, em Portugal, como em quase toda a Europa, costuma-se prestar menos atenção à aparência das outras pessoas, o que permitiu que ela mudasse seu estilo de forma que considera permanente. “Minha família se surpreendeu porque estou com um estilo muito menos patricinha e mais esporte. Antes nunca usava, agora só ando de tênis.”
Antonius Ferret/Pexels
Uma das reclamações que a psicóloga Ana Fanganiello escuta em seu consultório tem a ver com a retomada de reuniões familiares, especialmente no Natal. Ela aponta o seio familiar como um lugar bastante julgador, onde há menos inibição para comentar se uma pessoa engordou ou se mudou de alguma forma, o que pode trazer insegurança. “Dentro da família, as pessoas acabam tratando a pessoa pelo ponto de vista de como ela era antes, não de como é hoje. Ali se espera que você não mude grandes coisas, por isso qualquer mudança causa sempre um choque”, explica Ana, que é especialista em sexualidade feminina.
Mamilos polêmicos
Estar sempre em casa não necessariamente criou novas tendências estéticas, mas ampliou de forma considerável movimentos corporais de resistência com cunho feminista que já existiam na sociedade, como deixar de usar sutiã ou não se depilar. Isso dentro de um ambiente doméstico, em que se pode fazer o que bem entender com o corpo.
Só que toda a pressão estética sentida no retorno pode significar que as mudanças são passageiras. “Tenho escutado bastante de pessoas que foram para a praia e não deram conta de ficar com a perna peluda”, exemplifica a psicóloga. Em abril, uma foto do influenciador Whindersson Nunes com sua então namorada Maria Lina foi alvo de críticas de usuários no Instagram por ela não estar usando sutiã.
Ivan Stern/Unsplash
“A mulher se sente livre dentro de casa e presa fora dela, porque precisa responder ao que os outros desejam do seu corpo”, afirma Ana. “Como mulher, posso te falar que, no final do dia, quando tiramos o sutiã, fica aquela marca de pressão. Se não usar é uma liberdade, por que não posso mostrar meus mamilos? Infelizmente, a gente não evoluiu tanto quanto gostaria.”
A dificuldade mesmo é de adaptar essa liberdade ganha em casa a um ambiente em que ela ainda não foi aceita. “Acho que boa parte das pessoas vai sucumbir ao olhar do outro, mas algumas ainda devem conseguir romper com isso”, conclui.
E os homens?
Boa parte dos relatos sobre a ansiedade para se vestir no pós-pandemia se concentram no público feminino, mas isso não significa que os homens não sofram com a imposição de padrões e a pressão estética. Isso vem acontecendo principalmente desde o início do processo de desconstrução masculino, lá nos anos 1980, e que se intensificou no século 21, explica o sociólogo Dario Caldas, diretor do Observatório de Sinais, especializado em identificar tendências.
Vivemos em uma sociedade ‘corpólatra’, em que o corpo é usado como moeda de troca. E o corpo masculino está cada vez mais em evidência
Essa desconstrução inclui também uma maior entrada no mundo da moda, o que implica alguma ansiedade, pois exige fazer mais escolhas. Durante a pandemia, no entanto, Dario aponta que a principal causa de ansiedade entre os homens tem mais a ver com o corpo. “Vivemos em uma sociedade ‘corpólatra’, em que o corpo é usado como uma moeda de troca nas relações. E o corpo masculino está cada vez mais em evidência.”
Apesar dos movimentos a favor de corpos mais plurais nas redes sociais, as que acabam tendo mais influência são imagens que demonstram uma certa perfeição, geralmente ajudadas por filtros e Photoshop. E, indo na contramão, a maior tendência durante o isolamento, diz o sociólogo, foi deixar fluir. Permitir-se engordar, deixar barba e cabelo crescerem etc. Portanto, o retorno intensifica a preocupação para não aparecer com uns quilos a mais, o cabelo desleixado, a pele sem tratamento adequado. Algo que deve ser ainda mais forte dentro do ambiente de trabalho, que não vai deixar de ser restritivo, prevê Dario.
“Falo bastante das mulheres, mas os homens também sofrem essa pressão do que vestir, se faz ou não a barba, para se encaixar num perfil profissional”, aponta a pesquisadora Caroline Pilger. “Mas não é a aparência que vai modificar seu profissionalismo.”
O caminho de volta
Separar aquilo que realmente gostamos de fazer e vestir do que a sociedade nos impõe é uma tarefa difícil, mas necessária, diz Caroline. Muitas dessas coisas se entranharam na nossa cultura. Para entender melhor, o ideal é aproveitar o momento para empreender uma jornada de autorreflexão e apontar o que nos faz bem.
Uma saída, segundo a pesquisadora, pode ser começar a se arrumar, mesmo que seja para ficar dentro de casa. “Talvez ajude na transição de sair do casulo para voltar à sociedade. Ir retomando cuidados que antes te faziam bem, e também entender que não precisa fazer tudo pensando nos outros.”
Equilíbrio, portanto, é a palavra. Ou seja, não sair por aí de pijama, mas também não fazer coisas que te deixem desconfortável só para aguardar o olhar alheio. “A pressão de voltar para a sociedade está justamente em voltar a fazer coisas de que tu te deu conta de que não gostava.”
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